segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

PLATÃO PARTE II

PLATÃO:  A REPÚBLICA

Os Símiles da República na formação do Filósofo e sua   prática
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)      

 

I - Introdução

                       

            No fim do livro VI e o início do VII desenvolve-se alguns dos temas mais importantes da República, talvez até mesmo de toda a filosofia platônica. Trata-se dos símiles do Sol, da Linha e da Caverna, para a formação do filósofo e sua prática.

 

            O horizonte do discurso que agora se manifesta são as imagens sucessivas do sol, linha e da caverna, é o da clássica distinção entre mundo visível (sensível) e mundo inteligível.

 

            Certamente o que aqui está em jogo é o problema do conhecimento, mas também entre conhecimento e práxis, entre o mundo de aquisições intelectuais e o da vida concreta, mais precisamente o da política.

 

            O texto afirma também a relação entre os três símiles: do Sol com o da Linha em VI.509c; e deste último com o da Caverna em VII.517 a-c, devendo-se comparar o mundo visível à caverna e o inteligível à ascensão dos prisioneiros ao mundo superior.

 

            As três alegorias são partes complementares e interdependentes de um só todo. Juntas constroem a base metafísica da teoria e currículo da educação superior em Platão.

 

II- Símile do Sol

 

            Primeiro temos o símile do Sol, que mostra que esse astro está para o mundo visível como o Bem para o invisível (VI 507b-509d).

            Platão considera a ideia do bem como a de um saber mais elevado (“megiston mathema” – 505 a), é a ideia suprema, que torna inteligível o mundo.  Em que pese Platão não afirmar explicitamente que o bem dentre as idéias seria hierarquicamente a mais elevada, dá a entender, quando em argumentos trata do bem. 

             J.E. Raven  definiu o Bem do seguinte modo: “ O Bem , para Platão, é, em primeiro lugar, e com mais evidência, a finalidade ou alvo da vida, o objeto supremo de todo o desígnio e toda a aspiração. Em segundo lugar, e mais surpreendentemente, é a condição do conhecimento, o que torna o mundo inteligível e o espírito inteligente. E em terceiro, último e mais importante lugar, é a causa criadora que sustenta todo o mundo e tudo o que ele contém, aquilo que dá a tudo o mais a sua própria existência.”(Rep.Introdução, pag.XXVII, Fundação Calouste G., 4ª edição)    

             No Livro VI 507 b3-508c2, ele discorre:

            “Portanto, nós dizíamos – finalmente Sócrates – que há muitas coisas belas e muitas boas, e todas assim as chamamos e definimos com o discurso. E em seguida dissemos que existem o belo em si e o bom em si, e dessas muitas coisas consideramos cada uma em relação a uma idéia, que dizemos ser uma, e cada uma chamamos “o que é”. E que muitas coisas se vêem, mas não se apreendem com o intelecto, enquanto que as idéias se apreendem com o intelecto, mas não se vêem. Ora, nós vemos as coisas visíveis com a visão e as outras coisas sensíveis com os outros sentidos. A faculdade mais perfeita é a da visão, porque, diferentemente dos outros sentidos, precisa de outra coisa, isto é, da luz, que é a ligação mais preciosa entre a sensação da visão e a possibilidade de ser visto. Da luz é senhor o sol, cuja luz permite ver e ser visto. Pois, a relação entre a visão e este deus é por natureza a seguinte: a visão não é o sol, mas aquele que dos sentidos mais lembra no aspecto o sol, e a sua faculdade deriva-lhe do sol; o sol não é a visão, mas sendo sua causa, é por ela visto. E então eu chamo o sol filho do bem, gerado pelo bem e análogo a ele, de maneira que no mundo inteligível o bem é relativamente ao intelecto e aos inteligíveis aquilo que no mundo sensível o sol é relativamente à visão e aos visíveis” (VI 507b3 – 508c2).

            A analogia é, por conseguinte, também matemática, a construção de uma relação, de uma proporção, que podemos esquematicamente da seguinte maneira:

No mundo inteligível                         =                     No mundo sensível

Bem: intelecto/inteligíveis                 =                     Sol: visão/visíveis

            “ Tal como há diferença, relativamente à faculdade de ver enquanto tal, entre ver coma luz do sol e ver por meio das luzes noturnas, o mesmo acontece com a alma: quando ela se fixa de maneira sólida sobre o que é iluminado pela luz da verdade e do que é, colhe-o e conhece-o, e é evidente a sua inteligência; quando se fixa no que é misto de trevas, no que nasce e morre, então só tem opiniões e assemelha-se a uma pessoa que não tem intelecto” (VI 508d).

             Significa que um homem que conhece e tem inteligência das coisas inteligíveis realmente consegue o conhecimento verdadeiro, já se esse  homem, pelo contrário,  considera apenas o mundo do devir, da mutabilidade, o mundo visível, terá apenas “ doxa”, opinião e é comparado a uma pessoa que não tem intelecto.  

            “ Ora, o que dá verdade as coisas conhecidas e dá a faculdade de conhecer a quem conhece é precisamente a idéia do bem, causa da epistéme e da verdade. E tal como no mundo visível a luz e a visão são semelhantes ao sol, mas não são o sol, assim, no mundo inteligível a epistéme e a verdade são semelhantes ao bem, mas não são o bem. A condição do bem deve ser tida em considerações ainda maior” (VI 508 e 1-509 a5).  

            A ideia do bem, aqui, é o que transforma os conhecimentos num sistema fortemente organizado que podemos chamar ciência, epistéme; e, ao mesmo tempo, dá verdade, em nível superior, aos mesmos conhecimentos, é o que dá maior valor aos próprios conhecimentos. Neste sentido, deve-se interpretar a idéia do bem como causa também da verdade; e esta idéia do valor maior que a idéia do bem confere aos conhecimentos  será reafirmada logo em seguida, realçando mais uma vez que o sentido do que se está a dizer está no interior da imagem que está a usar.

            “Continua então a examinar esta imagem. O sol confere as coisas visíveis não só a faculdade de serem vistos, mas também geração, crescimento e alimento, embora ele mesmo não seja geração; da mesma forma, o bem confere as coisas cognoscíveis não só a propriedade de serem conhecidos, mas também ser e essência, embora o bem não seja essência, mas algo que por dignidade e potência está além da essência” (VI 509 a-b).

            Percebe-se  claramente a analogia do sol com o bem. A comparação não se reduz a uma simples contraposição entre o mundo sensível e o inteligível. Constata-se a função, cognitiva e prática, respectivamente do bem e do sol. De fato, no mundo sensível, isto é, no mundo concreto do nosso viver, o sol torna as coisas visíveis,  já no  mundo do conhecimento, o bem é condição do conhecimento, sem que ele mesmo seja conhecimento ou vida, porque está além do visível. No mundo inteligível, isto é, na construção dos nossos conhecimentos, o bem dá verdade aos nossos conhecimentos, permite a sua boa realização, ou seja, insere-os na concretude da nossa existência, sem que ele mesmo seja reduzível à existência, porque está além da existência.

            Trata-se do horizonte aberto do dever ser, do nosso agir em vista de algo, que pela sua altíssima dignidade merece todo o esforço do filósofo/governante que tende a realizá-lo. Numa palavra, o bem, estando “além” da existência, é o fim das nossas ações e, simultaneamente, o que dá valor à nossa ação.

III – Símile da linha: a faculdade do conhecimento e dos seres.

