Os
Símiles da República na formação do Filósofo e sua prática
(por Ândrea
Cristina Pimentel Palazzolo)
I - Introdução
No
fim do livro VI e o início do VII desenvolve-se alguns dos temas mais
importantes da República, talvez até mesmo de toda a filosofia platônica.
Trata-se dos símiles do Sol, da Linha e da Caverna, para a formação do filósofo
e sua prática.
O
horizonte do discurso que agora se manifesta são as imagens sucessivas do sol,
linha e da caverna, é o da clássica distinção entre mundo visível (sensível) e
mundo inteligível.
Certamente
o que aqui está em jogo é o problema do conhecimento, mas também entre
conhecimento e práxis, entre o mundo de aquisições intelectuais e o da vida
concreta, mais precisamente o da política.
O
texto afirma também a relação entre os três símiles: do Sol com o da Linha em
VI.509c; e deste último com o da Caverna em VII.517 a-c, devendo-se comparar o
mundo visível à caverna e o inteligível à ascensão dos prisioneiros ao mundo
superior.
As
três alegorias são partes complementares e interdependentes de um só todo. Juntas
constroem a base metafísica da teoria e currículo da educação superior em
Platão.
II- Símile do Sol
Primeiro
temos o símile do Sol, que mostra que esse astro está para o mundo visível como
o Bem para o invisível (VI 507b-509d).
Platão considera a ideia do bem como
a de um saber mais elevado (“megiston mathema” – 505 a), é a ideia suprema, que
torna inteligível o mundo. Em que pese
Platão não afirmar explicitamente que o bem dentre as idéias seria
hierarquicamente a mais elevada, dá a entender, quando em argumentos trata do
bem.
J.E. Raven
definiu o Bem do seguinte modo: “ O Bem , para Platão, é, em primeiro
lugar, e com mais evidência, a finalidade ou alvo da vida, o objeto supremo de
todo o desígnio e toda a aspiração. Em segundo lugar, e mais
surpreendentemente, é a condição do conhecimento, o que torna o mundo
inteligível e o espírito inteligente. E em terceiro, último e mais importante
lugar, é a causa criadora que sustenta todo o mundo e tudo o que ele contém,
aquilo que dá a tudo o mais a sua própria existência.”(Rep.Introdução,
pag.XXVII, Fundação Calouste G., 4ª edição)
No Livro VI 507 b3-508c2, ele discorre:
“Portanto,
nós dizíamos – finalmente Sócrates – que há muitas coisas belas e muitas boas,
e todas assim as chamamos e definimos com o discurso. E em seguida dissemos que
existem o belo em si e o bom em si, e dessas muitas coisas consideramos cada
uma em relação a uma idéia, que dizemos ser uma, e cada uma chamamos “o que é”.
E que muitas coisas se vêem, mas não se apreendem com o intelecto, enquanto que
as idéias se apreendem com o intelecto, mas não se vêem. Ora, nós vemos as
coisas visíveis com a visão e as outras coisas sensíveis com os outros
sentidos. A faculdade mais perfeita é a da visão, porque, diferentemente dos
outros sentidos, precisa de outra coisa, isto é, da luz, que é a ligação mais
preciosa entre a sensação da visão e a possibilidade de ser visto. Da luz é
senhor o sol, cuja luz permite ver e ser visto. Pois, a relação entre a visão e
este deus é por natureza a seguinte: a visão não é o sol, mas aquele que dos
sentidos mais lembra no aspecto o sol, e a sua faculdade deriva-lhe do sol; o
sol não é a visão, mas sendo sua causa, é por ela visto. E então eu chamo o sol
filho do bem, gerado pelo bem e análogo a ele, de maneira que no mundo
inteligível o bem é relativamente ao intelecto e aos inteligíveis aquilo que no
mundo sensível o sol é relativamente à visão e aos visíveis” (VI 507b3 – 508c2).
A analogia é, por conseguinte,
também matemática, a construção de uma relação, de uma proporção, que podemos
esquematicamente da seguinte maneira:
No mundo
inteligível = No mundo sensível
Bem: intelecto/inteligíveis = Sol: visão/visíveis
“
Tal como há diferença, relativamente à faculdade de ver enquanto tal, entre ver
coma luz do sol e ver por meio das luzes noturnas, o mesmo acontece com a alma:
quando ela se fixa de maneira sólida sobre o que é iluminado pela luz da
verdade e do que é, colhe-o e conhece-o, e é evidente a sua inteligência;
quando se fixa no que é misto de trevas, no que nasce e morre, então só tem
opiniões e assemelha-se a uma pessoa que não tem intelecto” (VI 508d).
