Parte I - Platão:
A República e os Filósofos Reis
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)
A “verdadeira arte política” é a arte que
“cura a alma” e a torna o mais possível “virtuosa”, sendo, por isso, a arte do
filósofo. Tal tese Platão amadurece a partir do Górgias e expressa em A
República (“Politeía”), ou seja, a coincidência da verdadeira filosofia com a
verdadeira política.
Escrita em forma
de diálogo por Platão e sustentada em 1ª pessoa pela figura de Sócrates, funda-se
a Cidade assim como o Homem em “lógos”, ou seja, por argumentos.
- Fundemos em “lógos” uma cidade (...).
(Rep. 369 c)
Sócrates,
Adimanto e Glauco partem em busca da definição de justiça e encontram a justiça
em ato na realização da Cidade perfeita, que o Sol do Bem ilumina.
Construir a Cidade
significa conhecer o homem e seu universo,
Platão trabalha com a Antropologia, na qual se funda a tradição
pré-socrática da relação do homem com o “kósmos”, a tradição sofística do homem
como ser de cultura (“paideía”) destinado à vida política, e a herança
dominante de Sócrates do “homem interior” e da “alma” (“psyché”).
A Cidade
perfeita é uma estrutura ideal, mas não é uma utopia, ela nasce com base nas
necessidades.
-(...) Serão as nossas necessidades que hão
de fundá-la. (Rep. 369 c).
Temos, pois,
necessidades dos serviços de muitos outros homens. E nessa Cidade cada pessoa deve
fazer uma só função, conforme sua natureza, desempenhando da melhor forma, para
que sua tarefa resulte perfeita, para que seja melhor naquilo que se é (
“areté”, “excelência”). Diz Sócrates:
(...) cada um de nós não nasceu igual ao
outro, mas com naturezas diferentes, cada uma para a execução de sua tarefa (Rep.370
b).
- Mas nós impedimos o sapateiro de tentar
ser ao mesmo tempo lavrador, ou tecelão, ou pedreiro, e só o deixamos ser
sapateiro, a fim de que a obra de
sapateiro resultasse perfeita; e, do mesmo modo, a cada um dos outros
atribuímos uma única arte, aquela para qual cada um nascera(...) (Rep.374 b c)
Tal Cidade
necessita de três estamentos: 1) O primeiro são os dos lavradores, artesãos e
comerciantes, são a maioria e
imprescindíveis os serviços desses de onde provêm às necessidades materiais,
desde o alimento até às vestes e à habitação. 2) Os guardiães, responsáveis
pela guarda e defesa da Cidade. 3) Os governantes, é a dedicação de alguns
poucos homens que saibam governar adequadamente.
Também é
apresentada a tricotomia da “alma” (436 a - 441c), que ordena as três partes: o
racional(“tò logistikón”), o irascível (“tò thymoeidés”) e o concupiscível (
“tò epithymetikón”) segundo a justiça (“dykaiosunê”), sendo regida cada uma
pela sua virtude própria (“areté”), respectivamente: a sabedoria (“sophía”), a
coragem (“andréia”) e a moderação (sophrosyne). Em cada homem estão presentes
as três faculdades da alma, mas é uma delas que prevalece.
A Cidade justa
não é senão o engrandecimento de nossa alma. Nela predomina a temperança no
primeiro estamento, a coragem no segundo e a sabedoria no terceiro. E a
“justiça” é a harmonia que se estabelece entre essas três virtudes.
Por consequinte
o primeiro estamento da “ téchne”, é
construído de homens nos quais prevalece o aspecto “concupiscível” da alma, ou
seja, corresponde a potência (dýnamis) epitimética da alma. A “areté” deste estamento é a “sophrosyne”,
ou seja, a “temperança”, “nada em excesso”, a “boa medida”, a justa medida, o
domínio dos desejos e prazeres, pois esta classe tem riquezas, bens. Portanto
há o risco do desejo da posse ilimitada por eles. Quanto a educação, não
necessitam de educação especial, porque as artes e os ofícios são facilmente
aprendidos na prática.