            Ela trata do Conhecer e do Ser.        

            Aqui a imagem/analogia do sol passa para a da linha (VI 509d-511e).

            Há dois gêneros, o visível e o inteligível:

            É como se pegasse numa linha dividida em segmentos desiguais e, mantendo constante a relação, subdividisse ainda o que representa o gênero visível do que representa o gênero inteligível (VI 509d4-8).    

            Dividem-se os primeiros dois segmentos em dois, de maneira a resultar quatro segmentos e, por conseguinte, os dois segmentos originários, que representam os dois mundos, sensível e inteligível, são distinguidos em outro dois segmentos.

            O mundo visível (horata ou doxata) , está sujeito a doxa (opinião), devido a mutalidade, tem em primeiro lugar uma zona de eikónes ( “imagens”, reflexos nas águas, pinturas...), são os seres imagéticos, conhecidos pela eikasía (“suposição”). Num nível mai elevado, temos todos os seres vivos (zoa) e objetos do mundo,  ou seja, os seres físicos e fabricados,  esses modelos são modelos para os seres imagéticos, são conhecidos através de “pístis” (“fé, crença”).

             O mundo inteligível (nóeta), está sujeito a sophía (saber),  tem também dois setores proporcionais, o inferior e o superior, o primeiro são os dos seres matemáticos e afins, estes são modelos para os seres físicos, são apreendidos através da diánoia (“entendimento” ou “razão discursiva”) e o segundo são os dos seres formais as idéias, são modelos para os seres matemáticos e afins, são apreendidos só pela nóesis (“inteligência” , “razão intuitiva”, “intuição refinada”). Nesta última distinção poderá residir, como alguns supõem, a finalidade principal da analogia: o contraste entre o conhecimento pela dianóia, que é o das ciências, e o que é pela noesis, que é o da filosofia. Mas não é menos importante a antinomia entre opinião e saber, entre doxa e sophia.

            Terás, em relação recíproca de clareza e obscuridade, A) no mundo visível, um primeiro segmento: 1) as imagens (509e1: eikónes). Por imagens entendo as sombras, as que aparecem na água e nos espelhos, e em coisas do gênero; 2) um segundo segmento, que é aquilo a que se assemelha o primeiro: os animais, as plantas e todos as coisas artificiais. Ora, tal como o opinável se distingue do cognoscível relativamente à verdade, também a imagem se distingue daquilo de que é imagem; B) no gênero do inteligível: 3) a alma procura o inteligível recorrendo, como que a imagens, àquelas que no caso anterior eram as coisas imitadas, partido de hipóteses e indo não para o princípio, mas para o fim; 4) na outra parte, que conduz a um princípio não hipotético, a alma procura o inteligível partindo de hipóteses, mas sem as imagens relativas ao inteligível e pesquisando exatamente com as idéias e por meio delas (VI 509e-510b).  

             Considerando os quatro segmentos, a “inferioridade” de um segmento relativamente ao sucessivo diz respeito à verdade, conforme 510 a9: é em relação à verdade que as imagens se distinguem daquilo que são imagens. A distinção parece pertencer ao nível gnosiológico: a isto alude não só a relação entre clareza e obscuridade (VI 509d9), mas também a outra, problemática, referente ao “opinável” e ao “cognoscível” (VI 510a9). Onde é claro que o opinável se distingue do cognoscível porque só a este último cabe a verdade, enquanto que ao outro não.  Haveria um “conhecimento obscuro”, que podemos chamar opinião, e um “conhecimento claro”, que chamamos simplesmente conhecimento, e a diferença residiria apenas no método com o qual nos dirigimos para os objetos do nosso conhecimento.

            Quanto ao segundo segmento temos uma segunda formulação por Sócrates do nível B, pois a anterior não ficou clara a Gláucon :

            “3): alguns dos que se ocupam de geometria, cálculo e coisas afins, admitem por via hipotética o ímpar e o par, as figuras geométricas, três espécies de ângulos e coisas semelhantes. E como se conhecessem estas coisas, reduzem-nas a hipóteses e pretendem não ter de dar conta nem a si mesmos nem aos outros, como se fosse coisa clara a todos. Estas pessoas fazem uso das espécies visíveis e a partir  delas constroem discursos, mas têm em mente as coisas às quais estas se assemelham, e servem-se das coisas que modela como se fossem imagens, procurando ver as realidades em si que não se podem ver senão com a razão discursiva (VI 511a1:dianóia). Esta ideia é sim inteligível, mas de tal modo que a alma é obrigada, a investigá-la servindo-se de hipóteses sem se dirigir para o princípio, dado que não é capaz de transcender as hipóteses, mas serve-se delas como antes se servia das imagens. É o mundo da geometria e das artes irmãs” (VI 510c-511b)

            Aqui se esclarece explicitamente que esta secção pretende simbolizar os conhecimentos matemáticos, geométricos, e das “artes irmãs”: as imagens ainda estão presentes e incanceláveis.

            Elas são, por  um lado, as figuras reais que se “vêem”, isto é, percepcionam-se sensivelmente, como os triângulos, quadrados, todas as figuras geométricas que estes homens constroem desenhando, figuras que constituem uma espécie de “idéias visíveis”(VI 510d5); mas, por outro lado, são, mais em geral, “hipóteses” puramente racionais. De fato, a elas pertencem também “o par e o ímpar” (VI 510c4), que não são, a rigor, imagens visíveis. Hipóteses, portanto, no sentido literal de algo que se “sobrepõe” ao dado sensível para compreendê-lo e conhecê-lo, algo que porém não deriva do próprio dado sensível por via de abstração, mas constitui precisamente o “modelo” racional, só racional, que permite compreender e conhecer a imagem sensível. E a imagem continua a estar fortemente presente: não só são imagens as “coisas” às quais aplicamos “o modelo”do triângulo, do quadrado, etc., mas são imagens as mesmas figuras geométricas que eles desenham (VI510e1), imagens de algo que não se pode “ver” a não ser unicamente com a razão discursiva (dianóia); imagens/hipóteses que estas ciências assumem de maneira imediata. Platão realça a imediatez intuitiva das idéias matemáticas(par/ímpar) e das geométricas (triângulo etc.), mas também o fato de o método hipotético assumido por elas ser um método axiomático. Portanto, a característica de todas estas ciências é o fato de elas não “darem conta” das imagens/hipóteses que assumem, exatamente porque as consideram coisas evidentes a todos (VI 510c7-d1;cf.VII531e 1-5).   

            Temos por fim: ”4) a outra secção do inteligível, a que o próprio discurso atinge com a “força da dialética”, fazendo das hipóteses não princípios, mas realmente “pré-supostos”, quase como pontos de apoio e de salto, para que ao dirigir-se para o que não mais tem pressuposto, ao princípio de tudo, e ao atingi-lo, volte, apegando-se “pari passu” ao que dele deriva, a descer até as conclusões, sem servir-se absolutamente nada do sensível, mas só das idéias, por elas e através delas, e se termine nas idéias” (VI 511b-c).

            Há, então, uma intervenção de Gláucon (VI 511c3-4), que oferece um resumo do que Sócrates disse:

            “Com isto pretende-se definir aquela parte do real e do inteligível que é contemplada pela “ciência dialética” e que é mais clara do que a contemplada pelas chamadas artes, para as quais as hipóteses são princípios. E os que observam os objetos das artes são obrigados a observá-los com o pensamento discursivo sem fazer recurso às sensações, e parece-te que não usam o intelecto porque os examinam sem retornar ao princípio, mas por via de hipóteses, mesmo que aqueles objetos sejam inteligíveis. E tu chamas dianóia à condição destas pessoas, e não intelecto, e considera-a algo entre a opinião e o intelecto”(VI511c-d).

