sexta-feira, 17 de junho de 2016

ARISTÓTELES - METAFÍSICA


O MÉTODO DA METAFÍSICA 
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)


 
RESUMO: Este artigo é um resumo de O Método da Metafísica de Aristóteles,  nele são tratados, nesta Parte I:  O procedimento diaporético e A semântica ontológica. Encontrado no livro de Enrico Berti , As Razões de Aristóteles.




 Parte I

O procedimento diaporético

Na obra intitulada pelos editores Metafísica, Aristóteles denominava filosofia primeira, a ciência mais elevada, superior a qualquer outra, tanto por causa da universalidade como pela dignidade de seu objeto.  No livro I, o autor declara querer procurar a sabedoria (sophía), entendendo por esse nome, a forma suprema de conhecimento, e portanto também a mais elevada entre as ciências. Ele a define como ciência dos princípios e das causas primeiras”.

A metafísica tem por objeto também Deus, o motor imóvel do céu, porque Deus é uma entre as causas primeiras. Já a física seu objeto é constituído pelas realidades naturais e móveis.

A metafísica, todavia situa-se em uma  relação de estreita continuidade com a física. Efetivamente, no momento em que define as causas primeiras, ou seja, os gêneros de causas no interior dos quais devem ser investigadas as causas primeiras, Aristóteles remete explicitamente à sica, declarando que lá tais causas já foram teorizadas suficientemente, e limita-se a acrescentar àquela sua teorização uma espécie de confirmação histórica,  ou seja, a célebre exposição das doutrinas dos filósofos precedentes, que constitui a primeira história da filosofia já escrita. 

Em uma primeira parte, com efeito. Aristóteles mostra que cada um dos quatro gêneros de causas por ele especificados foi, de algum modo, reconhecido por alguns dos filósofos precedentes:  a causa material pelos jônicos, a motora por Empédocles, a formal pelos pitagóricos e, sobretudo, por Platão, a final por Anaxágoras, e mostra que nenhum deles especificava outras, o que soa como uma confirmação da validez de sua doutrina.  Na segunda parte, ao contrário, passa a criticar cada uma das filosofias precedentes, mostrando que nenhuma entendeu adequadamente o tipo de causa descoberto por ela e, sobretudo, que nenhuma especificou todas as quatro simultaneamente.

O livro II, o famoso a minúsculo”, não pertencia originariamente à série constitutiva da obra, mas servia mais como uma introdução metodológica à sica. A verdadeira exposição metafísica tem início somente no livro III, onde Aristóteles ilustra o método que pretende seguir.  Uma primeira fase desse método é ilustrada nos seguintes termos:

"é necessário, em relação à ciência investigada, que examinemos, antes de tudo, as coisas que devem   estar em aporia (aporésai):estas são todas aquelas em torno  das quais houve opiniões diferentes, mas também aquelas que eventualmente  tiverem  sido  esquecidas além destas ( III 1, 995 a 24-27).

Logo em seguida Aristóteles ilustra três momentos: 1) a aporia”, que literalmente significa falta de caminho, de direção; 2) o devolver  a aporia”; 3) a euporia”, literalmente o bom caminho, a direção justa, a solução da aporia. A aporia é comparada a uma cadeia que impede de caminhar, a condição de quem se encontra nela é comparada à dos prisioneiros amarrados, com clara reminiscência da alegoria da caverna platônica.

O segundo momento é indicado por meio da mesma expressão com a qual, nos Tópicos, se ilustrava o terceiro uso"da dialética, aquele relativo às ciências filosóficas: diaporésai. O método,  portanto, que aqui Aristóteles propõe para a metafísica coincide com o terceiro uso da dialética, o científico”, isto é, ainda uma vez um método dialético, que denominaremos, por comodidade, procedimento diaporédico”.

Contudo, a ilustração do método em questão prossegue: “por isso, é necessário estudar todas as dificuldades,seja  pelas  razões  ditas, seja  porque aqueles  que investigam  sem ter  anteriormente  examinado as aporias   são   semelhantes àqueles que ignoram em qual direção devem caminhar,  e, além disso porque  não  sabem   se  encontram ou não o que procuravam; para  estes , com efeito, o fim o é claro, enquanto o  é para quem examinou anteriormente as aporias (995 a 33-b 2)."

