domingo, 1 de setembro de 2013

FOUCAULT.

FOUCAULT: O CASO SÓCRATES E O CUIDADO DE SI.
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo).


A referência deste artigo é o curso que Foucault ministrou em 1982. Na primeira aula ele convida-nos a reler Platão, mais precisamente o diálogo Apologia de Sócrates. Foucault quer recuperar neste diálogo, assim como em outros diálogos platônicos, é a presença de um conceito que a posteridade filosófica pouco valorizou, que é o ‘cuidado de si’.


O cenário é o julgamento de Sócrates diante do tribunal popular de Atenas. Acusado de corromper a juventude, de reconhecer não os deuses do estado, mas outras divindades, Sócrates faz sua defesa. Reportemos dois ou três momentos desta defesa.

Primeiramente, o momento em que Sócrates levanta a hipótese de que os atenienses até poderiam absolvê-lo, ‘deixá-lo ir’, ‘dispensá-lo’, sob a condição, entretanto, de que ele abandonasse a filosofia: ‘ se fores apanhado de novo nessa prática, morrerás’. A esta condição, eis o que ele responderia: ‘ Atenienses, eu vos sou reconhecido e vos quero bem, mas obedecerei antes ao deus que a vós; enquanto tiver alento e puder fazê-lo, jamais deixarei de filosofar, de vos dirigir exortações, de ministrar ensinamentos (...)’. E o que é filosofar? Ele o diz:‘ Outra coisa não faço senão andar por aí persuadindo-vos, moços e velhos, a não cuidar tão aferradamente do corpo e das riquezas, como de melhorar o mais possível a alma, dizendo-vos que dos haveres não vem a virtude para os homens, mas da virtude vêm os haveres e todos os outros bens particulares e públicos. Se com esses discursos corrompo a mocidade, seriam nocivos esses preceitos; se alguém afirmar que digo outras coisas e não essas, mente. Por tudo isso, Atenienses (...) quer me dispenseis, quer não, não hei de fazer outra coisa, ainda que tenha de morrer muitas vezes’. A seguir, declara que sua tarefa de filósofo: ‘ Ficai certos de uma coisa: se me condenardes por ser eu como digo, causarei a vós próprios maior dano que a mim (...). Se me matardes, não vos será fácil achar outro igual (...); parece-me que o deus me impôs à cidade com essa incumbência (...) de vos despertar, persuadir e repreender um por um. Outro igual não tereis facilmente, senhores (...). Bem pode ser que (...) me condeneis levianamente à morte: depois, passareis o resto da vida a dormir, salvo se o deus, cuidadoso de vós, vos enviar algum outro’.

Nestas passagens da Apologia, a atividade de Sócrates, a atividade filosófica, consiste no ‘cuidado de si’ que está explicitamente e indissoluvelmente ligado ao ‘ cuidado do outro’.

O ‘cuidado de si’ é uma função, a de mandatário da missão confiada pelos deuses. Para Sócrates, ocupar-se consigo ou cuidar de si mesmo significa, principalmente, cumprir a ordem para que os outros cuidem de si.

Esta função determina um posto, o de mestre cujo encargo é ensinar, Sócrates é aquele que cuida de que os outros cuidem deles próprios, ensinando-lhes que cuidar de si não é cuidar das coisas e das riquezas, das honrarias e da fama, mas da alma, da verdade, de virtude, da justiça.

A posição de mestre define um papel, o de despertar para inquietar, Sócrates, o filósofo, impede que os outros passem a vida sem nada ver.

Enquanto o conceito de ‘cuidado de si’, como mencionamos, foi sendo marginalizado e esquecido ao longo da história da filosofia, outro conceito que lhe era próximo e contemporâneo, ganhava importância e divulgação, o de ‘ conhecimento de si’. ‘Conhece-te a ti mesmo’ e ‘cuida de ti mesmo’, conselhos de conduta, usados inicialmente como preceitos, passam, a partir do momento socrático-platônico, a ser integrados como conceitos à reflexão filosófica.

Foucault mostrará nas aulas subseqüentes, o nascimento filosófico daquelas duas noções. Ainda na primeira aula, faz ver a relação entre os dois conceitos era antes de primazia do ‘cuidado de si’ sobre o ‘conhecimento de si’. O ‘cuidado de si’ era, inicialmente, uma espécie de ‘regra geral’ de que o ‘conhecimento de si’ constituía um caso particular.

Não cabe aqui descrever a inversão da tônica entre os dois conceitos, com o privilégio posteriormente atribuído ao ‘conhecimento de si’. Façamos apenas um paralelo entre as duas noções, realçando as dessemelhanças.