            Sócrates aprova esta interpretação de Gláucon.

            Esta última secção da linha simboliza, portanto, a dialética. De forma declarada, ela é a única disciplina, aliás, a única ciência, a não recorrer a imagens. Mas o seu ponto de partida é dado por imagens, só que elas não lhe servem para permanecer ancorada ao mundo das imagens, e sim para ir além dele. Todavia, aqui é importante o fato de a hipótese, que de certo modo é sempre uma imagem e constitui o “princípio” inteligível de explicação e conhecimento do mundo real, constituir agora somente a base para o salto aquisitório de outro “princípio” que não é mais uma hipótese, mas que funda todas as outras hipóteses e não é, por sua vez, fundado por nada. Como é natural, é o mundo das idéias (cf. VI 511b5), metodologicamente bem-distinto não só do mundo das coisas sensíveis, mas também do das imagens científicas que servem para explicar as coisas sensíveis.

            Após ter aprovado o “resumo”  Sócrates dá o acabamento final: a qualificação de “disposição”, que Gláucon destinara ao segmento da “diánoia”, agora torna-se a qualificação de quatro “pathémata em têi psychêi”: trata-se, portanto, de quatro “pathémata” da alma, isto é, afecções, características, atitudes, disposições, funções da alma. Eles são, partindo do último, ou seja, do mais alto:

            “4. A intelecção, ‘nóesis; 3. O pensamento dianoético, ‘diánoia’; 2. A crença, ‘pistis’; 1. A imaginação, ‘eikasía’(VI511d8-e2), e estão ordenados proporcionalmente, afirmando que do mesmo modo em que o seu objeto participa da verdade, também eles participam de clareza”(VI511d-e).

            Constata-se a relação analógica fundamental é a da verdade e a da clareza, relação que liga os quatro segmentos da linha; razão pela qual, se houver uma gradualidade, isto é, uma relação de menor a maior,  diz  respeito ao nível gnosiológico, o qual visa a verdade e a clareza do conhecimento.

IV- Símile da Caverna

            O Livro VII trata do Mito da Caverna, 514a -518b.  No centro de A República, coloca-se a célebre “Alegoria da Caverna”. O mito foi interpretado sucessivamente como expediente utilizado por Platão para simbolizar a metafísica, a gnosiologia, a dialética e até mesmo a ética e a mística platônicas. É o mito que expressa Platão na sua totalidade.

            Imaginemos homens que vivam numa caverna cuja entrada se abra para a luz em toda a sua largura, com um amplo saguão de acesso. Imaginemos que os habitantes dessa caverna tenham as pernas e o pescoço amarrados de tal modo que não possam mudar de posição e tenham de olhar apenas para o fundo da caverna. Imaginemos ainda que,  imediatamente à frente da caverna, exista um pequeno muro da altura de um homem e que, por trás desse muro e, portanto, inteiramente escondidos por ele, se movam homens carregando sobre os ombros estátuas trabalhadas em pedra e em madeira, representando os mais diversos tipos de coisas. Imaginemos também que, por trás desses homens, esteja acesa uma grande fogueira e que, no alto, brilha o sol. Finalmente, imaginemos que a caverna produza eco e que os homens que passam por trás do muro estejam falando de modo que suas vozes ecoem no fundo da caverna.

            Se isso acontecesse, aqueles prisioneiros da caverna nada poderiam ver além de pequenas estátuas projetadas no fundo da caverna e ouviriam apenas o eco das vozes. Entretanto, acreditariam, por nunca terem visto coisa diferente, que aquelas sombras eram a única e verdadeira realidade e que o eco das vozes representasse as vozes emitidas por aquelas sobras. Suponhamos, agora, que um daqueles prisioneiros consiga desvencilhar-se dos grilhões que o aprisionam. Com dificuldade, ele se habituaria à nova visão com a qual se deparava. Habituando-se, porém, veria as estatuetas moverem-se por sobre o muro e compreenderia que elas são muito mais verdadeiras do que as coisas que antes via e que agora lhe parecem sombras. Suponhamos que alguém traga nosso prisioneiro para fora da caverna e do outro lado do muro. Primeiramente, ele ficaria ofuscado pelo excesso de luz; depois, habituando-se, veria as coisas em si mesmas; e, por último, veria inicialmente de forma reflexa e posteriormente em si mesma, a própria luz do sol. Compreenderia, então, que estas e somente estas são as realidades verdadeiras e que o sol é a causa de todas as outras coisas visíveis.

            Antes de tudo, o mito da caverna traduz os diversos graus em que ontologicamente se divide a realidade, isto é, os gêneros do ser sensível e suprassensível com suas subdivisões: as sombras da caverna simbolizam as aparências sensíveis; o muro representa a linha divisória entre as coisas sensíveis e as suprassensíveis; as coisas verdadeiras situadas do outro lado do muro são representações simbólicas do ser verdadeiro e das Ideias e o sol simboliza a Ideia do Bem.

            O mito simboliza os graus do conhecimento nas duas espécies em que ele se realiza e nos dois graus em que essas espécies se dividem: a visão das sombras simboliza a “eikasía” ou imaginação e a visão das estátuas representa a “pístis” ou crença; a passagem da visão das estátuas para a visão dos objetos verdadeiros e para a visão do sol, antes de forma mediata e posteriormente imediata, simboliza a dialética em seus vários graus e a intelecção pura.

              O símile da caverna simboliza o aspecto ascético, místico e teológico do platonismo: a vida na dimensão dos sentidos e do sensível é a vida na caverna, assim como a vida na pureza e plenitude da luz é a vida na dimensão do espírito. O voltar-se do sensível para o inteligível é expressamente representado com a “ libertação das algemas”, como conversão, enquanto a visão suprema do sol e da luz em si mesma é a visão do bem e a contemplação do Divino.

            Essa alegoria da caverna expressa também a concepção política tipicamente platônica. Platão menciona também um “retorno” à caverna por parte do que se libertara das algemas, retorno cuja finalidade consiste na libertação dos em companhia dos quais ele antes se encontrava como escravo.

            O que poderá, entretanto, acontecer a quem desce de novo na caverna? Passando da luz para a escuridão, ele não conseguirá enxergar enquanto não se habituar novamente à falta de luz; terá dificuldades em se readaptar aos costumes dos antigos companheiros, se arriscará a não ser por eles entendido e, tomado por louco, correrá até mesmo o risco de ser assassinado, como aconteceu com Sócrates e como poderá acontecer com todos os que testemunhem em dimensão socrática.

            Entretanto, o homem que “viu” o verdadeiro Bem deverá e saberá correr esse “risco”, pois é isso que dá sentido a sua existência.

            Como se vê, só a aquisição e a apropriação de uma nova verdade consente chamar não verdadeiras as opiniões que antes se tinha; só relativamente a uma verdade maior outra verdade se torna não verdadeira; só a conquista de uma nova verdade determina um novo modo de vida e faz considerar inadequado o não bom o velho modo de vida; só pregando uma nova verdade e um novo modo de vida, sem conformar-se com os já existentes e aceitos pela maioria, se correm os reais perigo não só de escárnio, mas também de morte. E mais uma vez, aqui Platão convida-nos a refletir sobre a vida exemplar, por ele mesmo construída, da personagem Sócrates. ( Casertano G. Uma introdução à Rep. De Platão, Ed.Paulus, 2011, pag.102)

V- Conhecimento e Práxis

            Os três símiles: sol, linha e caverna, acima tratados, uma vez que tratam da teoria do conhecimento de Platão, tem um papel fundamental na formação do filósofo.

