sábado, 2 de novembro de 2013

PLATÃO.


Parte I -  Platão:  A República e os Filósofos Reis
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)


A “verdadeira arte política” é a arte que “cura a alma” e a torna o mais possível “virtuosa”, sendo, por isso, a arte do filósofo. Tal tese Platão amadurece a partir do Górgias e expressa em A República (“Politeía”), ou seja, a coincidência da verdadeira filosofia com a verdadeira política.

             

Escrita em forma de diálogo por Platão e sustentada em 1ª pessoa pela figura de Sócrates, funda-se a Cidade assim como o Homem em “lógos”, ou seja, por argumentos.

 

- Fundemos em “lógos” uma cidade (...). (Rep. 369 c)

 

Sócrates, Adimanto e Glauco partem em busca da definição de justiça e encontram a justiça em ato na realização da Cidade perfeita, que o Sol do Bem ilumina.

 

Construir a Cidade significa conhecer o homem e seu universo,  Platão trabalha com a Antropologia, na qual se funda a tradição pré-socrática da relação do homem com o “kósmos”, a tradição sofística do homem como ser de cultura (“paideía”) destinado à vida política, e a herança dominante de Sócrates do “homem interior” e da “alma” (“psyché”).     

 

A Cidade perfeita é uma estrutura ideal, mas não é uma utopia, ela nasce com base nas necessidades.

 

-(...) Serão as nossas necessidades que hão de fundá-la. (Rep. 369 c).

 

Temos, pois, necessidades dos serviços de muitos outros homens. E nessa Cidade cada pessoa deve fazer uma só função, conforme sua natureza, desempenhando da melhor forma, para que sua tarefa resulte perfeita, para que seja melhor naquilo que se é ( “areté”, “excelência”). Diz Sócrates:

 

(...) cada um de nós não nasceu igual ao outro, mas com naturezas diferentes, cada uma para a execução de sua tarefa (Rep.370 b).    

 

- Mas nós impedimos o sapateiro de tentar ser ao mesmo tempo lavrador, ou tecelão, ou pedreiro, e só o deixamos ser sapateiro, a fim de que a obra  de sapateiro resultasse perfeita; e, do mesmo modo, a cada um dos outros atribuímos uma única arte, aquela para qual cada um nascera(...) (Rep.374 b c)

 

Tal Cidade necessita de três estamentos: 1) O primeiro são os dos lavradores, artesãos e comerciantes,  são a maioria e imprescindíveis os serviços desses de onde provêm às necessidades materiais, desde o alimento até às vestes e à habitação. 2) Os guardiães, responsáveis pela guarda e defesa da Cidade. 3) Os governantes, é a dedicação de alguns poucos homens que saibam governar adequadamente.

           

Também é apresentada a tricotomia da “alma” (436 a - 441c), que ordena as três partes: o racional(“tò logistikón”), o irascível (“tò thymoeidés”) e o concupiscível ( “tò epithymetikón”) segundo a justiça (“dykaiosunê”), sendo regida cada uma pela sua virtude própria (“areté”), respectivamente: a sabedoria (“sophía”), a coragem (“andréia”) e a moderação (sophrosyne). Em cada homem estão presentes as três faculdades da alma, mas é uma delas que prevalece.

           

A Cidade justa não é senão o engrandecimento de nossa alma. Nela predomina a temperança no primeiro estamento, a coragem no segundo e a sabedoria no terceiro. E a “justiça” é a harmonia que se estabelece entre essas três virtudes.

           

Por consequinte o primeiro estamento da “ téchne”,  é construído de homens nos quais prevalece o aspecto “concupiscível” da alma, ou seja, corresponde a potência (dýnamis) epitimética da alma.  A “areté” deste estamento é a “sophrosyne”, ou seja, a “temperança”, “nada em excesso”, a “boa medida”, a justa medida, o domínio dos desejos e prazeres, pois esta classe tem riquezas, bens. Portanto há o risco do desejo da posse ilimitada por eles. Quanto a educação, não necessitam de educação especial, porque as artes e os ofícios são facilmente aprendidos na prática.

