sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

SIMPLESMENTE NIETZSCHE

SOBRE NIETZSCHE
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)


Resumo: Este artigo oferece um breve resumo sobre a biografia de Nietzsche.

“Há palavras em mim que ainda cortam o coração de um Deus, sou um rendez-vous de experiências, que só se dão a seis mil pés acima de qualquer atmosfera humana…” (Nietzsche)


Friedrich Wilhelm Nietzsche morre em Weimar ao meio-dia de 25 de agosto de 1900. Alheio ao que ocorre à sua volta, ele passa os 10 últimos anos de vida sob a tutela da mãe e, depois, da irmã. Uma vida de errança, sofrimento, solidão.
Nietzsche nascera numa família de pastores protestantes. Em 1858, aos 14 anos, ingressara como bolsista no Colégio Real de Pforta, renomada instituição de ensino. Dedicara grande parte do tempo ao estudo da teologia; queria ser pastor como o pai. Mas era sobretudo pela música e pela poesia que se sentia atraído. Começara a escrever e compor. Ao terminar os estudos secundários, em setembro de 1864, escolheu especializar-se em filologia clássica. E, em 1869, foi nomeado professor na Universidade da Basiléia, na Suíça. Passou então a frequentar o teólogo Franz Overbeck, o historiador Jack Burckhardt e o compositor Richard Wagner.
Seu primeiro livro, O nascimento da tragédia no espírito da música, publicado em janeiro de 1872, embora bem acolhido nos círculos wagnerianos, provocou o constrangimento dos filólogos e foi objeto de severas críticas. Na verdade , ele já testemunhava o interesse de seu autor pelas questões filosóficas. Se a Primeira consideração extemporânea teve alguma repercussão em 1873, com artigos e resenhas publicados nos jornais de Augsburgo e Leipzig, a Segunda e a Terceira, em 1874, passaram quase desapercebidas e, em 1876, a Quarta, Richard Wagner em Bayreuth, foi celebrada apenas pelos que se achavam ligados ao compositor.
Em 1879, Nietzsche atinge o ponto mais baixo de sua vitalidade. Seu estado de saúde é desesperador. Atravessa mais de 70 horas de dores ininterruptas, mais de 118 dias de crises graves. Problemas estomacais, náuseas e vômitos o retêm na cama, dores na vista interferem no seu ritmo diário, insônias frequentes desorganizam o seu cotidiano, violentas enxaquecas lançam em profunda prostração. Apesar disso, escreve. No ano anterior, reunindo as suas notas, folhas e folhas cobertas de reflexões sobre diversos temas sem nenhum elo aparente, publicara Humano, demasiado humano.  Pensara nos enciclopedistas - Voltaire, Diderot - e na sua aversão pelos sistemas filosóficos acabados. Lembrara-se dos moralistas - Chamfort, La Rochefoucauld- e de suas máximas e pensamentos. Agora, adotando ainda o estilo aforismático, elabora dois apêndices ao livro Miscelânea de opiniões e sentenças e O andarilho e sua sombra    
No mês de maio de 1879, ele apresenta a sua carta de demissão à Universidade da Basiléia. Graças ao empenho de Overbeck, a municipalidade, a “sociedade acadêmica”e a universidade se cotizam e lhe concedem uma pensão anual pelos serviços prestados. É o quanto lhe basta para viver modestamente até o fim de seus dias. Doente, abraça então uma vida errante.
Para onde ir? - é a pergunta que se fará inúmeras vezes nos anos seguintes. Em nenhuma parte se deixará reter por mais de seis meses. Percorrerá as estradas da Suíça, Itália, França e Alemanha; sonhará com lugares mais distantes, “horizontes mais longínquos”. Em fevereiro de 1881, conclui um novo livro Aurora. Um ano depois, mais um: A gaia ciência. Aurora e A gaia ciência, como Humano, demasiado humano e seus dois apêndices, só encontrarão respostas em cartas de amigos - entusiasmadas, embaraçadas, consternadas.
Nietzsche não se habitua à solidão; ela lhe pesa e talvez lhe fosse indispensável. Em Roma, numa manhã de abril de 1882, encontra Lou Andreas-Salomé. Aos 37 anos apaixona-se. Mas todos parecem conspirar contra a sua paixão. A família empenha-se em denegrir “a jovem russa”; insinua que seu comportamento não é dos mais convenientes e suas atitudes chegam a ser debochadas. Mal-entendidos, intrigas, trocas de injúrias, calúnias. Arrastado por sentimentos contraditórios, ele não sabe em quem confiar. Em dezembro, rompe com Lou e interrompe a correspondência com a mãe e a irmã. Ideias de suicídio perseguem-no; por três vezes, toma uma quantidade abusiva de narcóticos.