            Porém não basta para Platão que o filósofo obtenha o conhecimento verdadeiro é preciso mais, que ele o pratique.

            O “retorno” a caverna representa certamente o retorno do filósofo-político, o qual se atendesse apenas às solicitações de seu interesse, permaneceria atento apenas à contemplação do verdadeiro. Superando, porém suas ambições, desce ele à caverna na tentativa de salvar os outros.

            O verdadeiro político segundo Platão, não ama o comando e o poder, mas usa o comando e o poder como instrumentos para a produção de serviços destinados à realização do bem.

            Para Platão (VII 518 b 6-7) a “paideía”, a educação, não é como algumas pessoas sustentam, dizendo   que eles põem o saber (VII 518 c1) na alma, quase com se infundisse a visão em olhos cegos.

            Não se põe o saber na alma dos homens, que é uma veleidade análoga à do querer infundir a visão em olhos cegos, mas no máximo suscita-se o saber, tornando os homens capazes de exercitar e de tirar os frutos das faculdades que cada um possui: a educação é um fato “pessoal”, não uma transmissão da ciência. Ela acontece de dentro para fora e não de fora para dentro.

            O discurso mostra que esta capacidade de saber (VII 518c5) e essa faculdade são ínsitas na alma de cada um, e graça a elas é possível através da “phronêsai" virar o olho para cima (VII 518c7), das trevas para a luz.

            A viragem do olho através da “phronêsai”  acontece quando ocorre uma aporia, daí a necessidade do acesso a “noésis” ( ação do nôus) em busca de uma solução para a situação em tese sem saída. Passa-se portando da dianóia para noésis, através da “phronêsai”, com a virada do olho, em busca da solução para a aporia.

            Logo, essa faculdade deve ser virada (VII 518c8-9) do mundo do devir com toda a alma, até ser capaz de suportar a contemplação do real e da parte mais luminosa do que é, a que chamamos justamente o bem (VII 518c9-d1).

            A alma (“psyché”) tem o poder de ver a si mesmo, ela ilumina ela mesmo. Ela ilumina o que ela é, e é ela que vê as idéias. E a“phronêsai” é o olho da alma.

            Platão considera que as faculdades ínsitas em cada homem podem ser viradas para o bem ou para o mal; cada um possui dentro de si a capacidade de agir e de pensar, mas o resultado das suas ações e dos pensamentos que guiam às ações depende da sua alma. 

            Isto explica quão penetrante é o olhar precisamente da alma dos chamados maldosos, mas sábio, e quão agudamente (VII 519 a2-3) a alma deles consegue discernir os objetos para os quais está virada, isto porque é dotada de visão não medíocre, mas que serve para sua maldade, de maneira que os males por ela produzidos são tão grandes quanto mais agudo (VII 519 a5) for seu olhar.

            A “phrónesis”, a inteligência está, por conseguinte, em todos, bons  e maus, por isso, todos podem ser educados a agir bem.

            Para Platão a dialética é o coração das disciplinas (VII 534b-535 a).

            Ela exprime não só o mais alto grau do conhecimento, mas também o momento em que o conhecimento se traduz em “práxis”. O degrau superior é o bem a ideia do bem: só quem a possui com saber certo, com verdade e não com opinião, é capaz de enfrentar todas as batalhas da refutação e da ação.

             Só o filósofo que possui a ideia do bem, possui a ideia do fim de todos os seus conhecimentos; é ele que não só conhece melhor do que os outros, mas sabe agir melhor que todos os outros, e é, por conseguinte, o único capaz de governar a cidade.

             Apenas o filósofo cumpre o seu saber, aplicando-o no terreno não só do conhecimento teórico, mas também no do prático. Precisamente porque ele vê infinitamente melhor do que os outros, pois possui o olhar largo de Zeus que tudo vê, e dado que viu a verdade acerca do belo, do justo e do bem (VII 520c), deve voltar a descer à caverna e ser obrigado a assumir os cargos públicos, de maneira a não ser inferior aos outros sequer por experiência (VII 539 e – 540b).

            Esta íntima ligação é aquela sobre a qual Platão insiste com força: tendo assimilado a dialética, dos 50anos em diante, os que tiverem sido os primeiros em obras e em saber, chegados ao fim, e através da “phronêsai” virando para cima os olhos da alma, serão capazes de ver o bem em si, e servindo-se dele como modelo, darão ordens à cidade, por turnos, aos privados e a si mesmos, para o resto da vida.

            E, embora passem a maior parte do tempo dentro da filosofia, quando chegar a sua vez, terão de enfrentar os aborrecimento da vida política e governar pelo bem da cidade, não porque esta tarefa é bela, mas porque é necessário (VII 539d-540b).  

           

            Quem é capaz de ver o todo, é filósofo; quem não é capaz, não o é. (Platão)

 

 

Referências:

 

1) Platão, A República, Introdução, Tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira, 4ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa;

2)Reale Giovanni, Platão, História da Filosofia Grega e Romana, vol. III, tradução Henrique Cláudio de Lima Vaz e Marcelo Perini, nova edição corrigida, 2007,Edições Loyola;

3) Reale Giovanni, Antiseri Dario, História da Filosofia, vol. I, 11ª edição, 2012, Paulus;

4)Vaz Henrique C. Lima, Antropologia Filosófica, vol. I, 11ª edição, 2011, Edições Loyola;

5) Vaz Henrique C. Lima, Platônica, escritos de filosofia VIII, 2011 Edições Loyola;

6) Pecoraro Rossano (org.), Os Filósofos Clássicos da Filosofia, vol. I, 2008, Editora Vozes;

 7) Schafer Christian ( org.), Léxico de Platão,  tradução Milton Camargo Mota,  2012, Edições Loyola;

8)Casertano Giovanni, Uma introdução à República de Platão, editora Paulus, 2011;

9) Gazolla Rachel, Consideraciones sobre La Psyché en El Libro VII de La República : El Logistikón Del Dialéctico. Los Símiles de La República VI-VII de Platón , editor Raúl Gutiérrez. Pontificia Universidad Católica Del Peru, Fundo Editorial, 2003.

sábado, 2 de novembro de 2013

PLATÃO.


Parte I -  Platão:  A República e os Filósofos Reis
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)


A “verdadeira arte política” é a arte que “cura a alma” e a torna o mais possível “virtuosa”, sendo, por isso, a arte do filósofo. Tal tese Platão amadurece a partir do Górgias e expressa em A República (“Politeía”), ou seja, a coincidência da verdadeira filosofia com a verdadeira política.

             

Escrita em forma de diálogo por Platão e sustentada em 1ª pessoa pela figura de Sócrates, funda-se a Cidade assim como o Homem em “lógos”, ou seja, por argumentos.

 

- Fundemos em “lógos” uma cidade (...). (Rep. 369 c)

 

Sócrates, Adimanto e Glauco partem em busca da definição de justiça e encontram a justiça em ato na realização da Cidade perfeita, que o Sol do Bem ilumina.