Significa que um homem que conhece e tem
inteligência das coisas inteligíveis realmente consegue o conhecimento
verdadeiro, já se esse homem, pelo
contrário, considera apenas o mundo do
devir, da mutabilidade, o mundo visível, terá apenas “ doxa”, opinião e é
comparado a uma pessoa que não tem intelecto.
“
Ora, o que dá verdade as coisas conhecidas e dá a faculdade de conhecer a quem
conhece é precisamente a idéia do bem, causa da epistéme e da verdade. E tal
como no mundo visível a luz e a visão são semelhantes ao sol, mas não são o
sol, assim, no mundo inteligível a epistéme e a verdade são semelhantes ao bem,
mas não são o bem. A condição do bem deve ser tida em considerações ainda
maior” (VI 508 e 1-509 a5).
A ideia do bem, aqui, é o que transforma
os conhecimentos num sistema fortemente organizado que podemos chamar ciência,
epistéme; e, ao mesmo tempo, dá verdade, em nível superior, aos mesmos
conhecimentos, é o que dá maior valor aos próprios conhecimentos. Neste
sentido, deve-se interpretar a idéia do bem como causa também da verdade; e
esta idéia do valor maior que a idéia do bem confere aos conhecimentos será reafirmada logo em seguida, realçando
mais uma vez que o sentido do que se está a dizer está no interior da imagem
que está a usar.
“Continua
então a examinar esta imagem. O sol confere as coisas visíveis não só a
faculdade de serem vistos, mas também geração, crescimento e alimento, embora
ele mesmo não seja geração; da mesma forma, o bem confere as coisas
cognoscíveis não só a propriedade de serem conhecidos, mas também ser e essência,
embora o bem não seja essência, mas algo que por dignidade e potência está além
da essência” (VI 509 a-b).
Percebe-se claramente a analogia do sol com o bem. A
comparação não se reduz a uma simples contraposição entre o mundo sensível e o
inteligível. Constata-se a função, cognitiva e prática, respectivamente do bem
e do sol. De fato, no mundo sensível, isto é, no mundo concreto do nosso viver,
o sol torna as coisas visíveis, já no mundo do conhecimento, o bem é condição do conhecimento,
sem que ele mesmo seja conhecimento ou vida, porque está além do visível. No
mundo inteligível, isto é, na construção dos nossos conhecimentos, o bem dá verdade
aos nossos conhecimentos, permite a sua boa realização, ou seja, insere-os na
concretude da nossa existência, sem que ele mesmo seja reduzível à existência,
porque está além da existência.
Trata-se do horizonte aberto do
dever ser, do nosso agir em vista de algo, que pela sua altíssima dignidade
merece todo o esforço do filósofo/governante que tende a realizá-lo. Numa
palavra, o bem, estando “além” da existência, é o fim das nossas ações e,
simultaneamente, o que dá valor à nossa ação.
III – Símile da
linha: a faculdade do conhecimento e dos seres.
Ela trata do Conhecer e do Ser.
Aqui a imagem/analogia do sol passa
para a da linha (VI 509d-511e).
Há dois gêneros, o visível e o
inteligível:
É
como se pegasse numa linha dividida em segmentos desiguais e, mantendo
constante a relação, subdividisse ainda o que representa o gênero visível do
que representa o gênero inteligível (VI 509d4-8).
Dividem-se os primeiros dois
segmentos em dois, de maneira a resultar quatro segmentos e, por conseguinte,
os dois segmentos originários, que representam os dois mundos, sensível e
inteligível, são distinguidos em outro dois segmentos.
O
mundo visível (horata ou doxata) , está sujeito a doxa (opinião), devido a
mutalidade, tem em primeiro lugar uma zona de eikónes ( “imagens”, reflexos nas
águas, pinturas...), são os seres imagéticos, conhecidos pela eikasía
(“suposição”). Num nível mai elevado, temos todos os seres vivos (zoa) e
objetos do mundo, ou seja, os seres
físicos e fabricados, esses modelos são
modelos para os seres imagéticos, são conhecidos através de “pístis” (“fé,
crença”).