No conceito de ‘conhecimento de si’ o ‘si’ ou o ‘eu’ de que se trata designa o sujeito do conhecimento, cuja natureza é sempre idêntica porque já está inteiramente constituída. Quanto ao ‘conhecimento’, designa uma atividade estritamente representativa, ou intelectiva. E quanto à ‘verdade’, que é supostamente o alvo do conhecimento, pode-se dizer, por um lado, que é o próprio sujeito e somente ele quem a alcança em razão de sua estrutura ontológica, que não é outra senão a de sujeito cognoscente. Por outro lado, os ‘efeitos’ ou ‘consequências’ do conhecimento da verdade não transformam o ser sujeito, mas ao contrário, asseguram a permanência de sua estrutura assim como ela é, pois é esta estrutura a condição do próprio conhecimento.

No ‘cuidado de si’, o ‘eu’ é o sujeito de ações, ou o sujeito ético, sem substância definitiva nem identidade essencial porque está sempre se constituindo e transformando. Quanto ao ‘cuidado’, é prática, exercício que continuamente constitui e transforma o sujeito, afetando-o em todos os ângulos de sua existência. Quanto à ‘verdade’, pode-se dizer, por um lado, que não é alcançável exclusivamente no ato de conhecimento, pois, para ter acesso à verdade, o sujeito tem que alterar-se, mudar seu próprio modo de ser. Por outro lado, os ‘efeitos’ ou ‘consequências’ do alcance da verdade retornam sobre o sujeito, iluminando-o e transfigurando-o.

Estas duas noções correspondem a duas modalidades de conceber e praticar a filosofia, de pensar filosoficamente. Destas, a modalidade do ‘cuidado de si’ abarca a outra, modificando-a, pois remete não somente ao plano da ‘intelecção’ ou do ‘conhecimento’, embora o inclua, mas ao das atitudes.

A filosofia como cuidado de si é conhecimento e mais que conhecimento, é modo de existência, estilo de vida.

Quando conhecer se alicerçar no cuidado, então o ato de conhecimento será indissolúvel do comprometimento ético, e o sujeito do conhecimento religado ao sujeito de ações.

Nestas condições, seria inconcebível ‘ser impuro, imoral e conhecer a verdade’, escreve Foucault. Daqui poderíamos acrescentar, seria filosoficamente impossível, por exemplo, conhecer a verdade e não ter coragem de dizê-la, conhecer o bem e não exercê-lo, conhecer a justiça e não praticá-la.

Assim nem a verdade é imóvel, nem o sujeito imutável, os atos de conhecimento comportariam, necessária e legitimamente, mobilidades e mobilizações, tais como: reconhecimento de enganos, acolhimento de incertezas, deslocamento de perspectivas, etc..

O princípio de fidelidade à verdade seria menos da ordem da adesão ao mesmo que da disposição às diferenças.

Assim o conhecimento deve ser indissolúvel do comprometimento ético e o sujeito cognoscente religado ao sujeito de ação.

Foucault completa:” O trabalho de um intelectual (...) é, através das análises que ele faz nos domínios que são seus, reinterrogar as evidências e os postulados, sacudir os hábitos, as maneira de fazer e pensar, dissipar familiaridades aceitas, retomar a medida das regras e das instituições”.

Esta proposição requereria do intelectual um envolvimento pessoal e moral. Para que liberdade de pensamento sobreviva a toda a forma de autoritarismo; para que a opacidade burocrática não substitua a lucidez do espírito nem a agudeza da sensibilidade; para que o peso das normas não sobrecarregue a criatividade; para que, nos momentos mais difíceis ou ameaçadores, a solidariedade que é vizinha da coragem, prevaleça sobre a servidão, que é parente do medo.

Se não restou a Sócrates senão aceitar a sentença de morte não foi porque a reconhecesse, mas para confirmar um testemunho de vida, a coragem de dizer a verdade (Parresía).



Bibliografia :

1) M.Foucault, A Hermenêutica do sujeito, Tradução : Márcio da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo, Martins Fontes, 2004;

2) Platão, Apologia de Sócrates. Tradução de Jaime Bruna, Coleção ‘ Os Pensadores’, vol.Sócrates. São Paulo, Abril, 2.ed., 1980;

3) M.Foucault, ‘Sobre a genealogia da Ética: uma visão do trabalho em andamento’. Entrevista a L. Dreyfus e P. Rainow, em Berkeley, E.U.A., abril de 1983. Incluída no volume: M. Foucault, Dossier - Últimas entrevistas. Tradução Ana Maria de A. Lima, Rio de Janeiro, Taurus Editora ;

4) M.Foucault, ‘ O Cuidado com a verdade’, Entrevista a F. Ewald, para Le Magazin, littéraire maio de 1984. Incluída no volume: M. Foucault, Dossiê – Últimas entrevistas;

5) Salma Tannus Muchail, ‘Filosofia, hoje – Decorrências éticas’, Rev. PUC VIVA, ano 07, nº27, julho a setembro de 2006.