sábado, 30 de outubro de 2010

ILICITUDE DE UMA GRAVAÇÃO CLANDESTINA.

DA ILICITUDE DA PROVA OBTIDA POR MEIO DE UMA GRAVAÇÃO (e não somente interceptação) CLANDESTINA.

Quando alguém mantém alguma espécie de comunicação com outrem, o conteúdo dessa comunicação, em princípio, não diz respeito a quem não seja dela participante, daí porque a ninguém é permitida a sua reprodução, por qualquer meio. A conversa situa-se no âmbito da privacidade e, por vezes, da intimidade, dos interlocutores, assegurado, portanto pela Lei Maior (art. 5º, X).

Nesse passo, as gravações clandestinas (aquelas desconhecidas por um dos interlocutores), data maxima venia, são evidentemente ilegais, razão pela qual, em princípio e como regra, configuram provas obtidas ilicitamente, pelo que serão inadmissíveis no processo (art. 5º, LVI , CF).

Contudo, advirta-se de pronto que, frequentemente encontramos jurisprudência, particularmente do STJ, no sentido de distinguir a gravação clandestina feita por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro, daquela realizada por terceiros (a indigitada interceptação - art. 5º, XII da CF). Afirma-se que apenas estas seriam ilícitas.

Cabe porém alguns esclarecimentos, para que se entenda o que defendemos, leia-se, a inadimissibilidade da prova obtida por gravação, e não somente interceptação, clandestina, vejamos:

Quando um dos interlocutores promove a gravação da conversa sem o conhecimento do outro, a ilicitude não ocorrerá, efetivamente, do fato da gravação. E isso porque o conteúdo da conversa empreendida foi disponibilizado àquele interlocutor; Assim, porque conhecedor do conteúdo, não haveria problema na gravação feita por ele (isso aliás, é o que diferencia a ilicitude apriorística da interceptação clandestina, uma vez que, nesta, um terceiro "grava" a conversa dos interlocutores, sem o conhecimento destes - ilicitude da gravação e do conteúdo, por isso o rigor do art. 5º, XII da CF e seu regulamento na Lei 9.296/96 - Lei de interceptação telefônica.).

Denota-se assim que, no caso da gravação clandestina, a revelação daquele conteúdo poderá, em tese, afetar o direito à intimidade daquele interlocutor que desconhece a gravação. Nesse caso, embora lícita a gravação, a revelação de seu conteúdo poderia não sê-lo, afinal, o que ali teria sido dito se destinava somente aos interlocutores e a mais ninguém, pois realizada no âmbito da intimidade deles.

Portanto, no caso específico da gravação clandestina, o que irá determinar a ilicitude da prova não é o fato de ter sido realizada por "alguém" (terceiro ou por um dos interlocutores). Ao contrário, será o conteúdo então revelado que poderá afetar a intimidade do interlocutor que desconhece a gravação.

Evidentemente que, como já dito acima, a "gravação" clandestina feita por terceiros já é, ela mesma, ilícita, tendo em vista tratar-se de uma "interceptação" clandestina afrontosa à determinação do artigo 5º, XII da CF.

A título de encerramento, posto a situação dramática do direito constitucional à intimidade; outra situação, de igual ou quiçá, maior valor, também assegurada em bom tom pela Lei maior, ganha relevo, qual seja: o direito de não auto incriminar-se (direito ao silêncio) – principio do nemo tenetur se detegere – art. 5º,LXIII, CF. E o raciocínio a ser desenvolvido é o seguinte:

Se por exemplo, um dos interlocutores conseguisse gravar a confissão de um crime (diga-se, não sendo situação flagrancial ou qualquer outra justificadora da licitude de tal gravação– ex. estado de necessidade de um co-autor do crime), mesmo que tal situação seja louvável (posto sobre os olhos da ineficiência probatória investigativa do Estado), haveria violação do direito ao silêncio, porque a gravação teria obtido uma confissão extrajudicial, sem as exigências legais do Código de Processo Penal, inadmissíveis portanto ao processo (nesse sentido STF – HC nº. 69.818/SP).

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

ANÁLISE DA LEI DE TORTURA ENFOCADA NO INQUÉRITO POLICIAL E NA AÇÃO PENAL.

TORTURA NO INQUÉRITO POLICIAL E NA AÇÃO PENAL E SUAS CONSEQUENCIAS JURÍDICAS.