Mas, logo em janeiro de 1883, num vilarejo da riviera italiana chamado Portofino, Nietzsche cria a primeira parte de Assim falava Zarathustra - Um livro para todos e para ninguém em 10 dias. Em julho do mesmo ano, escreverá a segunda parte em Sils Maria, também em 10 dias. E apenas 10 dias serão suficientes, em Nice, para redigir, em janeiro de 1884, a terceira. Um ano depois, nessa cidade, virá a elaborar em 10 dias a quarta e última parte do livro. Para publicá-lo, tem de enfrentar vários obstáculos. A primeira parte leva meses para aparecer. Schmeitzner, seu editor, cumpre sem pressa o contrato com um autor malsucedido, dando prioridade à impressão de cânticos religiosos e brochuras anti-semitas. Aceita ainda editar, juntas a segunda e a terceira partes, mas diante da quarta mostra-se intransigente em sua recusa. Depois de tentativas humilhantes e estéreis, o autor custeia uma tiragem de 40 exemplares. É mais do que suficiente: não chega a 10 o número de pessoas a quem pensa enviá-los.
Veneza, Sils Maria, Naumburgo, Leipzig, Munique, Florença, Gênova, Nice. De um ponto a outro, Nietzsche expede a mala de 100 quilos, com livros e manuscritos. Por vezes, sem saber o que fazer, deixa-a durante dias no guarda-volumes; no bolso, o recibo de todos os seus pertences. De quando em quando, chegam-lhe pacotes de livros enviados por Overbeck; o amigo conhece suas dificuldades financeiras. Numa ou noutra cidade, detém-se para trabalhar nas bibliotecas públicas. Há muito, sente-se atraído pelas ciências naturais e biológicas. Ainda na Basiléira, começara suas leituras em física e química. Em 1873, entusiasmara-se pelas ideias do astrônomo e matemático Boscovich. A partir de então, familiarizara-se com a física moderna - Vogt e Zoellner, com a biologia - Roux e Rolph, com a psicologia francesa - Ribot e Espinas, sem falar nos recentes estudos etnográficos.
Em 1886, Nietzsche acaba por elaborar um novo livro, Para além de bem e mal, que pensa publicar por sua própria conta. Desde que Schemeitzner se negara a imprimir a quarta parte de Assim falava Zarathustra, ele está às voltas com editores; todos se recusavam a publicar os seus livros. Por fim, Fritzsch, o editor de Wagner, assume a publicação das suas obras. Nietzsche lhe envia, então, os prefácios às novas edições de O nascimento da tragédia, do primeiro e do segundo volumes de Humano, demasiado humano, de Aurora e de A gaia ciência, assim como a quinta parte deste último livro. A ele encaminhará todos os seus escritos posteriores, a começar pela Genealogia da moral, que redige em 1887.
É por essa época que Nietzsche descobre Dostoievski, deixando-se fascinar pela fina análise psicológica que ele faz do criminoso. Em 1879, descobrira Stendhal, ficando encantado com suas palavras: “entro na sociedade por um duelo”. Com esses autores, busca cumplicidades. Há tempo, se sente abandonado: nem discípulos, nem leitores. Há tempo, percorre ansioso as livrarias; talvez tenha sido publicado algum artigo ou resenha sobre os seus próprios livros. Nada encontra. Seu estado de saúde se agrava.
Em 1888, um de seus anos mais fecundos no que concerne à atividade intelectual, escreve O caso Wagner, Crepúsculo dos ídolos, O anticristo, Ecce homo e elabora Nietzsche contra Wagner e Ditirambos de Dionísio. Sua Saúde se depaupera ainda mais.
Contudo, Nietzsche começa a fazer-se conhecer. Georg Brandes, professor de literatura comparada na Universidade de Copenhague, relata-lhe o sucesso das conferências sobre sua filosofia. August Strindberg, escritor sueco, participa-lhe a emoção causada pela virulência de suas palavras e coragem de suas ideias. Hippolyte Taine, crítico e historiador da arte francês, sugere-lhe tradutores para a edição francesa do Crepúsculo dos ídolos. Artigos polêmicos aparecem em jornais da Alemanha e da Suíça a propósito de seus livros. De São Petersburgo e de Nova Iorque chegam-lhe as primeiras cartas de admiradores de sua obra.
E assim Nietzsche faz planos e inicia contatos para assegurar a tradução de seus escritos. Quer editar o Ecce homo em 1889 e, daí a dois anos, lançar O anticristo em sete línguas simultaneamente. Nos últimos dias de dezembro de 1888, em Turim, uma forte tensão psíquica o leva a mergulhar no delírio.


