segunda-feira, 6 de maio de 2013

MARX.


O Casaco de Marx
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)      

Karl Marx (Tréveris/1818 - Londres/1883) define o capitalismo, como o processo de universalização de produção de mercadorias. A abstração da sociedade é representada pela própria mercadoria, vista não como uma coisa, mas como um valor de troca. A forma mercadoria do produto do trabalho ou a forma valor da mercadoria é a forma celular da economia.

A forma celular da economia que ocupa o primeiro capítulo de O Capital assume a forma de um casaco. O casaco faz sua primeira aparição não como um objeto que é fabricado e vestido, mas como uma mercadoria que é trocada. Mas, embora a mercadoria seja uma abstração fria, ela se alimenta, tal como um vampiro, de trabalho humano. A natureza do capitalismo consiste em produzir um casaco não como uma particularidade material, mas como um valor suprassensível. A tarefa de Marx em O Capital consiste em fazer o caminho de volta daquele valor do trabalho humano cuja apropriação produz capital. Isso leva Marx, teoricamente, à teoria do valor-trabalho e a uma análise da mais-valia. O Capital representa a tentativa de Marx de devolver o casaco ao seu proprietário.

A mercadoria com a qual Marx começa O Capital, o casaco tem apenas uma tênue relação com o casaco que o próprio vestia em suas idas ao Museu Britânico para pesquisar material para escrever O Capital.

Repetidamente, o casaco que Marx vestia entrava e saía da casa de penhores. Ele tinha usos bem específicos: conservar Marx aquecido no inverno e distingui-lo como um cidadão decente que pudesse entrar no salão de leitura do Museu Britânico.

Nos anos de 1850  Marx viveu uma vida contraditória, definida não por suas conexões aristocráticas e de classe abastada da Alemanha, mas por uma vida de miséria e penúria.

A vida doméstica de Marx dependia, pois dos “minúsculos cálculos” que caracterizavam a vida da classe operária.

A “respeitabilidade”, aquela virtude central do século XVIII, era uma coisa a ser comprada e, em tempos de necessidade, penhorada.

Para os Marx, os infindáveis retornos a casa de penhor delimitava sensivelmente suas possibilidades sociais.

O ano de 1852 foi mais um ano catastrófico para o lar de Marx. Nos primeiros meses do ano, Marx estava escrevendo O Dezoito Brumário. Em Janeiro ele esteve doente na cama, escrevendo com a maior das dificuldades. Mas ele tinha que escrever, uma vez que, juntamente com as doações de Engels e com aquilo que ele podia penhorar, essa atividade constituía a fonte de renda do lar, um lar constituído de quatro crianças e três adultos.

 Em junho de 1850, Marx tinha conseguido um passe de entrada para a sala de leitura do Museu Britânico e tinha começado a fazer a pesquisa que seria a base de O Capital. Mas para financiar esta pesquisa ele precisava escrever por dinheiro. Além disso, de qualquer forma, durante sua doença, ele não podia mais ir ao Museu. Mas quando se recuperou, ele queria gastar pelo menos algum tempo na Biblioteca. Ele não podia fazê-lo. A situação financeira tinha se tornado tão desesperadora que ele tinha não apenas perdido o crédito com o açougueiro e o verdureiro, mas tinha sido obrigado a penhorar o seu casaco de inverno. No dia 27 de fevereiro, ele escreveu a Engels; “Há uma semana cheguei ao agradável ponto no qual não posso sair por causa dos casacos que tive que penhorar”.

Sem seu casaco de inverno, ele não podia ir ao Museu Britânico. O salão de leitura não aceitava simplesmente qualquer um que chegasse a partir das ruas: e um homem sem um casaco, mesmo que tivesse um passe de entrada, era simplesmente qualquer um. Sem seu casaco, Marx não estava, em uma expressão cuja força é difícil de reproduzir, “vestido em condições em que pudesse ser visto”.

