sexta-feira, 28 de outubro de 2011

"FLAGRANTE" PRORROGADO, POSTERGADO, PROTELADO ou DIFERIDO.

Existe “flagrante” prorrogado, postergado, protelado ou diferido?









Tecnicamente NÃO EXISTE!





De fato, o que grande parte da doutrina traz como flagrante prorrogado, postergado, protelado ou diferido é tecnicamente mecanismo investigativo que, nos termos da Lei, autoriza a prorrogação da ação policial em vista do flagrante delito, com a finalidade de melhor se desenvolver e desmantelar condutas criminosas.





Dissemos e defendemos essa posição porque, como ensinava Francesco Carnelutti o termo Flagrante significa “a chama, que denota com certeza a combustão; quando se há chama, é indubitável que alguma coisa arde” (Lecciones sobre el Proceso Penal; página 77); ou então, na clássica lição de Hélio Tornaghi, “flagrante é, portanto, o que está a queimar, e em sentido figurado, o que está a acontecer” (Curso de Processo Penal; página 48). Para reforçar ainda mais o significada de flagrante, destacamos as lições de José Frederico Marques para quem “flagrante delito é o crime cuja prática é surpreendida por alguém no próprio instante em que o delinquente executa a ação penal ilícita” (Elementos de direito processual penal; página 64).





Desse modo conceituando legalmente o termo flagrante, encontra-se o artigo 302 do Código de Processo Penal que prevê hipóteses de prisão quando os fatos delituosos ainda ardem, crepitam no calor da ocorrência.





Advirta-se que, parcela da doutrina, ganhando destaque o escólio de Aury Lopes Junior, tece críticas para as hipóteses previstas nos incisos III e IV do artigo 302 do Código de Processo Penal, uma vez que, os fatos consagrados em tais incisos, trariam fragilidade ao estado flagracial do delito, ou como salienta Aury Lopes Junior, verbis: “Esses flagrantes dos incisos III e IV são mais ‘fracos’, mais frágeis sob o ponto de vista da legalidade. Isso é consequência do afastamento do núcleo imantador que é a realização do tipo penal, refletindo na fragilidade dos elementos que os legitimam, caso em que aumenta a possibilidade de serem afastados pelo juiz no momento em que recebe o auto de prisão em flagrante” (O Novo Regime Jurídico da Prisão Processual, Liberdade Provisória e Medidas Cautelares Diversas; página 41/42). Por isso a doutrina em sua maioria denomina tais hipóteses como Flagrante impróprio ou Quase-Flagrante e Flagrante Presumido ou Ficto respectivamente.





Dentro dessa perspectiva, como sustentar que uma ação policial prorrogada, leia-se, não interventiva na ardência dos acontecimentos, seria tecnicamente um flagrante?





Ao que parece, trata-se de fato insustentável, onde colacionamos mais uma vez os ensinamentos de Aury Lopes Junior que destaca a posição de Gustavo Badaró justamente nesse sentido: “(...) nega que o flagrante diferido ou retardado seja uma nova modalidade de prisão. Entende que ‘há, apenas, uma autorização legal para que a autoridade policial e seus agentes que, a princípio, teriam a obrigação de efetuar a prisão em flagrante, deixem de fazê-lo, com vistas a uma eficácia da investigação’.”. E continua o autor: “obviamente, a autoridade policial, no momento posterior, quando descobrir os elementos mais relevantes, não poderá realizar a prisão em flagrante, pelo ato pretérito que foi tolerado com vista à eficácia da investigação” (O Novo Regime Jurídico da Prisão Processual, Liberdade Provisória e Medidas Cautelares Diversas; página 52).





Aliás, não fosse previsão legal autorizativa desse mecanismo de investigação, certamente os policiais (que são obrigados a prender em flagrante – flagrante compulsório – segunda parte do artigo 301 do Código de Processo Penal) incorreriam no crime de prevaricação – artigo 319 do Código Penal.





Ressalta-se nesse ponto que, nosso Ordenamento Jurídico possui as seguintes Leis que autorizam tais mecanismos investigativos: Lei 9.034/95 (Lei de Crimes Organizados), Lei 11.343/06 (Lei de Drogas) e Lei 9.613/98 (Lei de Lavagem de Capitais).





Certo é que, as próprias Leis autorizativas desses mecanismos investigativos foram técnicas no sentido de não intitular tais formas de condutas policiais como flagrante, conforme se depreende da análise das normas autorizativas:





