Sermão de Santo Antônio aos peixes
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)
No ano de 1654 Padre Antônio Vieira pregou na cidade de São Luís do Maranhão, o Sermão de Santo Antônio aos Peixes.
Usando de metáforas e alegorias Padre Vieira louva as virtudes e censura os vícios.
O pano de fundo da época era a escravidão indígena e negra que ele combatia, pois era um jesuíta de formação.
Descortinemos uma síntese de seu sermão:
Vós diz Cristo Senhor nosso falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhe sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal.
Mas qual é a função do sal? É impedir a corrupção. Porém, quando a terra se vê tão corrupta, qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Os pregadores não pregam a verdadeira doutrina, ou os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina não querem ouvir.
Enfim que havemos de pregar hoje aos peixes? Haveis de saber, irmãos peixes, que o sal filho do mar como vós, tem duas propriedades, as quais em vós mesmos se experimentam: conservar o são e preservá-lo para que se não corrompa. Estas mesmas propriedade tinham as pregações do vosso pregador Santo Antônio, como também as devem ter as de todos os pregadores. Uma é louvar o bem, outra repreender o mal.
Começando, pelos vossos louvores, irmãos peixes, bem vos pudera em dizer que entre todas as criaturas viventes e sensitivas, vós fostes as primeiras que Deus criou.
Louvor verdadeiro aos peixes. Os Homens perseguindo a Antônio, querendo-o lançar da terra, e ainda do mundo, se pudessem, porque lhes repreendia seus vícios, e no mesmo tempo os peixes em inumerável concurso acudindo à sua voz, atentos, e suspensos às suas palavras escutando com silêncio, e com sinais de admiração.
Quem olhasse e visse na terra os homens tão furiosos e no mar os peixes tão quietos e tão devotos, que havia de dizer?
Poderia cuidar que os peixes irracionais se tinham convertido em homens, e os homens não em peixes, mas em feras. Aos homens Deus deu o uso da razão, e não aos peixes, mas neste caso os homens tinham a razão sem uso, e os peixes o uso sem a razão.
Falando dos peixes, Aristóteles diz, que só eles, entre todos os animais se não domam nem domesticam.
Peixes! Quanto mais longe dos homens tanto melhor.
No tempo de Noé sucedeu o dilúvio, que cobriu e alagou o mundo, dos animais quais se livraram ? Dos leões escaparam dois, leão e leoa e assim outros animais na terra, das águias, o casal e assim outras aves, dos peixes todos escaparam.
O dilúvio era um castigo universal que Deus dava aos homens por seus pecados, e ao mundo pelos pecados dos homens, para que o mesmo mundo visse que da companhia dos homens lhe viera todo o mal, por isso os animais que viviam perto deles, foram também castigados e os que andavam longe ficaram livres. Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens.
Perguntado a um grande filósofo qual era a melhor terra do mundo, respondeu a mais deserta, porque tinha os homens mais longe.
Se isto vos pregou Santo Antônio, bem vos pudera alegar consigo que quanto mais buscava a Deus, tanto mais fugia dos homens. Para fugir dos homens deixou a casa de seus pais e se recolheu a uma religião, onde professasse perpétua clausura.
Infinitas virtudes de que o autor da natureza os fez. O primeiro lugar entre todos, na Escritura, é aquele santo peixe de Tobias, grande nas virtudes interiores, que só consiste a verdadeira grandeza. Ia Tobias caminhando com o anjo São Rafael e descendo a lavar os pés nas margens de um rio, eis que investe um grande peixe. Gritou Tobias assombrado, mas o anjo lhe disse que pegasse no peixe pela barbatana e o arrastasse para terra; que abrisse e lhe tirasse as entranhas e as guardasse, porque lhe haviam de servir muito. Assim Tobias fez, e perguntado que virtudes tinham as entranhas daquele peixe que lhe mandara guardar, respondeu o anjo que o fel era bom para sarar da cegueira e o coração para lançar fora os demônios. Assim disse o anjo e assim o mostrou logo a experiência, porque sendo o pai de Tobias cego, aplicando-lhe o filho aos olhos um pequeno do fel, cobrou inteiramente a vista: e tendo um demônio, chamado Asmodeu, morto sete maridos a Sara, casou com ela o mesmo Tobias; e queimado na casa parte do coração, fugiu dali o Demônio e nunca mais tornou.
Abria Santo Antônio a boca contra os hereges e estes gritavam e assombravam-se com aquele homem. Ah! homens, se houvesse um anjo que vos revelasse qual é o coração desse homem. Só duas coisas pretende de vós e convosco: uma é alumiar e curar vossas cegueiras, e outra lançar-vos os demônios fora de casa. Pois a quem vos quer tirar as cegueiras, a quem vos quer livrar dos demônios perseguis vós?
Passando da Escritura aos da história natural, sobre a virtude tão celebrada da rêmora. Peixinho tão pequeno no corpo e tão grande na força e poder. Se alguma rêmora houve na terra, foi a língua de Santo Antônio. O leme da natureza humana é o alvedrio, o piloto é a razão: mas quão poucas vezes obedecem à razão os ímpetos precipitados do alvedrio? Neste leme, porém, tão desobediente e rebelde, mostrou a língua de Antônio quanta força tinha, como rêmora para domar e parar a fúria das paixões humanas. Nas naus Soberba, Vingança, Cobiça e Sensualidade se a língua de Antônio, como rêmora, não tivesse mão no leme e os contivesse?
Passemos agora as vossas repreensões.
A primeira coisa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário era menos mau. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós. Jó dizia: “Por que me perseguia tão desumanamente, vós, que me estais comendo vivo e fartando-vos da minha carne?” Vede um homem que andam perseguindo e olhai quantos o estão comendo. São piores os homens que os corvos. Os corvos comem o homem morto e os homens os vivos. Deus não quer roncadores. O muito roncar antes da ocasião é sinal de dormir nela. As baleias roncaram. O que é a baleia entre os peixes, era o gigante Golias entre os homens, bem deveis saber que este gigante era a ronca dos filisteus. Bastou um pastorzinho com um cajado e uma funda para dar com ele em terra. Também nas covas do mar temos lá o irmão polvo. O polvo, com aquele seu capelo parece um monge, com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela, com aquele não ter ossos nem espinha, parece a mesma brandura e mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa, o dito polvo é o maior traidor do mar. Se está nos limos, faz-se verde, se está na areia, faz-se branco, no lodo faz-se pardo. Sucede que o outro peixe, inocente da traição, vai passando desacautelado e o salteador, que está de emboscada, lança-lhe os braços de repente e o faz prisioneiro. Com esta última vos despeço, ou me despeço de vós, meus peixes. Louvai, peixes, a Deus, os grandes e os pequenos, pois vos criou em tanto número, espécie, variedade e formosura. Como não sois capazes de glória, nem graça, não acaba o vosso sermão em graça e glória.
“Padre Vieira é o grande imperador da língua portuguesa.” (Fernando Pessoa).
Bibliografia consultada:
- VIEIRA, Antônio (Padre). Padre Antônio Vieira - Essencial. Sermão de Santo Antônio aos peixes. Ed. Pengüin Companhia , 2011.