O QUE PRETENDEMOS DEMONSTRAR:

A submissão do indiciado a um inquérito policial e do acusado a um processo criminal inevitavelmente implica na realização de atos de polícia judiciária e de atos judiciais que muitas vezes causam constrangimento. Quando praticados dentro da legalidade o indivíduo a eles submetido esta contribuindo e cumprindo com a sua participação no Estado Democrático de Direito. Todavia, quando a pratica dos atos de policia judiciária ou judicial tangenciam a ilegalidade, dependendo do elemento subjetivo do agente que praticou a conduta poderá incidir a Lei de tortura.

1. INTRODUÇÃO:

Tortura
é o suplício, o tormento capaz de causar dor, angústia, aflição, medo e stress, no indivíduo a ela submetido. Pode ser impingida tanto física como moralmente. Os métodos empregados são vários. A própria submissão do indivíduo a um inquérito policial ou a um processo penal, dependendo de sua condição social, cultural ou religiosa, já é um meio capaz de torturá-lo moral ou psicologicamente. Obviamente, a instauração de Inquérito Policial ou de Ação Penal, quando presente a justa causa, tem amparo na lei não constituindo conduta típica.

A propósito da tortura que o processo causa são oportunas as observações tiradas de Carnelutti:
“O homem, quando suspeito de um delito, é jogado às feras. A fera, a indomável e insaciável fera, é a multidão. O artigo da Constituição, que se ilude em garantir a incolumidade do acusado, é praticamente inconciliável com aquele outro que sanciona a liberdade de imprensa. Logo surge o suspeito, o acusado, a sua família a sua casa, o seu trabalho são inquiridos, investigados, despidos na presença de todos. O indivíduo, assim, é feito em pedaços” .

O avanço cientifico, mormente da Medicina Legal e da Criminalística trouxe para a investigação criminal significativa contribuição não ostentando mais o entendimento do caráter absoluto da confissão, perdeu ela há muito o status de “rainha das provas". Enganam-se aqueles que a vêem como o coroamento da investigação. Os que assim pensam, na verdade o que querem é buscar um atalho, um caminho mais curto, uma resposta imediata já que muitas vezes a busca de vestígios e a coleta de materiais existentes no corpo de delito e o respectivo exame científico além de trabalhoso demanda muito tempo.

2. ORDENAMENTO JURÍDICO:

O art. 5º, inciso III, da Constituição Federal, estabelece que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” e no inciso XLIII, do mesmo dispositivo, equiparou a prática da tortura aos crimes hediondos, considerando-a como crime inafiançável e insuscetível de graça e anistia.

Vale notar que, não existia tipificação para o crime de tortura, somente quase dez anos após advento da Lei Maior de 1988 é que foi sancionada a lei nº. 9.455, de 07.04.1997, tipificando o crime de tortura.
Antes da Lei 9.455/97 a primeira lei que tipificou a tortura foi o Estatuto da Criança e do Adolescente, lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, no artigo 233. A lei nº. 9.455/97, no art. 4º revogou expressamente o art. 233 do ECA. Apesar de revogado o artigo, não foi abolido o crime previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente, uma vez que o fato nele previsto passou a ser definido ou no inc. II do art. 1º ou em seu § 1º, com aumento de pena de um sexto até um terço conforme preconiza o § 4º, inciso II.
Aliás, a Lei Maior, ao dar tratamento severo à prática de tortura, encontra-se em plena sintonia com os Tratados Internacionais de países humanistas.

2.1 CONDUTAS TÍPICAS:

No inciso I, do art. 1º da Lei de Tortura temos como condutas típicas, o constrangimento de alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico e mental. Exige, portanto, o dispositivo, que além do constrangimento feito através de violência ou grave ameaça que do mesmo resulte sofrimento físico e mental. Nas alíneas “a” e “b” requer dolo específico, ou seja, a conduta busca uma finalidade: na alínea “a”, obtenção de informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa e na alínea “b”, a violência ou a grave ameaça torturadoras é para provocar no sujeito passivo uma ação ou uma omissão de natureza criminosa. O tipo penal em comento não requer nenhuma qualidade especial do sujeito ativo, portanto, trata-se de crime comum que pode ser cometido por qualquer pessoa.
Nas duas alíneas em comento, não exige a lei para a consumação do delito que o objetivo visado pelo agente seja alcançado. Caso consiga seu intento ocorre o exaurimento do delito que deverá ser levado em consideração por ocasião da dosimetria da pena. Na alínea “c”, a tortura empregada não busca uma finalidade, visa tão somente punir a discriminação racial ou religiosa do agente.
Exemplo da espécie de tortura prova: Policial que tortura alguém para que confesse a prática de um crime. Exemplo de tortura para ação criminosa: réu que tortura uma testemunha presencial para mentir em juízo (responderá pelo crime de falso testemunho). Exemplo da espécie de tortura preconceito: há prática da tortura pelo agente para simplesmente discriminar uma pessoa em razão da sua raça ou religião.
Observação: O crime de tortura do inciso I se consuma no momento em que há configuração da causa sofrimento físico ou mental, independentemente do resultado alcançado com a prática do delito.