- Lei 9.034/95, artigo 2o, inciso II: a ação controlada, que consiste em retardar a interdição policial do que se supõe ação praticada por organizações criminosas ou a ela vinculada, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações. (grifo nosso).
- Lei 11.343/06, artigo 53, inciso II: a não-atuação policial sobre os portadores de drogas, seus precursores químicos ou outros produtos utilizados em sua produção, que se encontrem no território brasileiro, com a finalidade de identificar e responsabilizar maior número de integrantes de operações de tráfico e distribuição, sem prejuízo da ação penal cabível. (grifo nosso).
- Lei 9.613/98, artigo 4º, parágrafo 4º: A ordem de prisão de pessoas ou da apreensão ou sequestro de bens, direitos ou valores, poderá ser suspensa pelo juiz, ouvido o Ministério Público, quando a sua execução imediata possa comprometer as investigações. (grifo nosso). Para esta hipótese, esquecida por grande parte da doutrina, uma observação se faz necessária, isso porque, a prisão em flagrante não necessita de ordem, onde, até mesmo um particular pode realizá-la; logo, para o presente caso, a lei referiu-se a prisão preventiva ou temporária. Aliás, assim são os ensinamentos de Renato Brasileiro da Silva para quem: “ao referir-se à suspensão da prisão de pessoas, inequivocamente referiu-se à prisão preventiva, eis que a prisão em flagrante não depende de ordem judicial”. O autor prossegue concluindo: “Assim, para a autoridade policial e seus agente, a prisão em flagrante continua figurando como obrigatória nos casos de lavagem de capitais, eis que não abrangida pelo dispositivo em análise”. (Manual de Processo Penal – volume I; página 1287).





Todavia, não podemos dizer que dentro dessa hipótese de mecanismo de investigação policial não possa existir um flagrante. Isso porque, situação pode ocorrer no sentido de se constatar a consumação de um crime quando da intervenção policial.





Exemplificando: Usuário de droga vai comprar seu entorpecente em determinado local (conhecida no meio policial como “biqueira”). No local, policiais deparam-se com a conduta da compra da droga, todavia percebem que, o vendedor da substancia entorpecente não é de fato o dono daquele local (ou na linguagem policial, “o patrão da biqueira”), não efetuando a prisão daquele que vendeu a droga, tão pouco do usuário, para esperar a oportunidade de prender de fato quem é o verdadeiro dono (“patrão”) do local. Nesse sentido, os policiais ficam no encalço do vendedor (intitulado na rotina policial como “vapor”) logrando êxito em perceber que tal pegava a droga dentro de uma casa, onde, de fato, estava o real dono das drogas que eram vendidas. Certo desse cenário, os policiais dirigem-se até a residência onde deparam-se com uma grande quantidade de droga guardada, bem como, o verdadeiro dono de tais entorpecentes.





No caso retratado, teremos um flagrante próprio, pois, o tipo penal previsto no artigo 33 da Lei 11.343/06 é considerado misto alternativo, ou seja, trata-se de crime de ação múltipla ou conteúdo variado prevendo condutas delituosas permanentes como, por exemplo, o núcleo típico “manter em depósito”, “guardar”, “trazer consigo”, “expor à venda”, etc, logo, configuradoras do flagrante delito (artigo 303 do Código de Processo Penal).





Uma salutar observação deve ser feita para que abusos não ocorram e que as atividades de polícia judiciária fiquem de acordo com a Lei. Ou seja, para algumas ações policiais autorizadas legalmente no sentido de não se deter alguém quando estiver praticando conduta delituosa (ou seja, em flagrante), somente será válida se houver, além da previsão legal (Estado de Direito), também a autorização judicial. Por exemplo: Lei 11.343/06 em seu artigo 53, prevê o retardamento da ação policial (inciso II), bem como, a exigência de autorização judicial, após prévia consulta do Ministério Público (caput).





Outra indagação se faz pertinente: Qual a atitude a ser tomada quando a ação policial prorrogada não encontrar estado flagrancial no momento de sua intervenção? Prisão em flagrante não há! Então o que pode ser feito?





A resposta dar-se-á exatamente na perspectiva de lançarmos mão dos instrumentos cautelares restritivos ou privativos de liberdade, dentro de uma perspectiva de necessidade e adequação aos fatos, previstos nos artigos 282 c/c 283 do Código de Processo Penal. Aliás, outro não é o entendimento de Aury Lopes Junior para quem: “o que deverá ser feito – em caso de necessidade demonstrada – é representar pela prisão temporária ou preventiva. Com isso, o flagrante diferido não constitui uma modalidade de prisão, senão um instrumento-meio, com vistas à eficácia da investigação. A partir das informações obtidas pelo não-agir da polícia naquele momento, instrumentaliza-se o posterior pedido de prisão temporária ou preventiva” (O Novo Regime Jurídico da Prisão Processual, Liberdade Provisória e Medidas Cautelares Diversas; página 52).




Aliás, outra não é a posição dos autores Nestor Távora e Rosmar Antonni que assim exemplificam o ocorrido e concedem solução para os fatos: “(...) hipótese de policiais que acompanham a subtração de veículo que será utilizado para transportar carregamento de armas, deixando de prender em flagrante pelo crime meio (furto), para autuá-los pelo crime fim (tráfico de armas). A toda evidencia, o que ocorre, na espécie, é a escolha mais oportuna da infração que vai motivar o flagrante. Caso eventualmente o carregamento de armas não chegue ao seu destino, frustrando a atividade da polícia, restará a instauração de inquérito pelo crime de furto, pois o flagrante, para esta infração, já passou”. (Curso de Direito Processual Penal; p. 487).