O mundo inteligível (nóeta), está sujeito a
sophía (saber), tem também dois setores
proporcionais, o inferior e o superior, o primeiro são os dos seres matemáticos
e afins, estes são modelos para os seres físicos, são apreendidos através da diánoia
(“entendimento” ou “razão discursiva”) e o segundo são os dos seres formais as
idéias, são modelos para os seres matemáticos e afins, são apreendidos só pela
nóesis (“inteligência” , “razão intuitiva”, “intuição refinada”). Nesta última
distinção poderá residir, como alguns supõem, a finalidade principal da
analogia: o contraste entre o conhecimento pela dianóia, que é o das ciências,
e o que é pela noesis, que é o da filosofia. Mas não é menos importante a
antinomia entre opinião e saber, entre doxa e sophia.
Terás,
em relação recíproca de clareza e obscuridade, A) no mundo visível, um primeiro
segmento: 1) as imagens (509e1: eikónes). Por imagens entendo as sombras, as
que aparecem na água e nos espelhos, e em coisas do gênero; 2) um segundo
segmento, que é aquilo a que se assemelha o primeiro: os animais, as plantas e
todos as coisas artificiais. Ora, tal como o opinável se distingue do
cognoscível relativamente à verdade, também a imagem se distingue daquilo de
que é imagem; B) no gênero do inteligível: 3) a alma procura o inteligível
recorrendo, como que a imagens, àquelas que no caso anterior eram as coisas
imitadas, partido de hipóteses e indo não para o princípio, mas para o fim; 4)
na outra parte, que conduz a um princípio não hipotético, a alma procura o
inteligível partindo de hipóteses, mas sem as imagens relativas ao inteligível
e pesquisando exatamente com as idéias e por meio delas (VI 509e-510b).
Considerando os quatro segmentos, a
“inferioridade” de um segmento relativamente ao sucessivo diz respeito à
verdade, conforme 510 a9: é em relação à verdade que as imagens se distinguem
daquilo que são imagens. A distinção parece pertencer ao nível gnosiológico: a
isto alude não só a relação entre clareza e obscuridade (VI 509d9), mas também
a outra, problemática, referente ao “opinável” e ao “cognoscível” (VI 510a9).
Onde é claro que o opinável se distingue do cognoscível porque só a este último
cabe a verdade, enquanto que ao outro não. Haveria um “conhecimento obscuro”, que podemos
chamar opinião, e um “conhecimento claro”, que chamamos simplesmente
conhecimento, e a diferença residiria apenas no método com o qual nos dirigimos
para os objetos do nosso conhecimento.
Quanto ao segundo segmento temos uma
segunda formulação por Sócrates do nível B, pois a anterior não ficou clara a
Gláucon :
“3):
alguns dos que se ocupam de geometria, cálculo e coisas afins, admitem por via
hipotética o ímpar e o par, as figuras geométricas, três espécies de ângulos e
coisas semelhantes. E como se conhecessem estas coisas, reduzem-nas a hipóteses
e pretendem não ter de dar conta nem a si mesmos nem aos outros, como se fosse
coisa clara a todos. Estas pessoas fazem uso das espécies visíveis e a
partir delas constroem discursos, mas têm
em mente as coisas às quais estas se assemelham, e servem-se das coisas que
modela como se fossem imagens, procurando ver as realidades em si que não se
podem ver senão com a razão discursiva (VI 511a1:dianóia). Esta ideia é sim
inteligível, mas de tal modo que a alma é obrigada, a investigá-la servindo-se
de hipóteses sem se dirigir para o princípio, dado que não é capaz de
transcender as hipóteses, mas serve-se delas como antes se servia das imagens.
É o mundo da geometria e das artes irmãs” (VI 510c-511b)
Aqui se esclarece explicitamente que
esta secção pretende simbolizar os conhecimentos matemáticos, geométricos, e
das “artes irmãs”: as imagens ainda estão presentes e incanceláveis.
Elas são, por um lado, as figuras reais que se “vêem”, isto
é, percepcionam-se sensivelmente, como os triângulos, quadrados, todas as
figuras geométricas que estes homens constroem desenhando, figuras que
constituem uma espécie de “idéias visíveis”(VI 510d5); mas, por outro lado,
são, mais em geral, “hipóteses” puramente racionais. De fato, a elas pertencem
também “o par e o ímpar” (VI 510c4), que não são, a rigor, imagens visíveis.
