sexta-feira, 1 de agosto de 2014

HOMERO

 ODISSÉIA E A TEOLOGIA HOMÉRICA
 (por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)

Resumo: Este artigo pretende comentar a Odisséia de Homero sobre a perspectiva da Teologia Homérica abordando mais precisamente a questão Moral e do “Maravilhoso”, baseado em Bernard Knox.  Afinal, será que os Deuses da Odisséia respeitam os códigos de conduta humana? Será que continuam decidindo sobre o destino dos mortais?

 Introdução:

Ao contrário da Ilíada, a Odisseia é um épico de base totalmente doméstica. À exceção das viagens, estamos com os pés no chão, seja nas copiosas e frequentes refeições no palácio ou na domesticidade rural da cabana de Eumeu. No entanto, o poema baseia-se firmemente no que poderíamos chamar de “ tempo heroico”, uma época em que os homens eram mais fortes, mais corajosos e mais eloquentes do que hoje, e as mulheres mais bonitas, mais poderosas e inteligentes do que têm sido desde então, e os deuses, tão próximos da vida humana e tão envolvidos com os indivíduos, seja na afeição ou na raiva, que intervinham em sua vida e lhes apareciam em pessoa.

A questão da Moral e do “Maravilhoso”(intervenção Divina):

A tendência dos críticos modernos de enfatizar o aspecto singular do heroísmo da Odisseia, às custas e muitas vezes com a exclusão de aspectos reconhecidamente aquilianos da vingança heroica que finalizam o épico, equipara-se a uma tendência a perceber novos desenvolvimentos no Olimpo, na natureza e na ação dos deuses, especialmente Zeus.

O que aconteceu, segundo Alfred Heubeck, foi nada menos que uma “ transformação ética”: “ Com discernimento e sabedoria, Zeus agora controla o destino do mundo de acordo com princípios morais, o que, por si só gera e preserva a ordem. Falta pouco ao pai dos deuses para tornar-se o verdadeiro soberano do mundo” ( I, p.23).

Independentemente do fato de que se possa duvidar se Zeus em algum momento supriu esse pouco que faltava, é difícil encontrar provas dessa transformação ética na Odisseia. Na reunião no Olimpo com a qual o poema se inicia, Zeus discute o caso de Egisto, que, desconsiderando um aviso transmitido por Hermes, seduziu Clitemnestra e, com a ajuda desta, assassinou Agamêmnon.

“ Vede bem”, diz Zeus, como os mortais acusam os deuses!

De nós (dizem) provêm as desgraças, quando são eles, pela sua loucura, que sofrem mais do que deviam! (I.32-4)

Não há, como aponta o próprio Heubeck, “ nada de novo nesse discurso moralizante”. Zeus admite que grande parte do sofrimento da humanidade é responsabilidade dos deuses; sua queixa é que os homens aumentam esse sofrimento com suas próprias iniciativas imprudentes.

O conselho no Olimpo apresenta-nos uma situação muito familiar desde a Ilíada: deuses opondo-se fortemente uns aos outros com respeito ao destino dos mortais.

Os modelos de diplomacia olímpica da Ilíada reaparecem na Odisseia. Ulisses, ao cegar Polifemo, filho de Posêidon, provocou a ira vingativa do deus  que governa as ondas.

Quando o herói encontra Atena na praia de Ítaca pergunta-lhe, bruscamente, por que esta o abandonou em suas andanças:

 nunca mais te vi, ó filha de Zeus, nem na minha nau te senti/ embarcar, para que afastasse, para longe o sofrimento (XIII.318-9).

A resposta da deusa, curta, obviamente constrangida, dividida entre os efusivos elogios ao herói e a retirada da neblina para mostrar a Ulisses que ele de fato está em casa, é um reconhecimento da concessão a uma força superior.

Mas não quis lutar contra Posêidon, irmão de meu pai (XIII.341), diz ela.

E mesmo essa desculpa é evasiva: ela não faz nenhuma tentativa de explicar por que não ajudou Ulisses antes que este incorresse na fúria de Posêidon. Só depois de obter a concordância de Zeus ela toma as medidas que conduzem Ulisses de volta a casa. Propõe a Zeus que Ulisses seja libertado de seu confinamento de sete anos na ilha de Calipso, e o faz durante uma reunião no Olimpo da qual Posêidon encontra-se ausente; ele está longe, nos confins da terra, recebendo uma homenagem dos etíopes.

Na realidade, Posêidon é enganado; quando retorna e vê Ulisses aproximando-se da costa de Esquéria em sua jangada, fica furioso.