E se a pessoa for torturada para que venha a praticar uma contravenção penal? Se a pessoa for torturada para praticar uma contravenção (no caso da alínea b) prevalece entendimento que não basta tal situação para se encaixar no inciso I, “b”, tem de visar a prática de um crime. Podendo em tese configurar o crime previsto no artigo 146 do Código Penal (constrangimento ilegal) em concurso com a contravenção penal.

E se a vítima torturada não resiste e mente em juízo, praticará o crime de falso testemunho? Há configuração da coação moral irresistível é causa de inexigibilidade de conduta diversa. O delito não se mostra completo, por não haver o elemento da culpabilidade preenchido.

E o torturador responderá por qual crime? O agente do crime de tortura responderá por dois crimes: crime de tortura mais crime praticado pelo torturado na condição de autor mediato em concurso formal. Causando sofrimento físico ou mental já responderá pelo crime tortura, e se, o torturado vier a praticar o crime que era almejado, responderá também por ele na condição de autor mediato.

Observação: No caso da tortura discriminação só há o crime se a tortura for praticada em razão de discriminação racial ou religiosa. Questão sexual não configura discriminação necessária para que haja a configuração do crime de tortura, bem como não é abrangida a discriminação econômica ou social. Estes casos não configuram crime de tortura. Nestes casos, os agentes que agem com violência ou grave ameaça, movidos por estas razões, respondem por outro crime, a exemplo da lesão corporal.

No inciso II, a lei requer do sujeito ativo qualidade especial. É preciso que o agente tenha a guarda, poder ou autoridade sobre a vítima. Portanto, se não estiver presente uma das condições indicadas na lei o fato é atípico. Ao contrário do inciso I, a lei exige que a violência ou a grave ameaça, cause intenso sofrimento físico ou mental e deve ser empregada como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo, portanto, requer do agente dolo específico. Tal tipo penal é conhecido como tortura castigo.
Exemplos de tortura castigo: uma babá que bate em uma criança porque ela fez xixi na roupa; Enfermeira que castiga idosa por fazer suas necessidades na roupa; Polícia militar na cidade de Diadema parando e interceptando pessoas na rua e posteriormente as castigando, utilizando esta conduta violenta como medida de caráter preventivo.
Dessa feita, na hipótese de configuração da tortura castigo prevista no art. 1º, inciso II é importante que tenha a conduta torturante causado na vítima torturada um INTENSO sofrimento físico ou mental.
Deve-se comprovar esta intensidade do sofrimento físico ou mental que foi causado à vítima, pois se ele não estiver presente, a conduta será enquadrada no crime de maus-tratos (previsão no artigo 136 do CP), que é justamente a diferença entre a tortura e o crime de maus-tratos, ou seja, a intensidade do sofrimento da vítima.
Pergunta-se: Quando o parágrafo 1º menciona a expressão “Submeter pessoa presa” são englobadas quais pessoas neste conceito? A doutrina entende que a expressão deverá ser abrangente, entendendo como “pessoa presa”:

1. Preso definitivo e o preso provisório (seja em prisão penal ou extrapenal - prisão civil de devedor de alimentos, por exemplo).

2. O menor infrator internado na Fundação CASA (ex-FEBEM).

O mencionado “sujeito à medida de segurança” é o inimputável que se encontra em sistema de internação ou tratamento ambulatorial.

Aliás, esta tortura praticada sem qualquer finalidade infringe o disposto no art. 5º, XLIX da CF:
Art. 5º, CF
XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;

Exemplo: um carcereiro tortura um preso; deve-se analisar qual foi a finalidade com a prática deste crime, se foi utilizada simplesmente para tortura, se foi para provocar castigo, etc.