Hipóteses, portanto, no sentido literal de algo que se “sobrepõe” ao dado
sensível para compreendê-lo e conhecê-lo, algo que porém não deriva do próprio
dado sensível por via de abstração, mas constitui precisamente o “modelo”
racional, só racional, que permite compreender e conhecer a imagem sensível. E
a imagem continua a estar fortemente presente: não só são imagens as “coisas”
às quais aplicamos “o modelo”do triângulo, do quadrado, etc., mas são imagens
as mesmas figuras geométricas que eles desenham (VI510e1), imagens de algo que
não se pode “ver” a não ser unicamente com a razão discursiva (dianóia);
imagens/hipóteses que estas ciências assumem de maneira imediata. Platão realça
a imediatez intuitiva das idéias matemáticas(par/ímpar) e das geométricas
(triângulo etc.), mas também o fato de o método hipotético assumido por elas
ser um método axiomático. Portanto, a característica de todas estas ciências é
o fato de elas não “darem conta” das imagens/hipóteses que assumem, exatamente
porque as consideram coisas evidentes a todos (VI 510c7-d1;cf.VII531e 1-5).
Temos por fim: ”4) a outra secção do inteligível, a que o próprio discurso atinge com a
“força da dialética”, fazendo das hipóteses não princípios, mas realmente
“pré-supostos”, quase como pontos de apoio e de salto, para que ao dirigir-se
para o que não mais tem pressuposto, ao princípio de tudo, e ao atingi-lo,
volte, apegando-se “pari passu” ao que dele deriva, a descer até as conclusões,
sem servir-se absolutamente nada do sensível, mas só das idéias, por elas e
através delas, e se termine nas idéias” (VI 511b-c).
Há, então, uma intervenção de
Gláucon (VI 511c3-4), que oferece um resumo do que Sócrates disse:
“Com
isto pretende-se definir aquela parte do real e do inteligível que é
contemplada pela “ciência dialética” e que é mais clara do que a contemplada
pelas chamadas artes, para as quais as hipóteses são princípios. E os que
observam os objetos das artes são obrigados a observá-los com o pensamento
discursivo sem fazer recurso às sensações, e parece-te que não usam o intelecto
porque os examinam sem retornar ao princípio, mas por via de hipóteses, mesmo
que aqueles objetos sejam inteligíveis. E tu chamas dianóia à condição destas
pessoas, e não intelecto, e considera-a algo entre a opinião e o
intelecto”(VI511c-d).
Sócrates
aprova esta interpretação de Gláucon.
Esta última secção da linha
simboliza, portanto, a dialética. De forma declarada, ela é a única disciplina,
aliás, a única ciência, a não recorrer a imagens. Mas o seu ponto de partida é
dado por imagens, só que elas não lhe servem para permanecer ancorada ao mundo
das imagens, e sim para ir além dele. Todavia, aqui é importante o fato de a
hipótese, que de certo modo é sempre uma imagem e constitui o “princípio”
inteligível de explicação e conhecimento do mundo real, constituir agora
somente a base para o salto aquisitório de outro “princípio” que não é mais uma
hipótese, mas que funda todas as outras hipóteses e não é, por sua vez, fundado
por nada. Como é natural, é o mundo das idéias (cf. VI 511b5),
metodologicamente bem-distinto não só do mundo das coisas sensíveis, mas também
do das imagens científicas que servem para explicar as coisas sensíveis.
Após ter aprovado o “resumo” Sócrates dá o acabamento final: a
qualificação de “disposição”, que Gláucon destinara ao segmento da “diánoia”,
agora torna-se a qualificação de quatro “pathémata em têi psychêi”: trata-se,
portanto, de quatro “pathémata” da alma, isto é, afecções, características,
atitudes, disposições, funções da alma. Eles são, partindo do último, ou seja,
do mais alto:
“4.
A intelecção, ‘nóesis; 3. O pensamento dianoético, ‘diánoia’; 2. A crença,
‘pistis’; 1. A imaginação, ‘eikasía’(VI511d8-e2), e estão ordenados
proporcionalmente, afirmando que do mesmo modo em que o seu objeto participa da
verdade, também eles participam de clareza”(VI511d-e).