 

O segundo estamento, dos guardiães, é constituído de homens nos quais prevalece a força “irascível” (volitiva) da alma, corresponde a potência (dýnamis) timocrática. É quando ficamos irados, tal tendência não se identifica nem com a razão, nem com o desejo, não é razão porque é passional, não é desejo porque frequentemente se opõe a ele, como quando ficamos irados por termos cedido a algum desejo. A “areté” dos guardiães é a coragem, “andréia”, é o ânimo que os movem para irem à guerra e desejarem a vitória. Os guardiães deverão permanecer vigilantes quer em relação aos perigos externos, quer internamente. A sophrosyne é uma qualidade que também devem possuí-los para saberem diferenciar o amigo do inimigo. Para este estamento Platão propõe a educação clássica, ginástico-musical. Os guardiães são o fruto da Paidéia, que avança por meio da íntima sinergia do “eros” e do “logos”, ou seja da alma. Alma que é “eros” e “logos”. Propõe também a “comunhão” de todos os bens: comunhão de homens e mulheres e, portanto de filhos, bem como a abolição de qualquer propriedade sobre bens materiais. Homens e mulheres deste estamento deveriam receber a mesma educação e desempenhar tarefas idênticas. A finalidade era criar uma grande família, onde todos se amassem como parentes. O bem particular deveria ser o bem comum.

           

O terceiro estamento, o dos governantes. Predomina neles  a alma racional, corresponde a potência (dýnamis) logística. Sua excelência (“areté”) é a sabedoria (“sophía”). Para Platão tais governantes seriam os filósofos reis, conform 473 d, e :

 

- Enquanto não forem, ou os filósofos reis nas cidades, ou os que agora se chamam reis e soberanos filósofos genuínos e capazes, e se dê esta coalescência do poder político com a filosofia, enquanto as numerosas naturezas que actualmente seguem um destes caminhos com exclusão do outro não forem impedidas forçosamente de o fazer, não haverá tréguas dos males, meu caro Gláucon, para as cidades, nem sequer, julgo eu, para o gênero humano, nem antes disso será jamais possível e verá a luz do sol a cidade que há pouco descrevemos. Mas isto é o que eu há muito hesitava em dizer, por ver como seriam paradoxais essas afirmações. Efetivamente, é penoso ver que não há outra felicidade possível, particular ou pública.

 

Destarte a “conditio sine qua non” para que se realize a Cidade ideal é que os filósofos se tornem governantes e os governantes, filósofos. Portanto, o filósofo não somente projeta a Cidade perfeita, mas é também só o filósofo que pode realizá-la e fazê-la. A Cidade ideal tem como parte mais significativa a caracterização específica dos “governantes” supremos da Cidade e sua peculiar paideía ou educação. É exatamente a concepção da natureza dos governantes que revela, além do fundamento teórico, a possibilidade de realização da Cidade platônico.  Apenas na condição de o governante se tornar filósofo, ou do filósofo se tornar governante (“philosophos-basileus”) é que se torna possível construir a Cidade autêntica, fundada sobre o valor supremo da justiça e do bem.

 

Os filósofos amam a cidade e os governados, mais do que os outros, tem também as qualidades da coragem e a generosidade.

 

- (...) as qualidades que lhe convinham eram a coragem, a generosidade, a facilidade para aprender, a memória.(...) ( Rep.490 d)

 

Tem facilidade para aprender e para a memória, porque tem “eros” pela “sophia”, estão desejos da sabedoria na sua totalidade, tem prazer em apreender.

 

- Porventura não diremos também do filósofo que está desejoso da sabedoria, não de uma parte sim e de outra não, mas da totalidade? ( Rep. 475 b)

 

 Sabem tornar uma cidade justa e a mantê-la justa, possuem o olhar largo de Zeus, que tudo vê. Não se corrompem, são cumpridores com zelo da sua missão, pois, especialmente,  aprenderam a conhecer e contemplar o Bem. Atiram-se ao estudo com prazer e sem saciar.

 

- Mas àquele que deseja prontamente provar de todas as coisas que podem apreender e se atira ao estudo com prazer e sem saciar, a esse chamaremos com justiça filósofo, ou não?( Rep. 475 c)

 

Capazes de subir até o belo em si e de o contemplar na sua essência, são raros.