Referência
Marton, S., Nietzsche; Os Filósofos Clássicos da Filosofia; Petrópolis-RJ; Ed.Vozes; 2008.

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

ALÉTHEIA

ALÉTHEIA ou Verdade
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)


Resumo: Este artigo pretende abordar algumas perspectivas da palavra Alétheia mais conhecida como Verdade, extraída da obra Mestres da Verdade na Grécia Arcaica de Marcel Detienne.

Numa civilização científica, a ideia de Verdade implica as ideias de objetividade, comunicabilidade, unidade. Para nós, a verdade se define em dois níveis: conformidade com os princípios lógicos e conformidade com a realidade; assim, ela é inseparável das ideias de demonstração, verificação e experimentação. Pelo senso comum, a verdade é decerto uma das que parecem ter sempre existido, sem sofrer mudança alguma, uma das que também parecem relativamente simples. Quanto a verdade a Grécia por exemplo chama a atenção por duas razões inseparáveis: primeiro, porque são estreitas as relações entre a Grécia e a Razão ocidental, e a concepção ocidental de verdade objetiva e racional originou-se historicamente do pensamento grego. Sabe-se, por outro lado, que, na rica reflexão dos filósofos contemporâneos sobre o Verdadeiro, Parmênides, Platão e Aristóteles são sempre invocados, confrontados, questionados. 

Em segundo lugar, no tipo de razão que a Grécia constrói a partir do século VI, certa imagem da “Verdade” ocupa posição fundamental. Com efeito, quando, a reflexão filosófica descobre o objeto próprio à sua pesquisa, quando se destaca do fundo de pensamento mítico no qual a cosmologia dos jônicos ainda se enraíza, ela organiza seu campo conceitual em torno de uma noção central: Alétheia ou Verdade.

Quando aparece no prelúdio do poema de Parmênides, Alétheia não brota totalmente armada do cérebro filosófico. Sua história é longa. No estado da documentação, ela começa com Homero. Esse de fato poderia levar a crer que somente o desenrolar cronológico dos testemunhos sucessivos de Homero a Parmênides conseguiria lançar alguma luz sobre a Verdade. O problema, porém, formula-se em termos completamente diferentes. 

Desde longa data gosta-se de ressaltar o caráter estranho da encenação na filosofia parmenidiana: uma viagem de carro conduzido pelas filhas do Sol, uma via reservada ao homem que sabe, um caminho que conduz às portas do Dia e da Noite, uma deusa que revela o conhecimento verdadeiro, em suma, uma imagística mítica e religiosa que contrasta com um pensamento filosófico tão abstrato quanto o que trata do Ser em si, por exemplo. 

De fato, todas essas características, cujo valor religioso não pode ser contestado, nos orientam de modo decisivo para certos meios filosófico-religiosos em que o filósofo ainda é um sábio ou mesmo um mago.

Com Epimênides, com as seitas filosófico-religiosas, a pré-história da Alétheia racional está nitidamente orientada para certas formas de pensamento religioso em que o mesmo poder desempenhou papel fundamental.

A pré-história da Alétheia filosófica nos conduz para o sistema de pensamento do adivinho, do poeta e do rei justiceiro, para os três setores em que certo tipo de discurso se define pela Alétheia.

Na história de Alétheia, encontramos o terreno ideal para, por um lado, formular o problema das origens religiosas de certos esquemas conceituais da primeira filosofia e, assim, pôr em evidência um aspecto do tipo de homem que o filósofo inaugura na cidade-Estado grega e, por outro lado, depreender, nos próprios aspectos de continuidade que tecem uma trama entre o pensamento religioso e o pensamento filosófico, as mudanças de significação e as rupturas lógicas que diferenciam as duas formas de pensamento.