Constata-se a relação analógica
fundamental é a da verdade e a da clareza, relação que liga os quatro segmentos
da linha; razão pela qual, se houver uma gradualidade, isto é, uma relação de
menor a maior, diz respeito ao nível gnosiológico, o qual visa a
verdade e a clareza do conhecimento.
IV- Símile da
Caverna
O Livro VII trata do Mito da
Caverna, 514a -518b. No centro de A
República, coloca-se a célebre “Alegoria da Caverna”. O mito foi interpretado
sucessivamente como expediente utilizado por Platão para simbolizar a
metafísica, a gnosiologia, a dialética e até mesmo a ética e a mística
platônicas. É o mito que expressa Platão na sua totalidade.
Imaginemos homens que vivam numa
caverna cuja entrada se abra para a luz em toda a sua largura, com um amplo
saguão de acesso. Imaginemos que os habitantes dessa caverna tenham as pernas e
o pescoço amarrados de tal modo que não possam mudar de posição e tenham de
olhar apenas para o fundo da caverna. Imaginemos ainda que, imediatamente à frente da caverna, exista um
pequeno muro da altura de um homem e que, por trás desse muro e, portanto,
inteiramente escondidos por ele, se movam homens carregando sobre os ombros
estátuas trabalhadas em pedra e em madeira, representando os mais diversos
tipos de coisas. Imaginemos também que, por trás desses homens, esteja acesa
uma grande fogueira e que, no alto, brilha o sol. Finalmente, imaginemos que a
caverna produza eco e que os homens que passam por trás do muro estejam falando
de modo que suas vozes ecoem no fundo da caverna.
Se isso acontecesse, aqueles
prisioneiros da caverna nada poderiam ver além de pequenas estátuas projetadas
no fundo da caverna e ouviriam apenas o eco das vozes. Entretanto,
acreditariam, por nunca terem visto coisa diferente, que aquelas sombras eram a
única e verdadeira realidade e que o eco das vozes representasse as vozes
emitidas por aquelas sobras. Suponhamos, agora, que um daqueles prisioneiros
consiga desvencilhar-se dos grilhões que o aprisionam. Com dificuldade, ele se
habituaria à nova visão com a qual se deparava. Habituando-se, porém, veria as
estatuetas moverem-se por sobre o muro e compreenderia que elas são muito mais
verdadeiras do que as coisas que antes via e que agora lhe parecem sombras.
Suponhamos que alguém traga nosso prisioneiro para fora da caverna e do outro
lado do muro. Primeiramente, ele ficaria ofuscado pelo excesso de luz; depois,
habituando-se, veria as coisas em si mesmas; e, por último, veria inicialmente
de forma reflexa e posteriormente em si mesma, a própria luz do sol.
Compreenderia, então, que estas e somente estas são as realidades verdadeiras e
que o sol é a causa de todas as outras coisas visíveis.
Antes de tudo, o mito da caverna
traduz os diversos graus em que ontologicamente se divide a realidade, isto é,
os gêneros do ser sensível e suprassensível com suas subdivisões: as sombras da
caverna simbolizam as aparências sensíveis; o muro representa a linha divisória
entre as coisas sensíveis e as suprassensíveis; as coisas verdadeiras situadas
do outro lado do muro são representações simbólicas do ser verdadeiro e das Ideias
e o sol simboliza a Ideia do Bem.
O mito simboliza os graus do
conhecimento nas duas espécies em que ele se realiza e nos dois graus em que
essas espécies se dividem: a visão das sombras simboliza a “eikasía” ou
imaginação e a visão das estátuas representa a “pístis” ou crença; a passagem
da visão das estátuas para a visão dos objetos verdadeiros e para a visão do
sol, antes de forma mediata e posteriormente imediata, simboliza a dialética em
seus vários graus e a intelecção pura.
O símile
da caverna simboliza o aspecto ascético, místico e teológico do platonismo: a
vida na dimensão dos sentidos e do sensível é a vida na caverna, assim como a
vida na pureza e plenitude da luz é a vida na dimensão do espírito. O voltar-se
do sensível para o inteligível é expressamente representado com a “ libertação
das algemas”, como conversão, enquanto a visão suprema do sol e da luz em si
mesma é a visão do bem e a contemplação do Divino.