O segundo
estamento, dos guardiães, é constituído de homens nos quais prevalece a força
“irascível” (volitiva) da alma, corresponde a potência (dýnamis) timocrática. É
quando ficamos irados, tal tendência não se identifica nem com a razão, nem com
o desejo, não é razão porque é passional, não é desejo porque frequentemente se
opõe a ele, como quando ficamos irados por termos cedido a algum desejo. A
“areté” dos guardiães é a coragem, “andréia”, é o ânimo que os movem para irem
à guerra e desejarem a vitória. Os guardiães deverão permanecer vigilantes quer
em relação aos perigos externos, quer internamente. A sophrosyne é uma
qualidade que também devem possuí-los para saberem diferenciar o amigo do
inimigo. Para este estamento Platão propõe a educação clássica,
ginástico-musical. Os guardiães são o fruto da Paidéia, que avança por meio da
íntima sinergia do “eros” e do “logos”, ou seja da alma. Alma que é “eros” e
“logos”. Propõe também a “comunhão” de todos os bens: comunhão de homens e
mulheres e, portanto de filhos, bem como a abolição de qualquer propriedade
sobre bens materiais. Homens e mulheres deste estamento deveriam receber a
mesma educação e desempenhar tarefas idênticas. A finalidade era criar uma
grande família, onde todos se amassem como parentes. O bem particular deveria
ser o bem comum.
O terceiro
estamento, o dos governantes. Predomina neles
a alma racional, corresponde a potência (dýnamis) logística. Sua
excelência (“areté”) é a sabedoria (“sophía”). Para Platão tais governantes seriam os filósofos reis, conform 473 d, e
:
-
Enquanto não forem, ou os filósofos reis nas cidades, ou os que agora se chamam
reis e soberanos filósofos genuínos e capazes, e se dê esta coalescência do
poder político com a filosofia, enquanto as numerosas naturezas que actualmente
seguem um destes caminhos com exclusão do outro não forem impedidas
forçosamente de o fazer, não haverá tréguas dos males, meu caro Gláucon, para
as cidades, nem sequer, julgo eu, para o gênero humano, nem antes disso será
jamais possível e verá a luz do sol a cidade que há pouco descrevemos. Mas isto
é o que eu há muito hesitava em dizer, por ver como seriam paradoxais essas
afirmações. Efetivamente, é penoso ver que não há outra felicidade possível,
particular ou pública.
Destarte a
“conditio sine qua non” para que se realize a Cidade ideal é que os filósofos
se tornem governantes e os governantes, filósofos. Portanto, o filósofo não
somente projeta a Cidade perfeita, mas é também só o filósofo que pode
realizá-la e fazê-la. A Cidade ideal tem como parte mais significativa a
caracterização específica dos “governantes” supremos da Cidade e sua peculiar
paideía ou educação. É exatamente a concepção da natureza dos governantes que
revela, além do fundamento teórico, a possibilidade de realização da Cidade
platônico. Apenas na condição de o
governante se tornar filósofo, ou do filósofo se tornar governante
(“philosophos-basileus”) é que se torna possível construir a Cidade autêntica,
fundada sobre o valor supremo da justiça e do bem.
Os filósofos
amam a cidade e os governados, mais do que os outros, tem também as qualidades da
coragem e a generosidade.
- (...) as qualidades que lhe convinham eram
a coragem, a generosidade, a facilidade para aprender, a memória.(...) (
Rep.490 d)
Tem facilidade
para aprender e para a memória, porque tem “eros” pela “sophia”, estão desejos
da sabedoria na sua totalidade, tem prazer em apreender.
- Porventura não diremos também do filósofo
que está desejoso da sabedoria, não de uma parte sim e de outra não, mas da
totalidade? ( Rep. 475 b)
Sabem tornar uma cidade justa e a mantê-la
justa, possuem o olhar largo de Zeus, que tudo vê. Não se corrompem, são cumpridores
com zelo da sua missão, pois, especialmente, aprenderam a conhecer e contemplar o Bem. Atiram-se ao estudo com prazer e sem
saciar.
- Mas àquele que deseja prontamente provar
de todas as coisas que podem apreender e se atira ao estudo com prazer e sem
saciar, a esse chamaremos com justiça filósofo, ou não?( Rep. 475 c)
Capazes de subir
até o belo em si e de o contemplar na sua essência, são raros.