 

Construir a Cidade significa conhecer o homem e seu universo,  Platão trabalha com a Antropologia, na qual se funda a tradição pré-socrática da relação do homem com o “kósmos”, a tradição sofística do homem como ser de cultura (“paideía”) destinado à vida política, e a herança dominante de Sócrates do “homem interior” e da “alma” (“psyché”).     

 

A Cidade perfeita é uma estrutura ideal, mas não é uma utopia, ela nasce com base nas necessidades.

 

-(...) Serão as nossas necessidades que hão de fundá-la. (Rep. 369 c).

 

Temos, pois, necessidades dos serviços de muitos outros homens. E nessa Cidade cada pessoa deve fazer uma só função, conforme sua natureza, desempenhando da melhor forma, para que sua tarefa resulte perfeita, para que seja melhor naquilo que se é ( “areté”, “excelência”). Diz Sócrates:

 

(...) cada um de nós não nasceu igual ao outro, mas com naturezas diferentes, cada uma para a execução de sua tarefa (Rep.370 b).    

 

- Mas nós impedimos o sapateiro de tentar ser ao mesmo tempo lavrador, ou tecelão, ou pedreiro, e só o deixamos ser sapateiro, a fim de que a obra  de sapateiro resultasse perfeita; e, do mesmo modo, a cada um dos outros atribuímos uma única arte, aquela para qual cada um nascera(...) (Rep.374 b c)

 

Tal Cidade necessita de três estamentos: 1) O primeiro são os dos lavradores, artesãos e comerciantes,  são a maioria e imprescindíveis os serviços desses de onde provêm às necessidades materiais, desde o alimento até às vestes e à habitação. 2) Os guardiães, responsáveis pela guarda e defesa da Cidade. 3) Os governantes, é a dedicação de alguns poucos homens que saibam governar adequadamente.

           

Também é apresentada a tricotomia da “alma” (436 a - 441c), que ordena as três partes: o racional(“tò logistikón”), o irascível (“tò thymoeidés”) e o concupiscível ( “tò epithymetikón”) segundo a justiça (“dykaiosunê”), sendo regida cada uma pela sua virtude própria (“areté”), respectivamente: a sabedoria (“sophía”), a coragem (“andréia”) e a moderação (sophrosyne). Em cada homem estão presentes as três faculdades da alma, mas é uma delas que prevalece.

           

A Cidade justa não é senão o engrandecimento de nossa alma. Nela predomina a temperança no primeiro estamento, a coragem no segundo e a sabedoria no terceiro. E a “justiça” é a harmonia que se estabelece entre essas três virtudes.

           

Por consequinte o primeiro estamento da “ téchne”,  é construído de homens nos quais prevalece o aspecto “concupiscível” da alma, ou seja, corresponde a potência (dýnamis) epitimética da alma.  A “areté” deste estamento é a “sophrosyne”, ou seja, a “temperança”, “nada em excesso”, a “boa medida”, a justa medida, o domínio dos desejos e prazeres, pois esta classe tem riquezas, bens. Portanto há o risco do desejo da posse ilimitada por eles. Quanto a educação, não necessitam de educação especial, porque as artes e os ofícios são facilmente aprendidos na prática.

 

O segundo estamento, dos guardiães, é constituído de homens nos quais prevalece a força “irascível” (volitiva) da alma, corresponde a potência (dýnamis) timocrática. É quando ficamos irados, tal tendência não se identifica nem com a razão, nem com o desejo, não é razão porque é passional, não é desejo porque frequentemente se opõe a ele, como quando ficamos irados por termos cedido a algum desejo. A “areté” dos guardiães é a coragem, “andréia”, é o ânimo que os movem para irem à guerra e desejarem a vitória. Os guardiães deverão permanecer vigilantes quer em relação aos perigos externos, quer internamente. A sophrosyne é uma qualidade que também devem possuí-los para saberem diferenciar o amigo do inimigo. Para este estamento Platão propõe a educação clássica, ginástico-musical. Os guardiães são o fruto da Paidéia, que avança por meio da íntima sinergia do “eros” e do “logos”, ou seja da alma. Alma que é “eros” e “logos”. Propõe também a “comunhão” de todos os bens: comunhão de homens e mulheres e, portanto de filhos, bem como a abolição de qualquer propriedade sobre bens materiais. Homens e mulheres deste estamento deveriam receber a mesma educação e desempenhar tarefas idênticas. A finalidade era criar uma grande família, onde todos se amassem como parentes. O bem particular deveria ser o bem comum.

           

O terceiro estamento, o dos governantes. Predomina neles  a alma racional, corresponde a potência (dýnamis) logística. Sua excelência (“areté”) é a sabedoria (“sophía”). Para Platão tais governantes seriam os filósofos reis, conform 473 d, e :

 

- Enquanto não forem, ou os filósofos reis nas cidades, ou os que agora se chamam reis e soberanos filósofos genuínos e capazes, e se dê esta coalescência do poder político com a filosofia, enquanto as numerosas naturezas que actualmente seguem um destes caminhos com exclusão do outro não forem impedidas forçosamente de o fazer, não haverá tréguas dos males, meu caro Gláucon, para as cidades, nem sequer, julgo eu, para o gênero humano, nem antes disso será jamais possível e verá a luz do sol a cidade que há pouco descrevemos. Mas isto é o que eu há muito hesitava em dizer, por ver como seriam paradoxais essas afirmações. Efetivamente, é penoso ver que não há outra felicidade possível, particular ou pública.

 

Destarte a “conditio sine qua non” para que se realize a Cidade ideal é que os filósofos se tornem governantes e os governantes, filósofos. Portanto, o filósofo não somente projeta a Cidade perfeita, mas é também só o filósofo que pode realizá-la e fazê-la. A Cidade ideal tem como parte mais significativa a caracterização específica dos “governantes” supremos da Cidade e sua peculiar paideía ou educação. É exatamente a concepção da natureza dos governantes que revela, além do fundamento teórico, a possibilidade de realização da Cidade platônico.  Apenas na condição de o governante se tornar filósofo, ou do filósofo se tornar governante (“philosophos-basileus”) é que se torna possível construir a Cidade autêntica, fundada sobre o valor supremo da justiça e do bem.

 

Os filósofos amam a cidade e os governados, mais do que os outros, tem também as qualidades da coragem e a generosidade.

 

- (...) as qualidades que lhe convinham eram a coragem, a generosidade, a facilidade para aprender, a memória.(...) ( Rep.490 d)

 

Tem facilidade para aprender e para a memória, porque tem “eros” pela “sophia”, estão desejos da sabedoria na sua totalidade, tem prazer em apreender.

 

- Porventura não diremos também do filósofo que está desejoso da sabedoria, não de uma parte sim e de outra não, mas da totalidade? ( Rep. 475 b)

 

 Sabem tornar uma cidade justa e a mantê-la justa, possuem o olhar largo de Zeus, que tudo vê. Não se corrompem, são cumpridores com zelo da sua missão, pois, especialmente,  aprenderam a conhecer e contemplar o Bem. Atiram-se ao estudo com prazer e sem saciar.

 

- Mas àquele que deseja prontamente provar de todas as coisas que podem apreender e se atira ao estudo com prazer e sem saciar, a esse chamaremos com justiça filósofo, ou não?( Rep. 475 c)

 

Capazes de subir até o belo em si e de o contemplar na sua essência, são raros.