ANÁLISE DE ALGUMAS SITUAÇÕES HIPOTÉTICAS:

1) Oficiais do exército, aplicando trote nos recrutas, jogaram água nestes e lhes deram chineladas, entre outras condutas. Tal conduta é considerada como crime de tortura?

Por mais que exista a configuração da violência ou da própria tortura psicológica, se assim for entendido, não há enquadramento da conduta com o inciso I, pois tal prática não é cercada por nenhuma das finalidades requeridas pelo inciso.
No caso do inciso II deverá haver intenso sofrimento físico ou mental da vítima, e mesmo havendo tal sofrimento por um dos recrutas, não houve a finalidade alcançada do tipo, pois não foi a prática considerada como um castigo, mas sim como uma homenagem.
O §1º também não pode ser utilizado nesta hipótese, pois não eram as vítimas presas e nem sujeitas à medida de segurança.

2) A conduta da mãe que deixa a filha presa em casa, algemada, e com a língua grampeada é considerada como crime de tortura?

Não se enquadra tal conduta no inciso I, do art. 1º, lei 9455/1997 pois não configura-se qualquer das finalidades que são exigidas.
Também a filha não era presa nem sujeita a medida de segurança, portanto não se encaixa tal conduta no §1º, art. 1º, igualmente.
Poderá tratar-se do enquadramento da conduta da mãe no inciso II, art. 1º, lei 9455/1997, se ficar apurado que tais atos foram cometidos com a finalidade de aplicação de um castigo na filha. Se não ficar apurada esta finalidade precípua na conduta da agente, ela poderá responder apenas pelo crime de maus-tratos, de lesão corporal, etc.
CONTINUANDO A ANÁLISE DAS CONDUTAS TÍPICAS:

No § 2º do art. 1º, a lei prevê a punição daquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apura-las.
Destarte passando em revista o regramento do §2º do artigo 1º da lei 9455/1997 percebemos que em seu bojo, dois comportamentos omissivos são verificados, vejamos:

a) Omissão imprópria quando tinha o agente o dever de evitar;

O sujeito ativo desta espécie de omissão é o garante ou o garantidor, aquele que tem o dever de evitar a prática do crime. Exemplos: pai ou mãe que tem o dever de evitar tortura em face dos filhos; Delegado que tem o dever de evitar que seja praticada a tortura na delegacia; dever dos professores quanto aos seus alunos; dever dos médicos quanto aos seus pacientes; etc.
O sujeito passivo é o ofendido que poderá ser qualquer pessoa.

Este parágrafo sobre a omissão era necessário? Não. E pior que isto, estabeleceu-se com a edição deste parágrafo a mudança das penas para o torturador e para o garante que se omite em relação ao crime daquele que pratica comissivamente a tortura; ao passo que a Constituição Federal estabelece que o omitente deverá responder do mesmo modo que o torturador (Art. 5º, XLIII, CF).

Art. 5º, CF
XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;

O que fazer diante deste conflito da norma do art. 1º, §2º, lei 9455/1997 e o mandamento constitucional do art. 5º, XLIII, CF? Existem três correntes que estabelecem entendimentos para como lidar com este equívoco do legislador infraconstitucional:

1ª corrente
Entende esta corrente que a disposição do art. 1º, §2º é uma exceção prevista em lei e que deverá ser respeitada. É uma exceção pluralista à teoria monista. Este é o entendimento que prevalece.

2ª corrente
Esta parte do §2º é inconstitucional, pois o Juiz tem que ignorar a pena para o garante disposta em 01 a 04 anos de detenção e aplicar a pena de 02 a 08 anos de reclusão, seguindo o mandamento constitucional de aplicação da mesma pena para todos os envolvidos nos crimes hediondos equiparados.

3ª corrente
Trata-se, neste caso, de uma omissão culposa, pois se fosse uma omissão dolosa ele irá responder pela mesma pena do autor. Esta é a posição mais atécnica da doutrina, pois o crime culposo deve ser sempre expresso. E não há qualquer menção da omissão do garante em ser dolosa ou culposa.

