O Casaco de Marx
(por
Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)
Karl Marx (Tréveris/1818
- Londres/1883) define o capitalismo, como o processo de universalização de
produção de mercadorias. A abstração da sociedade é representada pela própria
mercadoria, vista não como uma coisa, mas como um valor de troca. A forma
mercadoria do produto do trabalho ou a forma valor da mercadoria é a forma
celular da economia.
A forma celular da
economia que ocupa o primeiro capítulo de O Capital assume a forma de um
casaco. O casaco faz sua primeira aparição não como um objeto que é fabricado e
vestido, mas como uma mercadoria que é trocada. Mas, embora a mercadoria seja
uma abstração fria, ela se alimenta, tal como um vampiro, de trabalho humano. A
natureza do capitalismo consiste em produzir um casaco não como uma
particularidade material, mas como um valor suprassensível. A tarefa de Marx em
O Capital consiste em fazer o caminho de volta daquele valor do trabalho humano
cuja apropriação produz capital. Isso leva Marx, teoricamente, à teoria do
valor-trabalho e a uma análise da mais-valia. O Capital representa a tentativa
de Marx de devolver o casaco ao seu proprietário.
A mercadoria com a qual
Marx começa O Capital, o casaco tem apenas uma tênue relação com o casaco que o
próprio vestia em suas idas ao Museu Britânico para pesquisar material para
escrever O Capital.
Repetidamente, o casaco
que Marx vestia entrava e saía da casa de penhores. Ele tinha usos bem
específicos: conservar Marx aquecido no inverno e distingui-lo como um cidadão
decente que pudesse entrar no salão de leitura do Museu Britânico.
Nos anos de 1850 Marx viveu uma vida contraditória, definida
não por suas conexões aristocráticas e de classe abastada da Alemanha, mas por uma
vida de miséria e penúria.
A vida doméstica de
Marx dependia, pois dos “minúsculos cálculos” que caracterizavam a vida da classe
operária.
A “respeitabilidade”,
aquela virtude central do século XVIII, era uma coisa a ser comprada e, em
tempos de necessidade, penhorada.
Para os Marx, os
infindáveis retornos a casa de penhor delimitava sensivelmente suas
possibilidades sociais.
O ano de 1852 foi mais
um ano catastrófico para o lar de Marx. Nos primeiros meses do ano, Marx estava
escrevendo O Dezoito Brumário. Em Janeiro ele esteve doente
na cama, escrevendo com a maior das dificuldades. Mas ele tinha que escrever,
uma vez que, juntamente com as doações de Engels e com aquilo que ele podia
penhorar, essa atividade constituía a fonte de renda do lar, um lar constituído
de quatro crianças e três adultos.
Em junho de 1850, Marx tinha conseguido um
passe de entrada para a sala de leitura do Museu Britânico e tinha começado a
fazer a pesquisa que seria a base de O
Capital. Mas para financiar esta pesquisa ele precisava escrever por
dinheiro. Além disso, de qualquer forma, durante sua doença, ele não podia mais
ir ao Museu. Mas quando se recuperou, ele queria gastar pelo menos algum tempo
na Biblioteca. Ele não podia fazê-lo. A situação financeira tinha se tornado
tão desesperadora que ele tinha não apenas perdido o crédito com o açougueiro e
o verdureiro, mas tinha sido obrigado a penhorar o seu casaco de inverno. No
dia 27 de fevereiro, ele escreveu a Engels; “Há uma semana cheguei ao agradável
ponto no qual não posso sair por causa dos casacos que tive que penhorar”.
Sem seu casaco de
inverno, ele não podia ir ao Museu Britânico. O salão de leitura não aceitava
simplesmente qualquer um que chegasse a partir das ruas: e um homem sem um
casaco, mesmo que tivesse um passe de entrada, era simplesmente qualquer um.
Sem seu casaco, Marx não estava, em uma expressão cuja força é difícil de reproduzir,
“vestido em condições em que pudesse ser visto”.