 

- Mas aqueles que são capazes de subir até ao belo em si e de o contemplar na sua essência, acaso não serão muito raros? ( Rep. 476 b)

 

Dedicam-se ao ser em si, de olhar para a verdade absoluta, tomando-a sempre como ponto de referência e contemplando-a com o maior rigor possível, para então promulgar leis na terra sobre o belo, o justo, o bom e se for o caso preservar as que existem, mantendo-as a salvo.

 

O núcleo da República é sobre a Teoria das Ideias  e os filósofos, para Platão,  são os capazes de acessar as Ideias, ou seja, de atingir aquilo que se mantém sempre do mesmo modo, contemplam as coisas em si, as que permanecem sempre idênticas.

 

- (...) Uma vez que os filósofos são aqueles que são capazes de atingir aquilo que se mantém sempre do mesmo modo (...). (Rep. 484 b)

 

 A Teoria das Ideias ( idea, eidos), segundo a qual existem idéias ou formas eternas, unas e imutáveis como: a Ideia do Belo, ou a Beleza em si; a Ideia da Virtude, ou a Virtude em si; a Ideia da Justiça, ou a Justiça em si, etc. Tudo aquilo que é, por exemplo, belo, virtuoso, ou justo, é assim porque participa da respectiva Ideia. As Ideias (ou Formas) são paradigmas, modelos que conferem ordem, estabilidade e unidade à multiplicidade e mutação incessante de todas as coisas. Elas são a fonte do conhecimento verdadeiro e a causa necessária de tudo aquilo que podemos conhecer através dos sentidos. São mais reais que os seres sensíveis, isto é, mais fundamentais. São invisíveis aos olhos, mas cognoscíveis pela inteligência.  A Ideia é a essência das coisas, de modo que é somente definindo o que seja a Ideia correspondente que se pode dizer o que é algo, como por exemplo, a virtude ou a justiça.

           

O principal argumento de Platão é o chamado “argumento do conhecimento”, ou seja : a) Todas as coisas que percebemos pelos sentidos estão em constante transformação; b) Não pode haver conhecimento verdadeiro daquilo que está em transformação; c) Logo, as coisas que percebemos pelos sentidos não podem ser conhecidas; d) No entanto, há conhecimento: e) O conhecimento verdadeiro só é possível se for algo que é e que permaneça sempre constante ( eterno, imóvel, idêntico); f) Logo, deve existir algo que permanece sempre constante (eterno, imóvel e idêntico); g) As Ideias têm essas características; h) O conhecimento verdadeiro é o conhecimento das Ideias; i) As Ideias não são perceptíveis pelos sentido, não são coisas concretas, mas abstratas, conhecidas somente pela inteligência.

           

Tais modelos são separados do sensível, pois acessados também por outra via, e eles necessariamente existem, são reais e objetivos, ou não haveria conhecimento verdadeiro. Platão expressa a noção de reminiscência (anámnesis), isto é, a hipótese de que a alma teria estado em contato com as Ideias antes de seu nascimento.

 

As Ideias expressam perfeitamente uma realidade determinada, sem expressar, simultaneamente, o seu oposto: a Ideia do Belo, por exemplo, é bela e nada mais;  Ideia de Justiça é justa e nada mais, etc. Elas são puras, designam uma realidade que subsiste em si mesma. São paradigmas, modelos perfeitos para discernir, julgar e conhecer o real. Portanto, é dirigindo a nossa atenção para as Ideias, e não aos objetos sensíveis, que o conhecimento verdadeiro é possível.

           

 No entanto as Ideias não são” noêmata”, coisas do pensamento, mas” noêta”, o cognoscível em pensamentos. Uma idéia é a causa de algo ser o que é . As coisas sensíveis são ontologicamente secundárias. As Ideias são independentes dos seres sensíveis, elas existem em si e por si. As mudanças no mundo sensível não as afetam, pois elas são a causa daquele. As Ideias são unas, perfeitas, eternas imutáveis, imóveis, independentes e simples (indivisíveis). São elas que conferem inteligibilidade ao real.