O casaco de inverno de Marx, como num eterno retorno, estava destinado a entrar e sair da loja de penhores durante todos  os anos de 1850 e o início dos anos de 1860. E seu casaco determinava diretamente que trabalho ele podia fazer ou não. Se ele não pudesse ir ao Museu Britânico, ele não podia realizar a pesquisa para o Capital.

O casaco de Marx determinava assim o que ele escrevia.

Existe, aqui, um nível vulgar de determinação material que é difícil até de considerar.

Em setembro do mesmo ano, ele não pôde escrever seus artigos para o New York Daily Times, porque ele não podia se permitir comprar os jornais que precisava ler para escrever seus artigos. Em outubro, Marx teve que penhorar um casaco que remontava aos seus dias de Liverpool, a fim de comprar papel para escrever.

É notório que, as relações do lar de Marx  com os donos das lojas de penhores eram habituais, em 1850,  penhoraram os objetos de prata e também venderam móveis. Em 1852, foi o casaco de inverno para comprar papel para poder continuar a escrever. Em 1853,  não se encontra um centavo na casa. Em 1856, precisaram não apenas de toda a ajuda de Engels, mas também penhorar algumas posses domésticas. Em 1858,  Jenny Marx penhorou seu xale e, no final do ano, ela estava afligida com cartas de cobrança de seus credores. Em abril de 1862, tiveram que penhorar as roupas das filhas e da criada, bem como suas próprias roupas. Em janeiro do ano seguinte, além de lhes faltar alimentação e carvão, as roupas das filhas foram, outra vez, penhoradas e elas não puderam ir à escola. Em 1866, penhorou-se tudo que era possível e Marx não podia comprar papel para escrever. No ano de 1866, Jenny Marx não podia sair porque todas as suas roupas respeitáveis tinham sido penhoradas.

Para os Marx a felicidade era frequentemente medida pela compra de novas roupas ou pela recuperação de coisas da loja de penhores. Quando Wilhelm Wolff morreu em 1864, deixando a Marx um legado considerável, Marx escreveu: “ Eu gostaria muito de comprar seda de Manchester para toda a família”.

Foi Marx quem escreveu sobre o funcionamento do dinheiro, mas eram sua mulher Jenny, e  sua criada, Helene, que organizavam as finanças da casa e faziam as visitas à loja de penhores.

Marx, contudo, nunca ficou isolado das crises das finanças domésticas, como testemunham suas muitas e queixosas cartas a Engels. Dentre elas está uma em que constata ironicamente a Engels que, nunca escreveu tanto sobre dinheiro necessitando tanto dele.

Até mesmo as estórias que contava às suas filhas são assombradas pela migração dos objetos sob a pressão da dívida.

Para Marx e sua família assim como para os operários sobre os quais ele escreveu,  não havia “meras” coisas. Elas eram os materiais, as roupas, a mobília, com as quais se construía uma vida, elas faziam parte de suas histórias, mas frequentemente eram penhorados, para ter o que comer.

Toda pequena riqueza que eles tinham era armazenada não como dinheiro em bancos, mas como coisas em casa. O bem-estar podia ser medido pelas idas e vindas dessas coisas. Estar sem dinheiro significava ser forçado a desnudar o corpo. Ter dinheiro significava tornar a vestir o corpo.

Para ter-se um teto sobre a cabeça e alimento sobre a mesa, os materiais íntimos do corpo tinham que ser penhorados. E algumas vezes tinha que se escolher entre a casa e o corpo.

 O casaco de Marx era como uma extensão do seu eu, de sua identidade, uma prova material de parte de sua história, que muitas vezes ele tinha que abrir mão para poder sobreviver, para não passar fome, mas logo que recuperava as finanças lá estava Marx retornando com seu casaco, com suas memórias e também com a garantia que continuaria escrevendo O Capital.

Bibliografia:

Stallybrass Peter, O casaco de Marx – roupas memória, dor, tradução Tomaz Tadeu, autêntica.