Note-se a insistência na necessidade de examinar todas" as dificuldades, as objeções, as argumentações opostas, as possíveis soluções, para que o método por eliminação possa dar resultados seguros; em seguida, a recomendação renovada de examinar as aporias. Platão resolvia o problema mediante sua teoria da reminiscência ( conhecer significa reconhecer o que já se conhecia, e que posteriormente foi esquecido), mas Aristóteles o resolve mediante a aporia, que indica a alternativa entre duas direções opostas, das quais já se sabe que a boa evita a contradição, enquanto a ruim depara com ela; e, sobretudo, mediante o procedimento diaporético, que permite ver qual das duas hipóteses conduz à contradição e qual, ao contrário, não.

Enfim, ele recorre também aqui, como já no De caelo, a comparação com o debate judiciário.

Ainda uma  vez Aristóteles ressalta a necessidade  de ouvir todos"os argumentos opostos, e compara o filósofo àquele que , posteriormente, julga quais são válidos e quais, ao contrário, não.

O resto do livro III é dedicado primeiramente à enumeração de quinze aporias concernentes ao objeto da metafísica, ou seja, àquilo do que ela procura os princípios, mas também à natureza dos princípios investigados, isto é, às causas primeiras, e em seguida ao desdobramento de cada aporia, que é precisamente o procedimento diaporético anunciado no início do livro.

Em geral no livro III Aristóteles não indica explicitamente a solução das aporias, ainda que com frequência permita claramente compreender para qual hipótese ele tende.

A solução das aporias no livro III é apresentada por Aristóteles nos livros posteriores da Metafísica, todos reconduzidos a uma unidade justamente pela referência às aporias: isso vale para  os mais importantes: o IV, o VI, o grupo unitário VII-VIII-IX, e o grupo dos três últimos, XII-XIII-XIV. Permanecem fora da série apenas o livro V e o livro XI, que é um resumo, provavelmente inautêntico, dos livros III-IV-VI, e de uma parte da sica, portanto certamente estranho ao conjunto.

Vale a pena assinalar, na exposição das aporias, um aceno  que Aristóteles faz aos dialéticos”, útil para compreender a relação por ele estabelecida entre dialética e filosofia:

“ além disso, sobre o idêntico e o diferente, o semelhante e o dessemelhante, e a  oposição, e sobre o anterior e o posterior e todos os outros objetos deste tipo,   sobre os quais os dialéticos se submetem à prova ( peiróntai)  de investigar realizando sua investigação a partir de cada éndoxa, (deve discutir) sobre qual ciência tem a tarefa de tratar de todos eles;  e,  além disso, (tratar) de todas as propriedades que lhes pertecem por si, e não apenas o que é cada um  destes, mas também se uma única coisa é oposta a uma só (1,995 b 20-27)."

Os dialéticos aqui mencionados só podem ser os que têm a força dialética mencionada na Metafísica XIII 4, 1078 b 25-27.

Ora, como vimos, os que têm a força dialética , aquela que, segundo o que Aristóteles afirma na Metafísica XIII 4, no tempo de Sócrates ainda não existia, eram os platônicos, isto é, o próprio Platão e os outros acadêmicos; e também os dialéticos"dos quais Aristóteles fala na Metafísica III 1, os quais investigam o idêntico e o diferente, o semelhante e o dessemelhante, o anterior e o posterior.

Contudo, ao mesmo tempo Aristóteles refere-se também à dialética por ele mesmo descrita nos Tópicos, que, como sabemos, desenvolve as aporias na direçäo oposta e investiga até os princípios partindo justamente dos éndoxa: entre as duas dialéticas, a descrita por Aristóteles e a praticada por Platão, não há nenhuma diferença quanto à estrutura argumentativa e ao conteúdo: a única diferença está na avaliação que lhe davam Platão e Aristóteles. Para Platão, com efeito, a dialética era já por si mesma ciência, ou melhor, a única verdadeira ciência, enquanto para Aristóteles ela é somente crítica, peirástica”, isto é, não é de per si uma ciência, mas apenas um método.