Ah, decerto os deuses mudaram de intenção a respeito/ de Ulisses, enquanto eu estava entre os Etíopes (v.286-7).

Atena não o desafiaria abertamente; ela age por trás de suas costas.

Posêidon sabe que, uma vez que chegue a Esquéria, está destinado / que (Ulisses) escape à servidão da dor que sobre ele se abateu  (v.288-9) e que, nesse caso, os feácios o enviarão para casa em uma nau de rapidez sobrenatural, carregada de tesouros maiores do que tudo que ele conseguiu em Troia e perdeu no mar. O poder de Posêidon foi desafiado, sua honra, ofendida, e alguém tem de pagar por isso. Ulisses está agora fora de seu alcance, mas os feácios são outra questão. Zeus pai, eu nunca mais serei honrado entre os deuses /imortais , queixa-se ele, visto que certos mortais não me dão honra alguma:/ os Feácios, que são da minha própria linhagem  (XIII.128-30). Zeus assegura-lhe que não há perda de respeito por ele no Olimpo, e quanto aos mortais...

 Se algum dos homens, cedendo à violência e à força, não te honrar, podes sempre praticar vingança. Faz o que  quiseres, o que ao coração te aprouver. (XIII.143-5)

Posêidon explica seu objetivo:

(...) Mas agora a bela nau dos Feácios, que regressa de transportar Ulisses, quero estilhaçar no mar brumoso, para que se abstenham e desistam de transportar homens; e a sua cidade rodeá-la-ei com uma montanha enorme e circundante. ( XIII.148-52)

Zeus aprova e sugere um requinte: transformar a nau e, consequentemente, sua tripulção de 52 jovens –  que já antes provaram ser os melhores               ( VIII.36) – em rocha enquanto os feácios assistem sua chegada ao porto. Posêidon apressa-se a executar o plano e, ao ver isso, o rei Alcino reconhece a realização de uma profecia, que também anunciou que a cidade seria rodeada por uma grande montanha. Ele conduz seu povo ao sacrifício e à oração para Posêidon, na esperança de obter sua misericórdia e prometendo que os feácios nunca mais dariam passagem marítima a homens que chegassem na sua cidade.

É o fim da grande tradição feácia de hospitalidade e ajuda ao estrangeiro e viajante.

Essa ação de Zeus lança uma luz perturbadora na relação entre os ideais humanos e a conduta divina. Se há um critérios moral permanente no universo da Odisseia, é a assistência, por parte dos ricos e poderosos, aos estrangeiros, andarilhos e  mendigos. Esse código de hospitalidade é uma moralidade universalmente reconhecida. E seu agente divino, assim o creem todos os mortais, é o próprio Zeus, Zeus xeinios, protetor dos estrangeiros e suplicantes. Seu nome e seu atributo são invocados repetidas vezes por Ulisses, e também por Nausica, o ancião feácio Equeneu, Alcino e Eumeu.

De todos os muitos anfitriões avaliados segundo esse padrão moral, os feácios destacam-se como os mais generosos, não apenas na régia acolhida que proporcionam a Ulisses, como também na rápida condução do herói a sua própria pátria, ajuda que oferecem a todos os viajantes que atingem a costa.

E agora são punidos pelos deuses precisamente por esse motivo, visto que sua magnanimidade fez com que Posêidon achasse que sua honra – a delicada sensibilidade à opinião pública que em Aquiles ocasionou dez mil desgraças aos aqueus e levou Ájax ao suicídio, alimentando-lhe a rabugice no Hades – havia recebido um golpe intolerável. Aqueles que o ofenderam tem de ser punidos ainda que a punição revele a mais completa indiferença ao único código de conduta moral que prevalece no perigoso universo da Odisseia.

Confrontando com a ira de Posêidon contra os feácios, Zeus, protetor dos estrangeiros, associa-se entusiasticamente a seu poderoso irmão em sua ameaça. Ele não apenas sugere o requinte de transformar a nau em pedra, como aprova a intenção de Posêidon de isolar os feácios para sempre do mar, assentando uma imensa montanha ao redor da cidade.

Homero não revela o que aconteceu: quando contemplamos os feácios pela última vez, estão prestes a engajar-se em sacrifícios e orações a Posêidon, na esperança de que este vá poupá-los, Mas uma coisa fica clara: encerraram-se a generosa hospitalidade e a condução dos estrangeiros a seu destino.

Um deus forçou essa decisão; sua punição vingativa foi completa aprovada por Zeus. Zeus pode por vezes agir como protetor dos suplicantes, mendigos e andarilhos, mas as preocupações e concepções humanas de justiça tornam-se insignificantes quando a manutenção do prestígio de um deus poderoso está em xeque.