- Mas aqueles que são capazes de subir até
ao belo em si e de o contemplar na sua essência, acaso não serão muito raros? (
Rep. 476 b)
Dedicam-se ao
ser em si, de olhar para a verdade absoluta, tomando-a sempre como ponto de
referência e contemplando-a com o maior rigor possível, para então promulgar
leis na terra sobre o belo, o justo, o bom e se for o caso preservar as que
existem, mantendo-as a salvo.
O núcleo da
República é sobre a Teoria das Ideias e os filósofos, para Platão, são os capazes de acessar as Ideias, ou seja,
de atingir aquilo que se mantém sempre do mesmo modo, contemplam as coisas em
si, as que permanecem sempre idênticas.
- (...) Uma vez que os filósofos são aqueles
que são capazes de atingir aquilo que se mantém sempre do mesmo modo (...).
(Rep. 484 b)
A Teoria das Ideias ( idea, eidos), segundo a
qual existem idéias ou formas eternas, unas e imutáveis como: a Ideia do Belo,
ou a Beleza em si; a Ideia da Virtude, ou a Virtude em si; a Ideia da Justiça,
ou a Justiça em si, etc. Tudo aquilo que é, por exemplo, belo, virtuoso, ou
justo, é assim porque participa da respectiva Ideia. As Ideias (ou Formas) são
paradigmas, modelos que conferem ordem, estabilidade e unidade à multiplicidade
e mutação incessante de todas as coisas. Elas são a fonte do conhecimento
verdadeiro e a causa necessária de tudo aquilo que podemos conhecer através dos
sentidos. São mais reais que os seres sensíveis, isto é, mais fundamentais. São
invisíveis aos olhos, mas cognoscíveis pela inteligência. A Ideia é a essência das coisas, de modo que
é somente definindo o que seja a Ideia correspondente que se pode dizer o que é
algo, como por exemplo, a virtude ou a justiça.
O principal
argumento de Platão é o chamado “argumento do conhecimento”, ou seja : a) Todas
as coisas que percebemos pelos sentidos estão em constante transformação; b)
Não pode haver conhecimento verdadeiro daquilo que está em transformação; c)
Logo, as coisas que percebemos pelos sentidos não podem ser conhecidas; d) No
entanto, há conhecimento: e) O conhecimento verdadeiro só é possível se for
algo que é e que permaneça sempre constante ( eterno, imóvel, idêntico); f)
Logo, deve existir algo que permanece sempre constante (eterno, imóvel e
idêntico); g) As Ideias têm essas características; h) O conhecimento verdadeiro
é o conhecimento das Ideias; i) As Ideias não são perceptíveis pelos sentido,
não são coisas concretas, mas abstratas, conhecidas somente pela inteligência.
Tais modelos são
separados do sensível, pois acessados também por outra via, e eles
necessariamente existem, são reais e objetivos, ou não haveria conhecimento
verdadeiro. Platão expressa a noção de reminiscência (anámnesis), isto é, a
hipótese de que a alma teria estado em contato com as Ideias antes de seu
nascimento.
As Ideias
expressam perfeitamente uma realidade determinada, sem expressar,
simultaneamente, o seu oposto: a Ideia do Belo, por exemplo, é bela e nada
mais; Ideia de Justiça é justa e nada
mais, etc. Elas são puras, designam uma realidade que subsiste em si mesma. São
paradigmas, modelos perfeitos para discernir, julgar e conhecer o real.
Portanto, é dirigindo a nossa atenção para as Ideias, e não aos objetos
sensíveis, que o conhecimento verdadeiro é possível.
No entanto as Ideias não são” noêmata”, coisas
do pensamento, mas” noêta”, o cognoscível em pensamentos. Uma idéia é a causa
de algo ser o que é . As coisas sensíveis são ontologicamente secundárias. As
Ideias são independentes dos seres sensíveis, elas existem em si e por si. As
mudanças no mundo sensível não as afetam, pois elas são a causa daquele. As
Ideias são unas, perfeitas, eternas imutáveis, imóveis, independentes e simples
(indivisíveis). São elas que conferem inteligibilidade ao real.