A resposta que Aristóteles dará a esta aporia no livro IV será, como veremos, que a tarefa de tratar cientificamente, cabe à filosofia primeiramente, ou seja, à metafísica.

Poder-se-ia dizer, por essa razão, também da metafísica aristotélica o que Hegel diz da filosofia em geral no início de sua Enciclopédia das ciências filosóficas. Também para Hegel, a filosofia deve passar pelas representações , quer dizer, pelos éndoxa , para chegar ao conceito, ou seja, à ciência, e este, e não outro, é o seu método, isto é, a sua própria investigação, que também Hegel, mesmo que o entenda em um sentido diferente de Aristóteles, denomina dialética.


A semântica ontológica

A parte central da Metafísica, é dedicada à análise  semântica do que constitui o objeto de tal disciplina, o ser enquanto ser e as propriedades que lhe pertencem por si.    Aristóteles especificou esse objeto como o único capaz de tornar a compreender em si a totalidade do real para o qual a natureza, objeto da física , se revelara inadequada por causa da existência de uma realidade imóvel. Desse novo objeto, portanto, devem ser procurados os princípios e as causas primeiras, e a ciência à qual cabe esse dever, a metafísica, restará a mais universal e simultaneamente a mais elevada, por isso terá o direito de ser denominada filosofia primeira”.

O método com o qual são procurados  as causas primeiras do ser enquanto ser e das "propriedades que lhe pertencem por si” ,  não é o da demonstração,  mas a análise dos significados do ser e de suas propriedades, que podemos denominar análise semântica.  Esse método, no entanto, é significativamente especificado e enriquecido justamente no livro IV da Metafísica.

Nesse referido livro IV , especificamente em 2, 1004 a 28-31, parece que são distinguidas três operações sucessivas: 1) antes de tudo, a distinção entre os muitos significados de um mesmo termo, isto é, aquela que denominamos análise semântica, e que vimos ser um dos instrumentos do qual se serve a dialética; 2) a distinção do primeiro"entre ele, daquele do qual os outros dependem, é precisamente o que confere unidade ao conjunto; 3) do tipo de dependência que eles têm em suas relações. Não há dúvida de que , se a primeira operação está entre as praticadas pela dialética , a segunda e a terceira configuram-se  como propriamente científicas, ou seja, cognitivas. Mas também não há dúvida de que elas mantém o caráter de análise fundamentalmente semântica, o que as aparenta notavelmente com as operações próprias da dialética.  

A distinção entre os muitos significados do ser já fora realizada por Aristóteles nas obras dialéticas”, isto é, lógicas, e o livro V da Metafísica, mas também em uma obra científicacomo a sica, e mostrara que tais significados  correspondem às dez categorias. No livro IV da Metafísica, Aristóteles realiza a operação posterior, mostra que o primeiro entre eles é a substância ( ousía) e que a relação intercorrente entre a substância e as outras categorias é a assim chamada homonímia em relação a um:  as realidades pertencentes às outras categorias são denominadas entes, e por isso constituem, da mesma maneira, significados do ser.  A substância, portanto, é princípio e causa de todas as categorias, ou seja, do ser enquanto ser.  

Contudo, a própria operação, acrescenta Aristóteles, deverá ser feita também para as propriedades por si do ser: 1) para o uno, o qual, por sua vez, resultará dizer-se em muitos sentidos, correspondentes às categorias do ser, 2) para os seus opostos, 3) para os vários tipos de oposição, 4) enfim, para outros tipos de relação. Desse modo, será resolvido a aporia mencionada no livro III a propósito dos dialéticos”, isto é, dos platônicos. A esse respeito, Aristóteles esclarece a diferença entre o modo de tratar próprio da filosofia primeira e aquele próprio da dialética, em 2, 1004 b 8-10.