Nesse ínterim, Ulisses, adormecido em uma praia de Ítaca ao lado de seu tesouro, desperta e depara-se com uma paisagem de que não reconhece – Atena ocultou-a com neblina. Ele chega à conclusão de que a tripulação feácia largou-o em alguma praia estrangeira:

(...) não cumpriram a palavra.

Que Zeus, deus dos suplicantes, os castigue; ele que todos

os homens observa e castiga quem transgride. (XIII.212-4)

Ele não sabe, mas o Zeus dos suplicantes já pagou na mesma moeda. Não por terem quebrado sua promessa, mas por terem cumprido com sua palavra.

Posêidon e Zeus não são os únicos deuses do Olimpo a mostrar a indiferença aos códigos de conduta e ao senso de justiça humanos. Mais adiante no poema, Atena associa-se a eles. Há, entre os pretendentes, um homem decente, Anfínomo, que com suas palavras/ a Penélope mais agradava, pois era compreensivo (XVI.397-8). É ele que aconselha os pretendentes a rejeitar a proposta de Antino de emboscar e assassinar Telêmaco em Ítaca, agora que este se esquivou do navio que o esperava em uma emboscada e voltou para casa em segurança. E é Anfínomo que, após a vitória de Ulisses sobre Iro no pugliato, bebe à saúde dele em uma taça dourada e declara: Sê feliz, ó pai estrangeiro! Que no futuro possas encontrar/ a ventura, pois agora tens na verdade sofrimentos em demasia (XVIII.122-3).

O herói tenta salvá-lo do massacre iminente. Previne-o seriamente de que Ulisses logo retornará, está bem próximo de casa, e que haverá derramamento de sangue. Este é um terreno perigoso. Ele chama Anfínomo pelo nome; como aquele mendigo esfarrapado, que tinha acabado de chegar, podia conhecê-lo? Ulisses vai ainda mais longe. Anfínomo, parece-me que és um homem prudente ,diz. Assim já era também teu pai. É um deslize que ele tenta imediatamente encobrir, apressando-se a acrescentar: da sua nobre fama ouvi falar (XVIII.I25-6). Homero deixou claro o grande risco que Ulisses está correndo ao tentar salvar a vida de Anfínomo, e ressalta sua sinceridade ao fazê-lo rezar pedindo a intervenção divina a favor do pretendente:

(...) que um deus

Te leve daqui para tua casa, para que não o encontres

Quando esse homem regressar à sua terra pátria amada ( XVIII.I46-8)

Longe  de despachá-lo para casa, um poder divino já proferiu sua sentença: Também a ele/ Atena atou os pés, para ser chacinado pela lança de Telêmaco ( XVIII.155-6).

Anfínomo é o terceiro pretendente a morrer, imediatamente após os dois principais vilões, Antino e Eurímaco.

 

Conclusão:

Quando não estão decidindo o destino dos mortais, os deuses vivem uma vida própria no Olimpo,

(...) onde dizem ficar a morada eterna

dos deuses: não é abalada pelos ventos, nem molhada

pela chuva, nem sobre ela cai a neve. Mas o ar estende-se

límpido, sem nuvens; por cima paira uma luminosa brancura.

Aí se aprazem os deuses bem-aventurados, dia após dia. (VI.42-6)

 

E muitas vezes, conforme a conveniência, demonstram indiferença aos códigos de conduta e ao senso de justiça humanos.

Em ambos os épicos, os deuses desfrutam seus prazeres e acalentam suas intrigas no Olimpo, ao passo que, na terra, decidem o destino dos mortais e suas cidades com escassa consideração para com as concepções humanas da justiça divina, sempre que aquilo que está em risco é o interesse ou o prestígio de um deus importante.

Os seres humanos podem, aliás, como os pretendentes e a tripulação de Ulisses, ocasionar infortúnios para si mesmos e “ sofrem mais do que deviam” (I.34), mas os infortúnios também podem sobrevir àqueles que, como os feácios e Anfínomo, são admiráveis segundo os padrões humanos e, em ambos os casos, é um deus que sela seu destino. 

 

Referências:

1) Anotações de classe;

2) Homero, Odisseia, Clássicos, tradução e prefácio de Frederico Lourenço, editora Penguin Companhia das Letras- 2011;

3)Abbagnano Nicola, Dicionário de Filosofia, editora Martins Fontes – 2012;

 

4) Huisman Denis, Dicionário dos Filósofos, editora Martins Fontes – 2004.