Referência:


DETIENNE, Marcel; Mestres da Verdade na Grécia Arcaica; Trad. Ivone C. Benedetti; Martins Fontes, S.P., 2013.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

O SUPLÍCIO EM FOUCAULT

VIGIAR E PUNIR - O CORPO DOS CONDENADOS
(Por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)

Resumo: Este artigo  é uma apertada síntese do “O corpo dos condenados”, de "Vigiar e Punir”, de Michel Foucault. Nele constataremos o deslocamento das penas de sofrimentos corporais gravíssimas à suspensão de direitos.

Foucault inicia o capítulo I “O corpo dos condenados" com o caso Damiens,  quando na metade do século XVIII (1757) em Paris, autor de um parricídio foi condenado ao suplício, primeiro a pedir perdão publicamente e logo em seguida a ser esquartejado e queimado publicamente, em frente a igreja de Paris.

Três décadas mais tarde, por volta de 1787, o regulamento redigido por Léon Faucher para a “Casa de jovens detentos em Paris”, estabelecia horário para tudo, era um total controle sobre os detentos através do horário. Através deste estabeleciam as tarefas, controlava-se toda a vida do detento.

O filósofo apresenta dois exemplos bem diversos para comparação, o suplício e a utilização de tempo. Constata-se que eles não sancionam os mesmos crimes, não punem os mesmo gênero de delinquentes, mas definem bem, cada um deles, um certo estilo penal.

Menos de um século medeia entre ambos. É a época em que foi redistribuído, na Europa e nos Estados Unidos, toda a economia do castigo. Época de grandes “escândalos” para a justiça tradicional, época dos inúmeros projetos de reformas, nova teoria da lei e do crime, nova justiça moral ou política do direito de punir. Para justiça penal uma nova era.

Dentre tantas modificações Foucault atem-se a uma: o desaparecimento dos suplícios.

Observa o pensador que, no fim do século XVIII e começo do XIX, a despeito de algumas grandes fogueiras, a melancólica festa de punição vai-se extinguindo.

Beccaria há muito dissera: “ O assassinato que nos é apresentado como um crime horrível, vemo-lo sendo cometido friamente, sem remorsos ”.  É indecoroso ser passível de punição, mas pouco glorioso punir.

O filósofo observa que, o sofrimento físico, a dor do corpo não são mais os elementos constitutivos da pena. O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis  a uma economia dos direitos suspensos. Tanto é assim que, os rituais modernos de execução capital dão testemunho desse duplo processo  -  supressão do espetáculo e anulação da dor.

Em 1792 aparece a guilhotina , a morte então é reduzida a um acontecimento visível e instantâneo.

Em princípios do século XIX desaparece o grande espetáculo da punição física, o corpo supliciado é escamoteado. Exclui-se do castigo a encenação da dor. Entra-se na época da sobriedade punitiva., pode-se considerar o desaparecimento dos suplícios como um objetivo mais ou menos alcançado, por volta de 1830 a 1848. Claro, tal afirmação em termos globais deve ser bem entendida. As transformações não se fazem em conjunto nem de acordo com um único processo. Houve atrasos. Paradoxalmente, a Inglaterra foi um dos países mais reacionários ao cancelamento dos suplícios. Deve-se levar em consideração também as acelerações e recuos que o processo global seguiu entre 1760 e 1840. Tudo isto torna bem irregular o processo evolutivo que se desenvolveu na virada do século XVIII e XIX.

Assim, quando se chega em 1840 embora os mecanismos punitivos tenham adotado novo tipo de funcionamento, o processo ainda não chegou ao fim.  A redução do suplício era uma tendência com raízes na grande transformação de 1760-1840, ms que não chegara a termo.

Na realidade a prisão nos seus dispositivos mais explícitos sempre aplicou certas medidas de sofrimento físico. Os castigos como trabalhos forçados ou prisão -  privação pura e simples da liberdade - nunca funcionaram sem certos complementos punitivos referentes ao corpo: redução alimentar, privação sexual, expiação física, masmorra. Permanece, portanto, um fundo “supliciante" (sofrimento físico) nos modernos mecanismos da justiça criminal, fundo que não está inteiramente sob controle.