Para Aristóteles, aqueles que se ocupam do idêntico, do diferente etc. fazem filosofia, são filósofos”, mesmo tendo sidos anteriormente ( a saber, no livro III) por ele chamados de dialéticos, o que demonstra que as duas caracterizações não se excluem, ou melhor, em certa medida coincidem, e indica-se a posterior confirmação de que se trata dos platônicos, que usavam também eles a dialética com intenções filosóficas. O que neles  critica Aristóteles é somente a falta de reconhecimento do primado da substância e, implicitamente, da distinção entre os muitos sentidos nos quais se dizem os objetos em questão. Mas isso significa, a seus olhos, que os platônicos se impedem um verdadeiro conhecimento de tais objetos, ou seja, que sua posição permanece a de simples dialéticos, críticos das opiniões alheias e privados da verdadeira filosofia.

Os dialéticos que discutem o idêntico, o diferente etc., porque estes são próprios da filosofia”, são os dialéticos que têm uma intenção filosófica, não os simples amantes da discussão, portanto só podem ser os platônicos. Mas eles não conseguem, segundo Aristóteles fazer boa filosofia, isto é, conhecer, porque se limitam a discutir as opiniões, ou seja, a criticar, sem dizer nada da substância, isto é, sem praticar a análise semântica e procurar o verdadeiro princípio do ser e também dos objetos em questão, aos quais o ser é comum. Bem diferente é o caso dos sofistas, o quais querem parecer sábios sem o ser realmente, porque escolheram um modo de viver caracterizado pelo amor à riqueza, não pelo amor à verdade.

Os platônicos faziam, com efeito, do ser e do uno um princípio separado, sem distinguir seus muitos sentido e sem, portanto, diferenciar o primeiro deles, isto é, o verdadeiro princípio, que para alguns deles, a saber, para as várias categorias, é a substância em geral, da qual as outras categorias dependem todas diretamente na base da homonímia em relação a um, e para outros, isto é, como veremos, para os diferentes sentidos da substância, ele é um tipo particular de substância, a substância primeira, da qual os outros tipos de substância dependem consecutivamente, quer dizer, em série. Isso confirma ainda uma vez que o método da metafísica é, para Aristóteles, a análise semântica e a distinção do significado primeiro.

Este é o motivo pelo qual os editores da Metafísica nela inseriram, depois do livro IV, aquele que agora é conhecido como o livro V, o tratado que distingue os muitos significados de alguns entre os mais importantes termos filosóficos: princípios, causa, elemento, natureza, uno, ser, substância, idêntico, diferente, opostos, etc.  Do ser por acidente e do ser como verdadeiro Aristóteles trata no livro VI, enquanto do primeiro entre os significados correspondentes às categorias ele trata nos livros VII e VIII,  que estão, por essa razão, entre os mais importante de toda a obra.

No livro VII, Aristóteles mostra, antes de tudo, que a substância é primeira, em relação às outras categorias. é princípio ou causa primeiradas outras categorias, seja do ponto de vista lógico-epistemológico, seja do ponto de vista ontológico. Isso demonstra como um procedimento dialético, como a análise semântica, é capaz de estabelecer também a dependência não apenas das palavras, mas das coisas mesmas.

Na parte mais importante do livro VII,  Aristóteles chega a concluir que a substância primeira” é a forma, a causa formal, não entendida como forma separada, mas como forma de um composto material ( todo), por ex. a alma como forma do animal. São ao contrário substância em sentido derivado o composto mesmo, em relação ao qual a forma é “causa do ser”, isto é, causa formal, e substrato a causa material. Não são substância de nenhum modo os universais, ou seja, os gêneros e as espécies, que, mesmo nas Categorias, eram denominados substâncias segundas”.

No livro VIII, Aristóteles aperfeiçoa o discurso já feito, assimilando respectivamente a matéria ao ser em potência e a forma em ato, e mostrando que a passagem de uma substância da potência ao ato requer uma causa motora. No livro IX, ele analisa estes últimos dois significados, isto é, a potência e o ato.

Enfim, no livro X, o autor analisa os significados  do uno e do múltiplo, do idêntico e do diferente, do semelhante  e do dessemelhante, mas também dos opostos em geral, estabelecendo em cada caso qual deles é o primeiro: trata-se sempre da análise semântica anunciada no livro IV. Este, portanto, é o modo no qual Aristóteles, na parte central da Metafísica, estabelece os princípios e as causas do ser enquanto ser.



Bibliografia:

BERTI, Enrico, As Razões de Aristóteles. São Paulo.  Edições Loyola, 2002.