domingo, 17 de abril de 2016

FOUCAULT E A BUSCA DA VERDADE


Inquérito e Prova em Foucault
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)

 

Resumo: Este artigo é uma apertada síntese da Conferência 3 do livro A Verdade e as formas jurídicas de Michel Foucault. Nele os temas tratados serão a prova e o inquérito, com seus traços principais. Constataremos que o sistema de provas tendeu a desaparecer quase que por completo, e o inquérito ressurgiu em dimensões extraordinárias, e permanece até os nossos dias.
 
 

 

Foucault nos conta que, a prova é, na Grécia antiga, o procedimento judicial mais arcaico, sobre o qual veio a prevalecer depois ( a partir do séc. V a.C. aproximadamente) a prática do inquérito. Pela prova  a verdade é judiciariamente estabelecida sem recurso a testemunhas ou a sentenças. Os adversários se afrontavam para saber quem estava errado e quem estava certo. Um lançava ao outro o desafio: “És capaz de jurar diante dos deuses que não fizeste o que eu afirmo?” Diante deste desafio que para eles era uma prova, se o guerreiro renunciasse à prova, renunciasse  a jurar,  renunciasse o desafio, reconhecia assim que cometeu a irregularidade. Em um procedimento como este, declara Foucault ,  confiasse o encargo de decidir não a quem disse a verdade, mas quem tem razão. Na hipótese de ter aceitado o desafio e jurado, a responsabilidade do que iria acontecer seria transposta aos desuses e seria Zeus, punindo o falso juramento, se fosse o caso, que teria com seu raio manifestado a verdade.

 

O pensador observa que, no inquérito, ao contrário, a verdade é determinada por quem “viu e enuncia”, ou seja, é baseada em testemunhos que têm, inclusive, o direito de opor-se ao poder dos governantes. Foucault usa como exemplo a estória de Édipo-Rei, afinal quem matou o rei Laio? Aparece um personagem fundamental, uma testemunha, o pastor, embora sendo um homem sem importância, um escravo, o pastor viu e pode contestar e abater o rei ou o tirano. Segundo Foucault, foi a prática do inquérito que constituiu modelo para formações culturais daquela época: filosofia, retórica, conhecimentos empíricos, baseado que são em testemunhos ( historiadores, botânicos, geógrafos, eta.).

 

Acrescenta Foucault que, na Idade Média, os dois modelos reaparecem. Inicialmente (por volta dos séc. V a XII), prevalece a prova, cujos traços principais, para o pensador são: tratava-se sempre de uma ação  “de estrutura binária”, isto é, em que indivíduos, grupos ou famílias eram diretamente postos em disputa, sem intervenção de qualquer terceiro elemento que representasse a autoridade ou a coletividade ; a verdade se confundia com a vitória do mais forte, o direito constituindo-se num prolongamento ritualizado da guerra. Ressalta que numa sociedade do tipo medieval a circulação de bens era assegurada pela herança, pelos testamentos e mais ainda pelos meios bélicos ( a rapina, a ocupação de um castelo, de uma terra, etc), ficando em segundo plano o comércio.

 

O pensador relata que, a partir dos fins do séc. XII e no decurso do séc.XIII o sistema da prova tende a desaparecer, cedendo lugar ao ressurgimento do inquérito, agora em "dimensões extraordinárias”, já que "seu destino será praticamente coextensivo ao próprio destino da cultura européia ou ocidental”[1]”e de certo modo, para a história do mundo inteiro. Usado inicialmente nas esferas eclesiásticas e nas gestões administrativas, o inquérito é introduzido no âmbito das práticas jurídicas e dali se generalizará como modelo de produção da verdade e de outras práticas. Eis, no âmbito jurídico, os traços principais: a resolução das questões de litígio não se dá diretamente entre os oponentes, mas se impõe “de fora”e “do alto" por um poder simultaneamente judiciário e politico; aparece a figura do “procurador" do rei , representante do soberano, responsável por “dublar"a vítima, uma vez que o próprio rei é lesado porque são descumpridas suas leis; surge a noção de crime como infração, porque um dano não configura mais questão apenas entre indivíduos, grupos ou famílias, mas “também uma ofensa de um indivíduo ao Estado, ao soberano como representante do Estado”; por isso mesmo é da competência do soberano o direito de impor penas e exigir reparações ( frequentemente na forma de “confiscos"que enriquecerão as monarquias)[2]. Para isso é necessário  a inquirição de testemunhas, a busca da reconstituição dos fatos, enfim, a prática do inquérito, como instrumento capaz de substituir o flagrante delito, reatualizando o crime, quando o criminoso não é surpreendido na atualidade de sua falta.

 

Foucault então observa que, recolher testemunhos, reconstituir situações, reunir dados são procedimentos que se estenderão para outras práticas e, sobretudo, para a constituição da verdade na ordem do saber. Assim, nesse quadro, desenvolver-se-ão, principalmente, as ciências empíricas ou da natureza, em domínios “como o da geografia, da astronomia, do conhecimento de climas, etc.”, ou ainda da medicina, da botânica e da zoologia[3].

 

Conclui Foucault que, enquanto o sistema da prova desaparece quase por completo, dele restando talvez a tortura( e mesmo esta “ já mesclada com a preocupação de obter a confissão, prova de verificação”[4]), o modelo do inquérito, ao contrário, permanece e se estende até nossos dias, constituindo ainda hoje a base do sistema jurídico de nossa sociedade.

 

Nenhuma história feita em termos de progresso da razão, de refinamento do conhecimento, pode dar conta da aquisição, da racionalidade do inquérito. Seu aparecimento é um fenômeno político complexo. É a análise das transformações políticas da sociedade medieval que explica como, por que e em que momento aparece este tipo de estabelecimento da verdade a partir de procedimentos jurídicos completamente diferentes.(…) Somente a análise dos jogos de força política, das relações de poder, pode explicar o surgimento do inquérito [5]. (M. Foucault)

 

 

 

Referências:

 

1) FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução: Eduardo Jardim e Roberto Machado. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2013.

2) MUCHAIL, Salma Tannus. Foucault Simplesmente. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
3) REVEL, Judith. Dicionário Foucault. Tradução: Anderson Alexandre da Silva. Rio de Janeiro: Forense Universitária


[1] Ibid., 42-43
[2] Ibid.,51-52.
[3] Ibid., 59.
[4] Ibid.,59.
[5] Ibid.,75.