Mas se não é mais ao corpo que se dirige a punição, em suas formas mais duras, sobre o que, então , se exerce? A punição deveria cair não sobre o corpo , mas sobre a alma, segundo os teóricos (1780), período que ainda não se encerrou.

Faz 150 ou 200 anos que a Europa implantou seus novos sistemas de penalidades, e desde então os juizes, pouco a pouco, começaram a julgar coisa diferente além dos crimes a “alma"dos criminosos.

E, com isso começaram a fazer algo diferente de que julgar, ou seja, no próprio cerne da modalidade judicial do julgamento, outros tipos de avaliação se introduziram discretamente, modificando no essencial suas regras de elaboração.

Assim a sentença que condena ou absolve não é simplesmente um julgamento de culpa, uma decisão legal que sanciona, ela implica uma apreciação de normalidade e uma prescrição técnica para uma normalização possível.  O juiz de hoje, magistrado ou jurado, faz outra coisa, diferente de julgar.

Ele não julga sozinho. Ao longo do processo penal, e da execução da pena, prolifera toda uma série de instâncias anexas. Pequenas justiças e juizes paralelos ou psicológicos, magistrados da aplicação das penas, educadores, funcionários da administração penitenciária fracionam o poder legal de punir; dir-se-á que nenhum deles partilha realmente o direito de julgar, mas desde que as penas e medidas de segurança definidas pelo tribunal não são determinadas de uma maneira absoluta, são sem dúvida mecanismos de punição legal que lhe são colocados à sua apreciação; juizes anexos.

Desde que funciona o novo sistema penal, definido pelos grandes códigos dos séculos XVIII e XIX, um processo global levou os juizes a julgar coisas bem diversas do que crimes, foram levados em suas sentenças a fazer coisas diferentes de julgar; e o poder de julgar foi, em parte, transferido a instâncias que não são a dos juizes da infração. 

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

ESTÓICOS

  O TEMPO ESTOICO
  (por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)

Resumo: Este artigo é uma apertada síntese do tempo do estoico que se encontra no livro “O ofício do filósofo estóico”da professora Rachel Gazzola. Nele constataremos que para os estóicos não há passado, nem futuro, apenas o instante.

O tempo da ética estóica obedece ao rítmico da vida universal, ou seja, é aquele que constitui a ação correta e está identificado com o instante, pois o futuro e o passado não existem, mas subsistem como incorpóreos. Qualquer regra exterior a ser seguida ( mandamentos religiosos, históricos…) não terá conotação ética, segundo a Stoa; não terá o peso que normalmente lhe damos. É na interioridade e no tempo dessa interioridade que a eticidade é edificada.   Proclo noticia:

“…com efeito,  o tempo é um de seus ( dos estóicos) incorpóreos que eles desprezam como coisas débeis, desprovidas de ser e só existindo nos simples pensamentos ( en einóiais hypistamena pschilais)…”(Proclo, Plat. Tim., 271 d.)

O instante é o “tempo" da Heimarméne ( Destino), da Prónoia ( Previdência), indicativo da escolha do agente moral. Ele adere à densidade e plenitude da eternidade dos deuses nos constantes estados de sua adesão. Só o sábio tem a virtude e a felicidade nessa perspectiva; só ele é um homem divino sempre. Os homens comuns vivem estados de virtude e felicidade e são sábios ao menos enquanto perduram tais estados. Goldschmidt comenta os estados passionais, distantes da sabedoria:

“… A perfeição não é solidária  do tempo que escoa e que parece inflar e alongar-se… o próprio da paixão é sujeitar-nos ao tempo irreal, em que o passado sobrevive para comunicar sua ‘existência'e seu conteúdo ao futuro”.  ( V. Goldschmidt, Le sytème stoicien et l'idée de temps, op. cit., pp.202 e 193.)

Esse belo comentário de Goldschmidt indica que, na saída do compasso universal, o insensato mergulha na temporalidade propriamente humana, perde-se no tempo agitador das paixões da alma, permanece servo da memória e da esperança, isto é, do passado e do futuro. Escravo das paixões, sua memória deseja o que não mais tem, do mesmo modo que lamenta o que ainda não obteve. Inalcançáveis ambos, passado e futuro, fica o presente dissolvido pelo peso das lembranças e esperanças.