 

- Mas aqueles que são capazes de subir até ao belo em si e de o contemplar na sua essência, acaso não serão muito raros? ( Rep. 476 b)

 

Dedicam-se ao ser em si, de olhar para a verdade absoluta, tomando-a sempre como ponto de referência e contemplando-a com o maior rigor possível, para então promulgar leis na terra sobre o belo, o justo, o bom e se for o caso preservar as que existem, mantendo-as a salvo.

 

O núcleo da República é sobre a Teoria das Ideias  e os filósofos, para Platão,  são os capazes de acessar as Ideias, ou seja, de atingir aquilo que se mantém sempre do mesmo modo, contemplam as coisas em si, as que permanecem sempre idênticas.

 

- (...) Uma vez que os filósofos são aqueles que são capazes de atingir aquilo que se mantém sempre do mesmo modo (...). (Rep. 484 b)

 

 A Teoria das Ideias ( idea, eidos), segundo a qual existem idéias ou formas eternas, unas e imutáveis como: a Ideia do Belo, ou a Beleza em si; a Ideia da Virtude, ou a Virtude em si; a Ideia da Justiça, ou a Justiça em si, etc. Tudo aquilo que é, por exemplo, belo, virtuoso, ou justo, é assim porque participa da respectiva Ideia. As Ideias (ou Formas) são paradigmas, modelos que conferem ordem, estabilidade e unidade à multiplicidade e mutação incessante de todas as coisas. Elas são a fonte do conhecimento verdadeiro e a causa necessária de tudo aquilo que podemos conhecer através dos sentidos. São mais reais que os seres sensíveis, isto é, mais fundamentais. São invisíveis aos olhos, mas cognoscíveis pela inteligência.  A Ideia é a essência das coisas, de modo que é somente definindo o que seja a Ideia correspondente que se pode dizer o que é algo, como por exemplo, a virtude ou a justiça.

           

O principal argumento de Platão é o chamado “argumento do conhecimento”, ou seja : a) Todas as coisas que percebemos pelos sentidos estão em constante transformação; b) Não pode haver conhecimento verdadeiro daquilo que está em transformação; c) Logo, as coisas que percebemos pelos sentidos não podem ser conhecidas; d) No entanto, há conhecimento: e) O conhecimento verdadeiro só é possível se for algo que é e que permaneça sempre constante ( eterno, imóvel, idêntico); f) Logo, deve existir algo que permanece sempre constante (eterno, imóvel e idêntico); g) As Ideias têm essas características; h) O conhecimento verdadeiro é o conhecimento das Ideias; i) As Ideias não são perceptíveis pelos sentido, não são coisas concretas, mas abstratas, conhecidas somente pela inteligência.

           

Tais modelos são separados do sensível, pois acessados também por outra via, e eles necessariamente existem, são reais e objetivos, ou não haveria conhecimento verdadeiro. Platão expressa a noção de reminiscência (anámnesis), isto é, a hipótese de que a alma teria estado em contato com as Ideias antes de seu nascimento.

 

As Ideias expressam perfeitamente uma realidade determinada, sem expressar, simultaneamente, o seu oposto: a Ideia do Belo, por exemplo, é bela e nada mais;  Ideia de Justiça é justa e nada mais, etc. Elas são puras, designam uma realidade que subsiste em si mesma. São paradigmas, modelos perfeitos para discernir, julgar e conhecer o real. Portanto, é dirigindo a nossa atenção para as Ideias, e não aos objetos sensíveis, que o conhecimento verdadeiro é possível.

           

 No entanto as Ideias não são” noêmata”, coisas do pensamento, mas” noêta”, o cognoscível em pensamentos. Uma idéia é a causa de algo ser o que é . As coisas sensíveis são ontologicamente secundárias. As Ideias são independentes dos seres sensíveis, elas existem em si e por si. As mudanças no mundo sensível não as afetam, pois elas são a causa daquele. As Ideias são unas, perfeitas, eternas imutáveis, imóveis, independentes e simples (indivisíveis). São elas que conferem inteligibilidade ao real.

           

Platão nos mostra que nenhum realismo verdadeiro é possível se não admitirmos a primazia da Ideia. Assim o entendeu Hegel. Chamemos, se asssim o quisermos, esse realismo de “idealismo”, mas com a ressalva de que a Ideia é o real mais real, o “ ens realissimum”, pois somente na Ideia alguma coisa tem realidade efetiva. (...) Hegel diz que as Ideias platônicas estão no pensamento de Deus. Mas essa identidade do “topos noetos” com o pensamento divino será o termo de uma longa evolução que terá início no platonismo médio e encontrará seu ápice e sua perfeição no exemplarismo agostiniano-tomista. Em Platão o que vamos encontrar é a primeira e audaz exploração do mundo ideal e a primeira afirmação, com inequívoco alcance ontológico, da transcendência da Idea: fundamento e condição de todo autêntico “realismo”. (Lima Vaz H.C.,Platônica, pag.70/71)

 

No plano da educação (paideía) aos governantes coincidem com os exercícios para o aprendizado da filosofia, coincidência entre o verdadeiro filósofo e o verdadeiro político. A finalidade da educação consistia em levá-lo ao conhecimento e à contemplação do Bem, conduzindo-o ao “conhecimento máximo” para que ele pudesse modelar a si mesmo conforme o Bem e aplicá-lo na Cidade.

 

Platão proclama a suprema Ideia do Bem, ou seja, o Bem em si como “modelo” supremo ou paradigma” do qual o filósofo deve servir-se para regular a própria vida e a da Cidade. Sinaliza a entrada do Bem na comunidade dos homens por meio daqueles poucos homens, os filósofos, que sabem elevar-se a contemplação do Bem. A Ideia do Bem  é o divino no mais alto grau, a Cidade platônico torna-se, por conseguinte, a tentativa de organizar a vida  associada dos homens na base do mais elevado fundamento teológico. O Divino torna-se o eixo fundamental verdadeiro da polis, do ser, do cosmo, da vida privada dos homens e também da vida dos homens na dimensão política. Dessa forma, o “Bem” emerge como princípio primeiro, do qual depende o mundo ideal. Já o Demiurgo,” é o Deus supremo, para Platão, é a Inteligência suprema, “ o melhor dos seres inteligíveis” e “a melhor das causas”.

 

 Em outras palavras, o Deus platônico é aquele que é bom em sentido “pessoal” enquanto a “Ideia do Bem” é o Bem no sentido “impessoal”. (Reale G., Platão,Hist.Fil.G.R.,pag.150)

 

O Demiurgo aparece como gerador dos cosmos físico em razão da sua “bondade” e  o “ Bem” constitui o fundamento da Cidade e do agir humano.

 

O filósofo convivendo com o que é divino e ordenado, tornar-se-á ordenado e divino até onde é possível.

 

- Ora certamente o filósofo, convivendo com o que é divino e ordenado, tornar-se-á ordenado e divino até onde é possível a um ser humano. (Rep. 500 c d)

           

A cidade só poderá ser feliz por esses que se inspiram  no modelo divino e o aplicam na medida do possível a cidade. Assim é o filósofo rei.

           

Aos diálogos platônicos pode-se aplicar o que Heráclito disse do Deus de Delfos:

 “ Não afirma nem esconde, mas dá a entender por sinais” (...)
 