Exemplo: um Delegado de plantão, percebendo que o sujeito está sendo levado para uma sala pelos investigadores, e concluindo que lá será torturado, neste momento nada faz. Configura-se o crime de tortura por omissão imprópria. Os investigadores responderão pela ação na prática do crime de tortura (com a pena cominada de 02 a 08 anos) e o Delegado responderá com pena de 01 a 04 anos de reclusão, por ter deixado de evitar que a tortura fosse realizada.

b) Omissão própria quando tinha o agente o dever de apurar.

Neste caso da omissão existe o dever de apurar a prática do crime, ou seja, se a tortura já aconteceu. Neste caso a pena menor se justifica. O sujeito ativo é a autoridade que possui o dever de apurar (crime próprio) e o sujeito passivo poderá ser qualquer pessoa.

Exemplo: Se réu confessa na Delegacia a prática de um crime e frente ao Juiz diz que somente confessou porque foi torturado, o membro do Ministério Público é obrigado a encaminhar a questão para Corregedoria da Polícia, sob pena de responder por tortura na modalidade de omissão própria, por deixar de apurar o crime de tortura (já que possuía o dever de apurá-lo).

Por seu turno, o § 3º prevê resultado além do dolo, nestes termos: Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos.
Trata-se de previsão da possibilidade de tortura dolosa com resultado de lesão corporal de natureza grave ou gravíssima ou morte, atribuído ao agente a título de culpa. Ou seja, é a figura do crime preterdoloso, ou no dizer dos italianos, preterintencionale.
A seu respeito, é oportuna a lição de NORONHA: “Consequentemente, no crime preterdoloso, há dolo no antecedente (minus delictum) e culpa no conseqüente (majus delictum). Há culpa porque há previsibilidade do efeito mais grave e é nisso que se funda a responsabilidade do agente” .

Pergunta: Esta espécie de qualificadora qualifica todos os crimes de tortura inclusive a tortura omissão (§2º)?

1ª corrente
Professor Rogério Sanches entende que qualifica no caso de tortura por omissão imprópria, no caso de quem tinha o dever de evitar, uma vez que na tortura por omissão própria, apenas se omitiu do dever de apurar, a tortura já teria ocorrido.
2ª corrente
O entendimento que prevalece é de que este parágrafo 3º somente qualifica a tortura por ação daquele que a pratica, não atingindo a tortura por omissão.

Obviamente, se existiu dolo de homicídio a pena a ser imposta é do homicídio qualificado previsto no art. 121, § 2º, III, do Código Penal, com pena de 12 (doze) a 30 (trinta) anos de reclusão, tornando-se fato atípico para crime de tortura.

2.2 PENA E SEUS EFEITOS:

O § 4º prevê aumento de pena de um sexto até um terço nas seguintes situações: se o crime é cometido por agente público; se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos ou se o crime é cometido mediante seqüestro.
Quem é considerado como agente público? A maioria da doutrina conceitua “agente público” nos termos do art. 327 do CP, equiparando ao conceito de funcionário público para fins penais, ou seja, agente público é aquele que exerce cargo, função ou emprego público, ainda que transitoriamente ou sem remuneração. A maioria abrange o funcionário equiparado do §1º do mesmo artigo.

Observação: Alberto Silva Franco estabelece que se a característica do “agente público” já é uma elementar do tipo não poderá ser aumentada a pena pelo fato de ser funcionário público, como modo de evitar-se o bis in idem.
Porém, Guilherme de Souza Nucci considera a aplicação este aumento mesmo nos crimes especiais que falam sobre guarda, autoridade, etc., pois eles não se referem apenas a funcionário público; não são deste modo, crimes próprios de funcionários públicos, podendo ser praticados por pais, tutores, entre outras autoridades que não se encaixam no conceito de funcionário público, etc. Segundo ele não há bis in idem, pois não existe o tipo penal específico para o funcionário público.

Quem é considerada como criança? O conceito é dado pelo ECA, será considerada como criança a pessoa que tiver 12 anos incompletos. O adolescente é a pessoa com até 18 anos incompletos.

Para saber se é ou não a vítima uma portadora de deficiência deve-se analisar a lei dos portadores de deficiência; é nesta lei que se estabelece se determinada circunstância é entendida ou não como deficiência.

O Idoso deverá possuir mais de 60 anos de idade, pois no dia de seu aniversário ela já é considerada idosa, mas a majorante só é aplicada para maior de 60 anos.

Observação: para se evitar a responsabilidade penal objetiva o torturador tem que saber que a vítima torturada é gestante, portadora de deficiência, maior de 60, criança, adolescente, etc.