Diante do exposto, concluímos que, o que a doutrina vem apontando como “flagrante prorrogado, postergado, protelado ou diferido” tecnicamente é um mecanismo investigativo, deflagrado por meio de uma ação policial controlada, seguindo parâmetros legais, no sentido de melhor atender aspectos investigativos para que se possa apurar autoria e materialidade delitiva, instrutivos de uma ação penal com a objetividade de colimar conteúdo probatório à mesma, aproximando-se ao máximo da verdade real dos fatos, identificando e responsabilizando um maior número de delinquentes. Urge salientar que, também são exemplos de mecanismos investigativos previstos em Lei: infiltração de policial (Lei 11.343/06, artigo 53, inciso I; e, Lei 9.034/95, artigo 2o, inciso V); interceptação ambiental (Lei 9.034/95, artigo 2o, inciso IV) e interceptação telefônica (Lei 9.296/96).

BIBLIOGRAFIA:



CAPEZ, Fernando; Curso de Processo Penal; editora Saraiva; 2011.



CARNELUTTI, Francesco; Lecciones sobre el Proceso Penal; Tradução: Santiago Santis Melendo; editora Bosch; 1950.



MARQUES, José Frederico; Elementos de direito processual penal; editora Bookseller, 1997.



LIMA, Renato Brasileiro de; Manual de Processo Penal – volume I; editora Impetus; 2011.



LOPES JUNIOR, Aury; O Novo Regime Jurídico da Prisão Processual, Liberdade Provisória e Medidas Cautelares Diversas; editora Lumen Juris; 2011.



OLIVEIRA, Eugenio Pacelli; Curso de Processo Penal; editora Lumen Juris; 2008.

TAVORA, Nestor; ANTONNI, Rosmar; Curso de Direito Processual Penal; editora Jus Pudivm; 2008.



TOURINHO FILHO, Fernando da Costa; Manual de Processo Penal; editora Saraiva; 2004.



TORNAGHI, Hélio; Curso de Processo Penal; editora Saraiva; 1990.



ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique; Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral; editora Revista dos Tribunais; 2002.

sábado, 15 de outubro de 2011

UM ESTUDO SOBRE DOLO E CULPA.

PODE UM CRIME DOLOSO TRANSMUDAR-SE EM CRIME CULPOSO?


Sim, pode!


Para entender essa resposta devemos complementá-la dizendo, um CRIME COM DOLO DE PERIGO PODERÁ TRANSMUDAR-SE EM CRIME CULPOSO DE DANO POR CULPA CONSCIENTE!


Isso porque o DOLO DE PERIGO é aquele que ocorre quando o agente quer (dolo direto de perigo) ou assume o risco de (dolo eventual de perigo) expor a perigo bens ou interesses juridicamente protegidos. Por seu turno, a CULPA CONSCIENTE ocorre quando o agente prevê o resultado e realiza a conduta acreditando sinceramente que tal não ocorrerá.


Sendo assim, no crime com DOLO DE PERIGO, o agente possui a VONTADE DE EXPOR o bem jurídico ou interesse protegido à probabilidade de dano; que, em caso de este ocorrer, o crime transmudar-se-á em culposo por culpa consciente, uma vez que, na CULPA INCONSCIENTE o agente não prevê o resultado danoso.


Conclui-se portanto que, se o agente atua com dolo de perigo, contudo sobrevêm lesão ao bem ou interesse juridicamente protegido, teremos um crime culposo diante da lesão superveniente!


Passemos a exemplificar os fatos para aclarar as ideias. Para tanto utilizaremos os ensinamentos de Flávio Augusto Monteiro de Barros: Equilibrista que, a pedido do dono do circo, exibe-se sem a rede de proteção, se o equilibrista terminar o espetáculo incólume, sem sofrer qualquer tipo de queda, haverá a responsabilização do dono do circo por crime de periclitação da vida – artigo 132 do Código Penal. Todavia, se o equilibrista sofrer uma queda e vir a morrer, haverá responsabilização do dono do circo por homicídio culposo - Direito Penal Parte Geral, vol. 1, 2011, Editora Saraiva, pag. 254.


Cabe aqui uma advertência prolíxa, onde aproveitaremos o ensejo para deixar uma pergunta que responderemos em um post específico.


Ou seja, no exemplo utilizado, estamos falando de dolo de perigo; Mas se houver dolo de dano por parte do dono do circo, e este, a par de não querer o resultado mas assume o risco de produzi-lo - morte do equilibrista; o fato passará a ser enquadrado no dolo eventual de dano, por meio do qual, o dono do circo será responsabilizado por, no caso de queda e morte do equilibrista, homicídio doloso por dolo eventual.


Por outro lado, como fica o enquadramento típico do dono do circo se a apresentação do equilibrista passou incólume, terminando a mesma com os aplausos da plateia que se ardia em assovio e gritos, bem como, com os agradecimentos de seu patrão, o mórbido dono do circo? Podemos enquadrar o dono do circo em tentativa de homicídio por dolo eventual? Ou, atribuir-lhe outro crime como o de periclitação da vida?


Bons estudos!