Bibliografias:

1) Platão, A República, Introdução, Tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira, 4ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa;

2)Reale Giovanni, Platão, História da Filosofia Grega e Romana, vol. III, tradução Henrique Cláudio de Lima Vaz e Marcelo Perini, nova edição corrigida, 2007,Edições Loyola;

3) Reale Giovanni, Antiseri Dario, História da Filosofia, vol. I, 11ª edição, 2012, Paulus;

4)Vaz Henrique C. Lima, Antropologia Filosófica, vol. I, 11ªedição, 2011, Edições Loyola;

5) Vaz Henrique C. Lima, Platonica, escritos de filosofia VIII, 2011 Edições Loyola;

6) Pecoraro Rossano (org.), Os Filósofos Clássicos da Filosofia, vol. I, 2008, Editora Vozes;

7) Schafer Christian ( org.), Léxico de Platão,  tradução Milton Camargo Mota,  2012, Edições Loyola.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

MONTAIGNE

“ Ética em Montaigne ”
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)

O grande prazer que nos proporcionam os Ensaios do filósofo francês Michel de Montaigne (séc. XVI) provém do grande prazer que ele experimentou em escrevê-los. Neles foi um crítico da autoridade intelectual, antes do Iluminismo; um frio observador da sexualidade humana, antes da psicanálise; um estudioso imparcial de outras culturas, antes do nascimento da antropologia social.

Na Ética Montaigne ataca o pedantismo, exprimindo o alcance extremo dessa consciência crítica, operando no sentido da afirmação de uma nova cultura, fundada na experiência e no livre exercício do jugement. Educado nos moldes da mais perfeita orientação humanista e do interior desta cultura empreendeu a transgressão de seus limites.

Busca conscientemente o avesso de uma nova orientação para o pensamento, para o discurso, para a ação e a condução da vida.

Desliza de maneira consciente e refinada entre o sujeito ético que respeita o ethos vigente para o sujeito ético transgressor, propondo um ethos profundamente diverso de seu tempo.

Com Montaigne surge uma nova figura cultural, uma nova disciplina moral a do homme suffisant, ética e intelectualmente capaz, destituído de princípios, normas, paradigmas de ações já bem estabelecidas, desafiado a encontrar em si mesmo, arrimo para seus julgamentos e decisões de ordem prática.

Veta à ação qualquer possibilidade de acesso a medidas prévias, externas ao próprio agente.

Descarta guias da moralidade, este procedimento de generalização que sustenta os paradigmas morais conferindo-lhes uma ilusória identidade.

A leitura dos livros, para ele, constituirá apenas uma das respostas à necessidade de praticar os homens.

Entende que o próprio mundo seja o livro de seu aluno (1,26).

Quanto aos clássicos lembra a advertência de Petrarca, seja para nós escola da vida e não de retórica.

Para Montaigne da experiência deve-se tirar o fruto que possa formar seu julgamento. Não basta contar as experiências, é preciso digeri-la, para tirar as razões e conclusões que trazem. A experiência se manifesta não como conhecimento, mas como vivências passadas harmonizando com as ações presentes.

Entende que, a singularidade dos casos exige do agente uma fina atenção para a diversidade, uma firme disposição para buscar orientação, tão somente em si mesmo, apoiado apenas na própria experiência.

Diz o ensaísta: Não há nenhuma qualidade tão universal nesta imagem das coisas quanto a diversidade (III,13).

Propõe a avaliar julgando a olho, caso por caso, não por atacado por lições escolásticas.

Afirma a inteira particularidade dos casos e situações enfrentados no domínio da ação, que frustra toda aspiração por uma lei ou por um saber propriamente normativo.

Critica a presunção e o dogmatismo. Que sais-je?(Que sei eu?) é a frase que a posteridade tem associada mais intimamente a Montaigne.

Nas vigas da sua biblioteca fez inscrever não há nada certo exceto a incerteza e suspendo o juízo ( de Sexto Empírico).

Uma por uma, as ideias céticas de Montaigne são reminiscências de seus predecessores, mas a combinação delas é própria dele.

Atesta a inconstância dos homens e do universo, inspirando em Heráclito constata que tudo muda o tempo todo, reafirmando a instabilidade das coisas, e paradoxalmente a única constância é que tudo muda.

Critica à autoridade intelectual, duvida do poder da razão humana para alcançar a verdade. Lança o desafio as opiniões. Montaigne afasta as certezas das artes e da ciência, duvida e investiga, inscreve a experiência num outro horizonte, a da diversidade da natureza e da inconstância dos homens.

Para ele a história ensina que natureza humana é essencialmente a mesma, apesar da diversidade de costumes e das diferenças entre um indivíduo e outro.

Não retrato o ser. Retrato a passagem (...) (3.2).

Lembrando Sócrates, destaca o conhecer a si mesmo.

É preciso tirar a máscara tanto das coisas como das pessoas (1.20).

Não há nada tão belo e legítimo quanto desempenhar bem e adequadamente o papel de homem, nem ciência tão árdua quanto a de saber viver bem e naturalmente esta vida; e de todas as nossas doenças a mais selvagem é menosprezar nosso ser (3.13).

Bibliografias:

1) Montaigne Michel de, Ensaios, Os Pensadores vol. XI, tradução Sérgio Milliet, editor Victor Civita,1ª edição,1972;
2) Cardoso Sérgio, Texto: “Montaigne: uma ética para além do humanismo”, Encontro de 2007 ‘GT Ética e Política no Renascimento’;
3) Burke Peter, Montaigne, tradução Jaimir Conte, edições Loyola, 2006,São Paulo.

domingo, 1 de setembro de 2013

FOUCAULT.

FOUCAULT: O CASO SÓCRATES E O CUIDADO DE SI.
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo).


A referência deste artigo é o curso que Foucault ministrou em 1982. Na primeira aula ele convida-nos a reler Platão, mais precisamente o diálogo Apologia de Sócrates. Foucault quer recuperar neste diálogo, assim como em outros diálogos platônicos, é a presença de um conceito que a posteridade filosófica pouco valorizou, que é o ‘cuidado de si’.


O cenário é o julgamento de Sócrates diante do tribunal popular de Atenas. Acusado de corromper a juventude, de reconhecer não os deuses do estado, mas outras divindades, Sócrates faz sua defesa. Reportemos dois ou três momentos desta defesa.

Primeiramente, o momento em que Sócrates levanta a hipótese de que os atenienses até poderiam absolvê-lo, ‘deixá-lo ir’, ‘dispensá-lo’, sob a condição, entretanto, de que ele abandonasse a filosofia: ‘ se fores apanhado de novo nessa prática, morrerás’. A esta condição, eis o que ele responderia: ‘ Atenienses, eu vos sou reconhecido e vos quero bem, mas obedecerei antes ao deus que a vós; enquanto tiver alento e puder fazê-lo, jamais deixarei de filosofar, de vos dirigir exortações, de ministrar ensinamentos (...)’. E o que é filosofar? Ele o diz:‘ Outra coisa não faço senão andar por aí persuadindo-vos, moços e velhos, a não cuidar tão aferradamente do corpo e das riquezas, como de melhorar o mais possível a alma, dizendo-vos que dos haveres não vem a virtude para os homens, mas da virtude vêm os haveres e todos os outros bens particulares e públicos. Se com esses discursos corrompo a mocidade, seriam nocivos esses preceitos; se alguém afirmar que digo outras coisas e não essas, mente. Por tudo isso, Atenienses (...) quer me dispenseis, quer não, não hei de fazer outra coisa, ainda que tenha de morrer muitas vezes’. A seguir, declara que sua tarefa de filósofo: ‘ Ficai certos de uma coisa: se me condenardes por ser eu como digo, causarei a vós próprios maior dano que a mim (...). Se me matardes, não vos será fácil achar outro igual (...); parece-me que o deus me impôs à cidade com essa incumbência (...) de vos despertar, persuadir e repreender um por um. Outro igual não tereis facilmente, senhores (...). Bem pode ser que (...) me condeneis levianamente à morte: depois, passareis o resto da vida a dormir, salvo se o deus, cuidadoso de vós, vos enviar algum outro’.