Ademais, também haverá o aumento da pena se o crime é cometido mediante seqüestro. Oportuno assim advertir que, apesar do silêncio da lei, também abrange esta causa de aumento a tortura praticada em cárcere privado, que nada mais é que um sequestro com confinamento.

Ainda mais, a Lei não descuidou da previsão de efeitos civis da condenação no crime de tortura, estabelecendo, no § 5º, como efeitos civis da condenação a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para o seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada. Além desses efeitos, a condenação criminal torna certa a obrigação de reparar os danos materiais e morais causados pelo crime (art. 91, inciso I, do Código Penal). Tratam-se, de efeitos automáticos, não sendo necessário que o juiz os declare na sentença.
Em sendo o agente funcionário público responderá por infração administrativa prevista no respectivo estatuto ou em regulamento disciplinar, caso seja militar.

Em sendo assim, a indagação a ser feita é se este efeito previsto no §5º é automático ou não? Leia-se: Precisando ser fundamentado na sentença?
Para responder tal indagação, devemos rememorar que o art. 92, p. único do CP estabelece que em geral, os efeitos da sentença não são automáticos e deverão ser declarados na audiência. Destarte, formaram-se as seguintes posições:

1ª corrente
Como na lei de tortura não existe nenhuma disposição específica dizendo que dependerá o efeito disposto no §5º de decisão motivada do Juiz. Prevalece o entendimento no STJ que, na lei de tortura, o efeito da condenação é automático, diferentemente do que é disposto no Código Penal.
HABEAS CORPUS. LEI N.º 9.455/97. CONDENAÇÃO POR CRIME DE TORTURA.
PERDA DO CARGO PÚBLICO. IMPOSIÇÃO PREVISTA NO § 5º, DO ART. 1º, DA REFERIDA LEI. EFEITO AUTOMÁTICO E OBRIGATÓRIO DA CONDENAÇÃO. DESNECESSIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO. PRECEDENTE DESTA CORTE. 1. Ao contrário do disposto no art. 92, I, do Código Penal, que exige sejam externados os motivos para a decretação da perda do cargo, função ou emprego público, a Lei n.º 9.455/97, em seu § 5º, do art. 1º, prevê como efeito extrapenal automático e obrigatório da sentença condenatória, a referida penalidade de perda do cargo, função ou emprego público. Precedente do STJ. 2. Ordem denegada.
(HC 92247/DF, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 18/12/2007, DJ 07/02/2008 p. 1)

2ª corrente
Há doutrina que entende que este efeito automático não se aplica à condenação do crime de tortura omissão. Inclusive professor Rogério Sanches possui entendimento de que não se aplica a condenação aos efeitos do §5º automaticamente ao crime de tortura de omissão própria (daquele que deveria investigar o crime), apenas, mas o crime de tortura de omissão imprópria (daquele que está em posição de garantidor ou garante), sim.

Cumpre ressaltar ainda que, em obediência ao mandamento constitucional de criminalização do art. 5º XLII, o § 6º veda ao crime de tortura a prestação de fiança e a possibilidade da extinção da punibilidade pela graça ou anistia.
A graça é forma de indulgência soberana concedida por decreto do Presidente da República. Trata-se de indulto individual previsto dentre as atribuições do Presidente da República no art. 84, inciso XII, da Constituição Federal, já a anistia se refere a fatos políticos e é concedida pelo Congresso Nacional através de Lei, com sanção do Presidente da República, consoante art. 48, inciso VIII, da Magna Carta.

Por conta desta impossibilidade de concessão da fiança estaria vedado igualmente o benefício da liberdade provisória?