           

Platão nos mostra que nenhum realismo verdadeiro é possível se não admitirmos a primazia da Ideia. Assim o entendeu Hegel. Chamemos, se asssim o quisermos, esse realismo de “idealismo”, mas com a ressalva de que a Ideia é o real mais real, o “ ens realissimum”, pois somente na Ideia alguma coisa tem realidade efetiva. (...) Hegel diz que as Ideias platônicas estão no pensamento de Deus. Mas essa identidade do “topos noetos” com o pensamento divino será o termo de uma longa evolução que terá início no platonismo médio e encontrará seu ápice e sua perfeição no exemplarismo agostiniano-tomista. Em Platão o que vamos encontrar é a primeira e audaz exploração do mundo ideal e a primeira afirmação, com inequívoco alcance ontológico, da transcendência da Idea: fundamento e condição de todo autêntico “realismo”. (Lima Vaz H.C.,Platônica, pag.70/71)

 

No plano da educação (paideía) aos governantes coincidem com os exercícios para o aprendizado da filosofia, coincidência entre o verdadeiro filósofo e o verdadeiro político. A finalidade da educação consistia em levá-lo ao conhecimento e à contemplação do Bem, conduzindo-o ao “conhecimento máximo” para que ele pudesse modelar a si mesmo conforme o Bem e aplicá-lo na Cidade.

 

Platão proclama a suprema Ideia do Bem, ou seja, o Bem em si como “modelo” supremo ou paradigma” do qual o filósofo deve servir-se para regular a própria vida e a da Cidade. Sinaliza a entrada do Bem na comunidade dos homens por meio daqueles poucos homens, os filósofos, que sabem elevar-se a contemplação do Bem. A Ideia do Bem  é o divino no mais alto grau, a Cidade platônico torna-se, por conseguinte, a tentativa de organizar a vida  associada dos homens na base do mais elevado fundamento teológico. O Divino torna-se o eixo fundamental verdadeiro da polis, do ser, do cosmo, da vida privada dos homens e também da vida dos homens na dimensão política. Dessa forma, o “Bem” emerge como princípio primeiro, do qual depende o mundo ideal. Já o Demiurgo,” é o Deus supremo, para Platão, é a Inteligência suprema, “ o melhor dos seres inteligíveis” e “a melhor das causas”.

 

 Em outras palavras, o Deus platônico é aquele que é bom em sentido “pessoal” enquanto a “Ideia do Bem” é o Bem no sentido “impessoal”. (Reale G., Platão,Hist.Fil.G.R.,pag.150)

 

O Demiurgo aparece como gerador dos cosmos físico em razão da sua “bondade” e  o “ Bem” constitui o fundamento da Cidade e do agir humano.

 

O filósofo convivendo com o que é divino e ordenado, tornar-se-á ordenado e divino até onde é possível.

 

- Ora certamente o filósofo, convivendo com o que é divino e ordenado, tornar-se-á ordenado e divino até onde é possível a um ser humano. (Rep. 500 c d)

           

A cidade só poderá ser feliz por esses que se inspiram  no modelo divino e o aplicam na medida do possível a cidade. Assim é o filósofo rei.

           

Aos diálogos platônicos pode-se aplicar o que Heráclito disse do Deus de Delfos:

 “ Não afirma nem esconde, mas dá a entender por sinais” (...)
 

Bibliografias:

1) Platão, A República, Introdução, Tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira, 4ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa;

2)Reale Giovanni, Platão, História da Filosofia Grega e Romana, vol. III, tradução Henrique Cláudio de Lima Vaz e Marcelo Perini, nova edição corrigida, 2007,Edições Loyola;

3) Reale Giovanni, Antiseri Dario, História da Filosofia, vol. I, 11ª edição, 2012, Paulus;

4)Vaz Henrique C. Lima, Antropologia Filosófica, vol. I, 11ªedição, 2011, Edições Loyola;

5) Vaz Henrique C. Lima, Platonica, escritos de filosofia VIII, 2011 Edições Loyola;

6) Pecoraro Rossano (org.), Os Filósofos Clássicos da Filosofia, vol. I, 2008, Editora Vozes;

7) Schafer Christian ( org.), Léxico de Platão,  tradução Milton Camargo Mota,  2012, Edições Loyola.