Nestas passagens da Apologia, a atividade de Sócrates, a atividade filosófica, consiste no ‘cuidado de si’ que está explicitamente e indissoluvelmente ligado ao ‘ cuidado do outro’.

O ‘cuidado de si’ é uma função, a de mandatário da missão confiada pelos deuses. Para Sócrates, ocupar-se consigo ou cuidar de si mesmo significa, principalmente, cumprir a ordem para que os outros cuidem de si.

Esta função determina um posto, o de mestre cujo encargo é ensinar, Sócrates é aquele que cuida de que os outros cuidem deles próprios, ensinando-lhes que cuidar de si não é cuidar das coisas e das riquezas, das honrarias e da fama, mas da alma, da verdade, de virtude, da justiça.

A posição de mestre define um papel, o de despertar para inquietar, Sócrates, o filósofo, impede que os outros passem a vida sem nada ver.

Enquanto o conceito de ‘cuidado de si’, como mencionamos, foi sendo marginalizado e esquecido ao longo da história da filosofia, outro conceito que lhe era próximo e contemporâneo, ganhava importância e divulgação, o de ‘ conhecimento de si’. ‘Conhece-te a ti mesmo’ e ‘cuida de ti mesmo’, conselhos de conduta, usados inicialmente como preceitos, passam, a partir do momento socrático-platônico, a ser integrados como conceitos à reflexão filosófica.

Foucault mostrará nas aulas subseqüentes, o nascimento filosófico daquelas duas noções. Ainda na primeira aula, faz ver a relação entre os dois conceitos era antes de primazia do ‘cuidado de si’ sobre o ‘conhecimento de si’. O ‘cuidado de si’ era, inicialmente, uma espécie de ‘regra geral’ de que o ‘conhecimento de si’ constituía um caso particular.

Não cabe aqui descrever a inversão da tônica entre os dois conceitos, com o privilégio posteriormente atribuído ao ‘conhecimento de si’. Façamos apenas um paralelo entre as duas noções, realçando as dessemelhanças.

No conceito de ‘conhecimento de si’ o ‘si’ ou o ‘eu’ de que se trata designa o sujeito do conhecimento, cuja natureza é sempre idêntica porque já está inteiramente constituída. Quanto ao ‘conhecimento’, designa uma atividade estritamente representativa, ou intelectiva. E quanto à ‘verdade’, que é supostamente o alvo do conhecimento, pode-se dizer, por um lado, que é o próprio sujeito e somente ele quem a alcança em razão de sua estrutura ontológica, que não é outra senão a de sujeito cognoscente. Por outro lado, os ‘efeitos’ ou ‘consequências’ do conhecimento da verdade não transformam o ser sujeito, mas ao contrário, asseguram a permanência de sua estrutura assim como ela é, pois é esta estrutura a condição do próprio conhecimento.

No ‘cuidado de si’, o ‘eu’ é o sujeito de ações, ou o sujeito ético, sem substância definitiva nem identidade essencial porque está sempre se constituindo e transformando. Quanto ao ‘cuidado’, é prática, exercício que continuamente constitui e transforma o sujeito, afetando-o em todos os ângulos de sua existência. Quanto à ‘verdade’, pode-se dizer, por um lado, que não é alcançável exclusivamente no ato de conhecimento, pois, para ter acesso à verdade, o sujeito tem que alterar-se, mudar seu próprio modo de ser. Por outro lado, os ‘efeitos’ ou ‘consequências’ do alcance da verdade retornam sobre o sujeito, iluminando-o e transfigurando-o.

Estas duas noções correspondem a duas modalidades de conceber e praticar a filosofia, de pensar filosoficamente. Destas, a modalidade do ‘cuidado de si’ abarca a outra, modificando-a, pois remete não somente ao plano da ‘intelecção’ ou do ‘conhecimento’, embora o inclua, mas ao das atitudes.

A filosofia como cuidado de si é conhecimento e mais que conhecimento, é modo de existência, estilo de vida.

Quando conhecer se alicerçar no cuidado, então o ato de conhecimento será indissolúvel do comprometimento ético, e o sujeito do conhecimento religado ao sujeito de ações.

Nestas condições, seria inconcebível ‘ser impuro, imoral e conhecer a verdade’, escreve Foucault. Daqui poderíamos acrescentar, seria filosoficamente impossível, por exemplo, conhecer a verdade e não ter coragem de dizê-la, conhecer o bem e não exercê-lo, conhecer a justiça e não praticá-la.

Assim nem a verdade é imóvel, nem o sujeito imutável, os atos de conhecimento comportariam, necessária e legitimamente, mobilidades e mobilizações, tais como: reconhecimento de enganos, acolhimento de incertezas, deslocamento de perspectivas, etc..

O princípio de fidelidade à verdade seria menos da ordem da adesão ao mesmo que da disposição às diferenças.

Assim o conhecimento deve ser indissolúvel do comprometimento ético e o sujeito cognoscente religado ao sujeito de ação.

Foucault completa:” O trabalho de um intelectual (...) é, através das análises que ele faz nos domínios que são seus, reinterrogar as evidências e os postulados, sacudir os hábitos, as maneira de fazer e pensar, dissipar familiaridades aceitas, retomar a medida das regras e das instituições”.

Esta proposição requereria do intelectual um envolvimento pessoal e moral. Para que liberdade de pensamento sobreviva a toda a forma de autoritarismo; para que a opacidade burocrática não substitua a lucidez do espírito nem a agudeza da sensibilidade; para que o peso das normas não sobrecarregue a criatividade; para que, nos momentos mais difíceis ou ameaçadores, a solidariedade que é vizinha da coragem, prevaleça sobre a servidão, que é parente do medo.

Se não restou a Sócrates senão aceitar a sentença de morte não foi porque a reconhecesse, mas para confirmar um testemunho de vida, a coragem de dizer a verdade (Parresía).



Bibliografia :

1) M.Foucault, A Hermenêutica do sujeito, Tradução : Márcio da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo, Martins Fontes, 2004;

2) Platão, Apologia de Sócrates. Tradução de Jaime Bruna, Coleção ‘ Os Pensadores’, vol.Sócrates. São Paulo, Abril, 2.ed., 1980;

3) M.Foucault, ‘Sobre a genealogia da Ética: uma visão do trabalho em andamento’. Entrevista a L. Dreyfus e P. Rainow, em Berkeley, E.U.A., abril de 1983. Incluída no volume: M. Foucault, Dossier - Últimas entrevistas. Tradução Ana Maria de A. Lima, Rio de Janeiro, Taurus Editora ;

4) M.Foucault, ‘ O Cuidado com a verdade’, Entrevista a F. Ewald, para Le Magazin, littéraire maio de 1984. Incluída no volume: M. Foucault, Dossiê – Últimas entrevistas;

5) Salma Tannus Muchail, ‘Filosofia, hoje – Decorrências éticas’, Rev. PUC VIVA, ano 07, nº27, julho a setembro de 2006.