O casaco de inverno de
Marx, como num eterno retorno, estava destinado a entrar e sair da loja de
penhores durante todos os anos de 1850 e
o início dos anos de 1860. E seu casaco determinava diretamente que trabalho
ele podia fazer ou não. Se ele não pudesse ir ao Museu Britânico, ele não podia
realizar a pesquisa para o Capital.
O casaco de Marx
determinava assim o que ele escrevia.
Existe, aqui, um nível
vulgar de determinação material que é difícil até de considerar.
Em setembro do mesmo
ano, ele não pôde escrever seus artigos para o New York Daily Times, porque ele
não podia se permitir comprar os jornais que precisava ler para escrever seus
artigos. Em outubro, Marx teve que penhorar um casaco que remontava aos seus
dias de Liverpool, a fim de comprar papel para escrever.
É notório que, as
relações do lar de Marx com os donos das
lojas de penhores eram habituais, em 1850, penhoraram os objetos de prata e também venderam
móveis. Em 1852, foi o casaco de inverno para comprar papel para poder
continuar a escrever. Em 1853, não se
encontra um centavo na casa. Em 1856, precisaram não apenas de toda a ajuda de
Engels, mas também penhorar algumas posses domésticas. Em 1858, Jenny Marx penhorou seu xale e, no final do
ano, ela estava afligida com cartas de cobrança de seus credores. Em abril de
1862, tiveram que penhorar as roupas das filhas e da criada, bem como suas
próprias roupas. Em janeiro do ano seguinte, além de lhes faltar alimentação e
carvão, as roupas das filhas foram, outra vez, penhoradas e elas não puderam ir
à escola. Em 1866, penhorou-se tudo que era possível e Marx não podia comprar
papel para escrever. No ano de 1866, Jenny Marx não podia sair porque todas as
suas
roupas respeitáveis tinham sido penhoradas.
Para os Marx a
felicidade era frequentemente medida pela compra de novas roupas ou pela
recuperação de coisas da loja de penhores. Quando Wilhelm Wolff morreu em 1864,
deixando a Marx um legado considerável, Marx escreveu: “ Eu gostaria muito de
comprar seda de Manchester para toda a família”.
Foi Marx quem escreveu
sobre o funcionamento do dinheiro, mas eram sua mulher Jenny, e sua criada, Helene, que organizavam as
finanças da casa e faziam as visitas à loja de penhores.
Marx, contudo, nunca
ficou isolado das crises das finanças domésticas, como testemunham suas muitas
e queixosas cartas a Engels. Dentre elas está uma em que constata ironicamente
a Engels que, nunca escreveu tanto sobre dinheiro necessitando tanto dele.
Até mesmo as estórias
que contava às suas filhas são assombradas pela migração dos objetos sob a
pressão da dívida.
Para Marx e sua família
assim como para os operários sobre os quais ele escreveu, não havia “meras” coisas. Elas eram os
materiais, as roupas, a mobília, com as quais se construía uma vida, elas
faziam parte de suas histórias, mas frequentemente eram penhorados, para ter o
que comer.
Toda pequena riqueza
que eles tinham era armazenada não como dinheiro em bancos, mas como coisas em
casa. O bem-estar podia ser medido pelas idas e vindas dessas coisas. Estar sem
dinheiro significava ser forçado a desnudar o corpo. Ter dinheiro significava
tornar a vestir o corpo.
Para ter-se um teto
sobre a cabeça e alimento sobre a mesa, os materiais íntimos do corpo tinham
que ser penhorados. E algumas vezes tinha que se escolher entre a casa e o
corpo.
O casaco de Marx era como uma extensão do seu
eu, de sua identidade, uma prova material de parte de sua história, que muitas
vezes ele tinha que abrir mão para poder sobreviver, para não passar fome, mas
logo que recuperava as finanças lá estava Marx retornando com seu casaco, com
suas memórias e também com a garantia que continuaria escrevendo O Capital.
Bibliografia:
Stallybrass
Peter, O casaco de Marx – roupas memória, dor, tradução Tomaz Tadeu, autêntica.