1ª corrente
Esta primeira corrente estabelece que a vedação da liberdade provisória está implícita na característica da inafiançabilidade do crime de tortura (HC 93940 – STF).
EMENTA: HOMICÍDIO DUPLAMENTE QUALIFICADO. CRIME HEDIONDO. LIBERDADE PROVISÓRIA. INADMISSIBILIDADE. VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL. DELITOS INAFIANÇÁVEIS. ART. 5º, XLIII E LXVI, DA CF. SENTENÇA DE PRONÚNCIA ADEQUADAMENTE FUNDAMENTADA. EVENTUAL NULIDADE DA PRISÃO EM FLAGRANTE SUPERADA. PRECEDENTES DO STF. I - A vedação à liberdade provisória para crimes hediondos e assemelhados que provém da própria Constituição, a qual prevê a sua inafiançabilidade (art. 5º, XLIII e XLIV). II - Inconstitucional seria a legislação ordinária que viesse a conceder liberdade provisória a delitos com relação aos quais a Carta Magna veda a concessão de fiança. III - Decisão monocrática que não apenas menciona a fuga do réu após a prática do homicídio, como também denega a liberdade provisória por tratar-se de crime hediondo. IV - Pronúncia que constitui novo título para a segregação processual, superando eventual nulidade da prisão em flagrante. V - Ordem denegada.
(HC 93940, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 06/05/2008, DJe-102 DIVULG 05-06-2008 PUBLIC 06-06-2008 EMENT VOL-02322-01 PP-00070)

2ª corrente
Esta segunda corrente estabelece que a inafiançabilidade não impede a concessão da liberdade provisória, sendo que quem deve avaliar se tal característica impede a concessão ou não é o Juiz que está apreciando o caso concreto. A proibição em abstrato da concessão da liberdade provisória é inconstitucional. Hoje, é o entendimento que prevalece no STF.

Vale notar ainda que, o §6º dispõe que o crime de tortura é insuscetível dos benefícios da graça ou da anistia. Tal dispositivo não veda a concessão do indulto e ele seria admitido para estes crimes (posição de Ricardo Antonio Andreucci).
No entanto, existe corrente doutrinária que estabelece que o indulto estaria implicitamente proibido porque, quando se proíbe o benefício da graça, que em sentido amplo abrange a graça, já em sentido estrito nada mais é que correspondente ao indulto (posição de Guilherme de Souza Nucci).

Observação: O STF entende que, mesmo a lei da tortura sendo posterior a dos hediondos, não revogou tacitamente a vedação de indulto de lá, levando em conta o princípio da especialidade, sendo que apenas na tortura é possível a concessão do indulto.

Finalmente, a Lei nº. 9.455/97, estabeleceu no § 7º, do art. 1º, a possibilidade de progressão de regime de cumprimento da pena uma vez que determinou regime fechado somente para início do cumprimento da pena privativa de liberdade.
Considerando que o crime de tortura é equiparado aos crimes hediondos por força do art. 5º, XLIII, da CF, e do art. 2º, da Lei 8.072, de 25.07.1990, não se justificava a discrepância que havia entre o § 1º da Lei nº. 9.455 e o art. 2º, § 1º, da Lei nº. 8.072, que previa o cumprimento da pena aplicada por crime hediondo ou equiparado integralmente em regime fechado.
O tratamento diverso, mais benéfico, dado ao responsável pela tortura, em contraposição àquele previsto para os demais crimes previstos na Lei nº. 8.072, não tinha justificativa plausível.
A incoerência do legislador acabou provocando acirrados debates judiciais em homenagem ao princípio da novatio legis in mellius, quando acusados ou condenados por crimes hediondos buscaram nos tribunais a aplicação da nova mensagem legislativa culminando com a Súmula n. 698, do Supremo tribunal Federal estabelecendo que não se estendia aos demais crimes hediondos a admissibilidade de progressão do regime de execução de pena aplicada ao crime de tortura.
Todavia, atualmente, com o advento da Lei nº. 11.464, de 28.03.2007, a discrepância foi solucionada, uma vez que é possível a progressão de regime, no caso dos condenados por crimes hediondos ou a eles equiparados que dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente.