As duas temporalidades, a dos deuses e a dos homens, enfrentam-se:
O tempo humano, de Tyche: da fortuna, do acaso, espaço da historicidade, da insensatez, das ações determinadas pela exterioridade;
O tempo divino, de Anánke: da Cosmópolis, do sábio, das ações pensadas na interioridade. A autarquia estóica situa o homem no “tempo”divino, no aion (eternidade).

É preciso frisar, todavia, que não há uma insensibilidade aos acontecimentos, uma altivez estóica ou frieza diante dos males, como passou a significar o adjetivo estóico. Há bem mais uma ausência de agitação violenta da alma, sinal da negação do tempo acumulador de desejos insaciáveis.

A apatia estóica, no rigor do termo, implica atividade que favorece a ação do lógos (pensamento), não, porém, para evadir-se das coisas que acontecem, bem ao contrário. Nesse sentido, a apatia não deve ser entendida como ausência de ação, e nem a ataraxia como alheamento diante da vida. É uma busca de estabilidade da alma diante de acontecimentos. Pode-se dizer que tais afirmações são contrárias ao que o senso comum pensa dos estóicos. Talvez se devam compreender os estados passionais desmedidos como acontecimentos que, lidos de certo modo, chegam aos olhos já comprometidos com o passado e com o futuro, que não são, dada a agitação da alma. Não se pode, comprometido que se está com a cronologia, enlaçar a escolha de modo a receber o que advém, como advém.

Não seria exatamente esse o modo como interpretamos as coisas que nos chegam, interpretações mergulhadas no passado e no futuro, o solo propício para a fuga do que acontece no presente? Assim sendo, há um inversão sui generis do que pensamos ser a evasão do estoico ( sua apatia) em sua postura diante do mundo.  Nós, instalados que estamos na cronologia, evadimo-nos do que acontece ao interpretar o que advém com os instrumentos comprometidos com o passado e futuro.

Referência


GAZOLLA, Rachel, “O ofício do filósofo estóico”, S.P., ed. Loyola, 1999.

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Ts’ ui Pen e Deleuze


TEMPOS POSSÍVEIS
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)
           
RESUMO: Este artigo tem por finalidade  apresentar uma apertada síntese sobre a perspectiva de tempo de Ts’ui Pen e  Deleuze. 
                                                          
Ts’ui Pen é o governador de uma província chinesa, douto em astronomia, astrologia, livros canônicos, além de enxadrista, poeta e calígrafo. Borges conta que ele renunciou os prazeres “da opressão , da justiça, do numeroso leito, dos banquetes e ainda da erudição” a fim de compor um livro e um labirinto.  Com tal propósito enclausurou-se por treze anos no Pavilhão da Límpida Solidão. Depois de sua morte, no entanto, os herdeiros encontraram apenas escritos caóticos, e nenhum labirinto. O sinólogo Stephen  Albert assim resume sua hipótese a respeito: “ Ts’ui Pen teria dito uma vez ‘ Retiro-me para escrever um livro’ . E outra: ‘ Retiro-me para construir um labirinto’ . Todos imaginaram duas obras ; ninguém pensou que livro e labirinto eram um só objeto”. Tal pista foi-lhe sugerida por um fragmento de carta, em que Ts’ui Pen escrevia: “ Deixo aos vários futuros ( não a todos) meu jardim de caminhos que se bifurcam”. “ Quase de imediato”, refere Albert, “ compreendi; o jardim dos caminhos que se bifurcam era o romance caótico; a frase  ‘vários futuros ( não a todos)’  sugeriu-me a imagem da bifurcação no tempo, não no espaço. Em todas as ficções, cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas, opta por uma e elimina as outras; na do quase inextricável Ts’ ui Pen, opta, simultaneamente, por todas. Cria, assim, diversos futuros, diversos tempos, que também proliferam e se bifurcam. Daí as contradições do romance”. As variações a que eram submetidos os relatos de Ts’ui Pen não constituíam o capricho ocioso de um romancista menor, nem um experimento teórico mundano, mas respondiam a uma inquietação metafísica, a uma questão filosófica maior que o ocupara ao longo de toda a sua vida: o abismal problema do tempo.