Platão nos mostra que nenhum realismo
verdadeiro é possível se não admitirmos a primazia da Ideia. Assim o entendeu
Hegel. Chamemos, se asssim o quisermos, esse realismo de “idealismo”, mas com a
ressalva de que a Ideia é o real mais real, o “ ens realissimum”, pois somente
na Ideia alguma coisa tem realidade efetiva. (...) Hegel diz que as Ideias
platônicas estão no pensamento de Deus. Mas essa identidade do “topos noetos”
com o pensamento divino será o termo de uma longa evolução que terá início no
platonismo médio e encontrará seu ápice e sua perfeição no exemplarismo
agostiniano-tomista. Em Platão o que vamos encontrar é a primeira e audaz
exploração do mundo ideal e a primeira afirmação, com inequívoco alcance
ontológico, da transcendência da Idea: fundamento e condição de todo autêntico
“realismo”. (Lima Vaz H.C.,Platônica, pag.70/71)
No plano da
educação (paideía) aos governantes coincidem com os exercícios para o
aprendizado da filosofia, coincidência entre o verdadeiro filósofo e o
verdadeiro político. A finalidade da educação consistia em levá-lo ao
conhecimento e à contemplação do Bem, conduzindo-o ao “conhecimento máximo”
para que ele pudesse modelar a si mesmo conforme o Bem e aplicá-lo na Cidade.
Platão proclama
a suprema Ideia do Bem, ou seja, o Bem em si como “modelo” supremo ou
paradigma” do qual o filósofo deve servir-se para regular a própria vida e a da
Cidade. Sinaliza a entrada do Bem na comunidade dos homens por meio daqueles
poucos homens, os filósofos, que sabem elevar-se a contemplação do Bem. A Ideia
do Bem é o divino no mais alto grau, a
Cidade platônico torna-se, por conseguinte, a tentativa de organizar a
vida associada dos homens na base do
mais elevado fundamento teológico. O Divino torna-se o eixo fundamental verdadeiro
da polis, do ser, do cosmo, da vida privada dos homens e também da vida dos
homens na dimensão política. Dessa forma, o “Bem” emerge como princípio
primeiro, do qual depende o mundo ideal. Já o Demiurgo,” é o Deus supremo, para
Platão, é a Inteligência suprema, “ o melhor dos seres inteligíveis” e “a
melhor das causas”.
Em
outras palavras, o Deus platônico é aquele que é bom em sentido “pessoal”
enquanto a “Ideia do Bem” é o Bem no sentido “impessoal”. (Reale G.,
Platão,Hist.Fil.G.R.,pag.150)
O Demiurgo
aparece como gerador dos cosmos físico em razão da sua “bondade” e o “ Bem” constitui o fundamento da Cidade e
do agir humano.
O filósofo
convivendo com o que é divino e ordenado, tornar-se-á ordenado e divino até
onde é possível.
- Ora certamente o filósofo, convivendo com
o que é divino e ordenado, tornar-se-á ordenado e divino até onde é possível a
um ser humano. (Rep. 500 c d)
A cidade só
poderá ser feliz por esses que se inspiram
no modelo divino e o aplicam na medida do possível a cidade. Assim é o
filósofo rei.
Aos diálogos
platônicos pode-se aplicar o que Heráclito disse do Deus de Delfos:
“ Não
afirma nem esconde, mas dá a entender por sinais” (...)
Bibliografias:
1) Platão, A República, Introdução, Tradução
e notas de Maria Helena da Rocha Pereira,
4ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa;
2)Reale Giovanni, Platão, História da
Filosofia Grega e Romana, vol. III, tradução Henrique Cláudio de Lima Vaz e
Marcelo Perini, nova edição corrigida, 2007,Edições Loyola;
3) Reale Giovanni, Antiseri Dario, História
da Filosofia, vol. I, 11ª edição, 2012, Paulus;
4)Vaz Henrique C. Lima, Antropologia
Filosófica, vol. I, 11ªedição, 2011, Edições Loyola;
5) Vaz Henrique C. Lima, Platonica, escritos
de filosofia VIII, 2011 Edições Loyola;
6) Pecoraro Rossano (org.), Os Filósofos
Clássicos da Filosofia, vol. I, 2008, Editora Vozes;
7) Schafer Christian ( org.), Léxico de
Platão, tradução Milton Camargo
Mota, 2012, Edições Loyola.