3. FASE EXTRAJUDICIAL E JUDICIAL - MÉTODOS DE TORTURA:

Feitas essas breves considerações sobre a Lei nº. 9.455/97, cumpre destacar alguns métodos que lamentavelmente ainda são utilizados, por autoridades que vêem na confissão o coroamento da investigação policial, mormente quando o fato criminoso provoca comoção no seio da sociedade e a imprensa cobra das autoridades uma solução rápida.
O Código de Processo Penal, com as alterações introduzidas pela Lei n. 10.792, de 1º de dezembro de 2003, no artigo 186, assegura o direito do acusado de permanecer calado e não responder às perguntas que lhe forem formuladas. Regra essa aplicável ao interrogatório policial por força do art. 6º, inciso V, do mesmo codex. O artigo 187 estabelece divisão do interrogatório em duas partes. Na primeira parte as perguntas são sobre a pessoa do acusado e na segunda as perguntas são sobre os fatos.
Exercitando o acusado o direito de permanecer calado, nada mais pode ser feito pelo juiz ou pela autoridade policial em relação ao ato processual do interrogatório a não ser consignar que o acusado ou o indiciado se reservou no direito de permanecer calado. É sempre bom lembrar que consoante o Parágrafo único do art. 186 o silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.
Qualquer observação feita ao acusado, com o intuito de obter sua confissão, em tom ameaçador, no tocante às conseqüências de seu silêncio, importando-lhe com isso, sofrimento mental, poderá se presente o dolo, caracterizar a tipificação do delito de tortura, previsto no artigo 1º, inciso I, alínea “a”, da lei especial, mesmo porque, o tipo se contenta com o sofrimento físico ou mental, não exigindo para sua consumação que esse sofrimento seja intenso como ocorre no inciso II.
Na fase policial, a oitiva do indiciado, consoante determina o artigo 6º, inciso V, do Código de Processo Penal, deve ser feita, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III, do Título VII, do respectivo Livro, devendo o termo do interrogatório ser assinado por 2 (duas) testemunhas que lhe tenham ouvido a leitura. Portanto, nessa fase nenhuma “ameaça” ou “artimanha” deve ser feita ao indiciado para “arrancar” dele a confissão.
Qualquer meio de tortura quer seja física ou psicológica aplicada no interrogatório torna o ato ilegal e criminoso. Dentre eles podem ser citados as ameaças sutis como de “pedir a prisão preventiva caso não confesse o crime”; ameaça ou aplicação efetiva de torturas físicas como espancamentos, pau-de-arara, choques elétricos etc.; o tempo de duração da audiência de interrogatório muitas vezes é interminável prolongando injustificadamente por várias horas e em local que gera desconforto ao indigitado buscando, exclusivamente vencê-lo pelo cansaço, com o propósito de obter sua confissão.
Outros métodos condenáveis de interrogar podem ainda ser apontados: Interrogatório feito por mais de um policial. Condenável, primeiro porque pode constranger o indiciado e em segundo lugar porque não existe amparo no Código de Processo Penal que atribui no artigo 6º, esse dever somente à autoridade policial; interrogatório feito durante o período noturno, com prejuízo ao sono causando esgotamento físico e mental ao indiciado, com isso, resultando em tortura psicológica.
Os atos processuais devem ser feitos em dias úteis, no horário compreendido entre as 6 (seis) e as 20 (vinte) horas, conforme determina o artigo 172, do Código de Processo Civil. Aos atos processuais penais, dentre eles o interrogatório do indiciado ou do réu, exceção feita quando existe o periculum in mora, como por exemplo, no caso de prisão em flagrante delito uma vez que determina o artigo 304, que a autoridade interrogue o acusado, sobre a imputação que lhe é feita, lavrando-se o respectivo auto, com a comunicação imediata ao juiz (art. 5.º, inciso LXII, da Constituição Federal), outro exemplo que pode justificar o periculum in mora é o fato de existir alguma vítima em situação de perigo com a possibilidade de o indiciado fornecer no interrogatório o endereço do cativeiro, proporcionando sua liberação. Portanto, em caso de flagrante delito o interrogatório e demais oitivas podem ser feitos em seguida à apresentação do preso a autoridade em qualquer dia e horário o mesmo ocorrendo quando presente o periculum in mora plenamente justificado.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Diante do Estado Democrático de Direito que vivemos, regido pelo princípio máximo da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1º,III da CF), e mais, diante do mandamento constitucional de criminalização (art. 5º, III e XLIII, da CF), e ainda, tendo o acusado ou o indiciado o direito de permanecer calado e de não responder as perguntas que lhe forem formuladas (art. 186, do CPP) e que o seu silêncio, não importará em confissão, não podendo ser interpretado em prejuízo da defesa (186, Parágrafo único) e usando ele desse direito; Eventuais artimanhas, ciladas, mentiras, bem como, a de métodos cruéis (choques, “pau de arara”, queimaduras, lesões, etc.), nos interrogatórios, com o objetivo de conseguir sua confissão, configurará afronta ao nosso Estado Democrático de Direito, inflingencia à nossa Lei Maior, devendo ser punido o(s) agente(s) nos termos da Lei 9.455/97, quando presentes as elementares dos tipos ali previstos.