Eis como Albert o explica a um interlocutor ilustre, descendente de Ts’ui Pen: “O jardim dos caminhos que se bifurcam é uma imagem incompleta, mas não falsa, do universo tal como o concebia Ts’ui Pen. Diferentemente de Newton e de Schopenhauer, seu antepassado não acreditava num tempo universo, absoluto. Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam , se bifurcam, se cortam ou se secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades. Não existimos na maioria desses tempos; em alguns o senhor existe e não eu. Noutros, eu, não o senhor; noutros, os dois (…) O tempo se bifurca perpetuamente em inumeráveis futuros. Num deles sou seu inimigo”.

Assim como Ts’ui Pen e diferentemente de Newton e Schopenhauer,  Deleuze não acredita num tempo uniforme , absoluto, mas em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram abrange todas as possibilidades. Cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas, ao invés de optar por uma e eliminar as outras, opta por todas, isto é , cria múltiplos futuros, diversos tempos que também proliferam e bifurcam, produzindo essa pululação de vidas disparatadas. É  preciso, dizia Deleuze, recusar a regra de Leibniz segundo a qual os mundos possíveis não podem ser trazidos à existência.

Ora percebe-se uma intrigante tese sobre a multiplicidade temporal. Deleuze trabalha  inúmeros tempos em sua obra nem sempre compatíveis entre si, como se a inspiração borgeana atravessasse não só esse obscuro objeto filosófico, mas também e sobretudo sua própria elaboração e feitura.

Interessante que entre Ts’ui Pen e Deleuze há uma separação temporal de muitos séculos, viveram em épocas totalmente diversas, porém ambos estão ao mesmo tempo juntos compartilhando a multiplicidade temporal. E nesse momento ( nesse tempo ) se encontram. 

Tempos transcendentais?
                                           
Referência

PELBART, Peter Pál, O tempo não-reconciliado, in Gilles Deleuze: uma vida filosófica, tradução Ana Lúcia de Oliveira,  editora 34.

terça-feira, 19 de julho de 2016

PUBLICAÇÃO DO LIVRO PODER CONSTITUINTE

É com muito orgulho e satisfação que anunciamos a publicação pela editora Lumen Juris do nosso livro "PODER CONSTITUINTE: Pressupostos para estruturar e manter um Estado Democrático de Direito".

Referido livro conta com a apresentação do Juiz Federal e professor Doutor Mássimo Palazzolo e com prefácio do Professor Doutor Pietro de Jesus Lora Alarcon.

Enfaticamente, assim sinalizamos a realização deste livro:

Trata-se de um trabalho (e porque não dizer a realização de um sonho) iniciado quando lecionávamos nos bancos universitários a matéria Direito Constitucional, oportunidade em que percebemos a importância do tema Poder Constituinte para a compreensão exata de referida matéria. Somos sinceros em reconhecer que referido tema ganhava contornos de dificuldade na sua compreensão pelos alunos; já que, dentre outros fatores, não havia bibliografia que aproximasse e convencesse-os da realidade e concretização de referido tema. Nesse cenário acadêmico, desenvolvemos nossas aulas que foram lapidadas quando da realização do nosso mestrado, momento em que nos arvoramos na sapiência dos professores que nos impulsionou quanto à intelecção da forma com que a matéria Direito Constitucional e, consequentemente, do tema Poder Constituinte, deveriam ser enfrentadas em aula e também no cenário jurídico. Para a obtenção do nosso título, dissertamos sobre referido tema, que agora foi revisado para didaticamente melhor atender o público acadêmico da graduação e pós-graduação; consagrando nossa meta estabelecida quando do primeiro dia de aula nos bancos acadêmicos. Para tanto, fizemo-lo calcado numa aproximação dos conceitos de Constitucionalismo e Constituição, apoiando-nos em teorias e filosofias do Direito Constitucional das quais acreditamos ter subsidiado a sedimentação concreta do tema Poder Constituinte num Estado Democrático de Direito. Ao final, com o objetivo de fixar as posições enfrentadas e defendidas, fizemos uma análise da Constituição Brasileira de 1988 de maneira a entendê-la nas dimensões apontadas no trabalho.

O livro poderá ser adquirido diretamente no site da editora: 
https://www.lumenjuris.com.br/produto/poder-constituinte-2016/

Estará à venda nas principais livrarias a partir da segunda quinzena do mês de agosto.

Aos nossos familiares, amigos, leitores e alunos agradecemos pelo incentivo.