Essa alegoria da caverna expressa
também a concepção política tipicamente platônica. Platão menciona também um
“retorno” à caverna por parte do que se libertara das algemas, retorno cuja
finalidade consiste na libertação dos em companhia dos quais ele antes se
encontrava como escravo.
O que poderá, entretanto, acontecer
a quem desce de novo na caverna? Passando da luz para a escuridão, ele não
conseguirá enxergar enquanto não se habituar novamente à falta de luz; terá
dificuldades em se readaptar aos costumes dos antigos companheiros, se
arriscará a não ser por eles entendido e, tomado por louco, correrá até mesmo o
risco de ser assassinado, como aconteceu com Sócrates e como poderá acontecer
com todos os que testemunhem em dimensão socrática.
Entretanto, o homem que “viu” o
verdadeiro Bem deverá e saberá correr esse “risco”, pois é isso que dá sentido
a sua existência.
Como
se vê, só a aquisição e a apropriação de uma nova verdade consente chamar não
verdadeiras as opiniões que antes se tinha; só relativamente a uma verdade
maior outra verdade se torna não verdadeira; só a conquista de uma nova verdade
determina um novo modo de vida e faz considerar inadequado o não bom o velho
modo de vida; só pregando uma nova verdade e um novo modo de vida, sem
conformar-se com os já existentes e aceitos pela maioria, se correm os reais perigo
não só de escárnio, mas também de morte. E mais uma vez, aqui Platão
convida-nos a refletir sobre a vida exemplar, por ele mesmo construída, da
personagem Sócrates. ( Casertano G. Uma introdução à Rep. De Platão, Ed.Paulus,
2011, pag.102)
V- Conhecimento
e Práxis
Os três símiles: sol, linha e
caverna, acima tratados, uma vez que tratam da teoria do conhecimento de
Platão, tem um papel fundamental na formação do filósofo.
Porém não basta para Platão que o
filósofo obtenha o conhecimento verdadeiro é preciso mais, que ele o pratique.
O “retorno” a caverna representa
certamente o retorno do filósofo-político, o qual se atendesse apenas às
solicitações de seu interesse, permaneceria atento apenas à contemplação do
verdadeiro. Superando, porém suas ambições, desce ele à caverna na tentativa de
salvar os outros.
O verdadeiro político segundo
Platão, não ama o comando e o poder, mas usa o comando e o poder como
instrumentos para a produção de serviços destinados à realização do bem.
Para Platão (VII 518 b 6-7) a
“paideía”, a educação, não é como algumas pessoas sustentam, dizendo que eles põem o saber (VII 518 c1) na alma,
quase com se infundisse a visão em olhos cegos.
Não se põe o saber na alma dos
homens, que é uma veleidade análoga à do querer infundir a visão em olhos
cegos, mas no máximo suscita-se o saber, tornando os homens capazes de
exercitar e de tirar os frutos das faculdades que cada um possui: a educação é
um fato “pessoal”, não uma transmissão da ciência. Ela acontece de dentro para
fora e não de fora para dentro.
O
discurso mostra que esta capacidade de saber (VII 518c5) e essa faculdade são
ínsitas na alma de cada um, e graça a elas é possível através da “phronêsai"
virar o olho para cima (VII 518c7), das trevas para a luz.
A viragem do olho através da
“phronêsai” acontece quando ocorre uma
aporia, daí a necessidade do acesso a “noésis” ( ação do nôus) em busca de uma
solução para a situação em tese sem saída. Passa-se portando da dianóia para
noésis, através da “phronêsai”, com a virada do olho, em busca da solução para a
aporia.
Logo,
essa faculdade deve ser virada (VII 518c8-9) do mundo do devir com toda a alma,
até ser capaz de suportar a contemplação do real e da parte mais luminosa do
que é, a que chamamos justamente o bem (VII 518c9-d1).
A alma (“psyché”) tem o poder de ver
a si mesmo, ela ilumina ela mesmo. Ela ilumina o que ela é, e é ela que vê as
idéias. E a“phronêsai” é o olho da alma.
Platão
considera que as faculdades ínsitas em cada homem podem ser viradas para o bem
ou para o mal; cada um possui dentro de si a capacidade de agir e de pensar,
mas o resultado das suas ações e dos pensamentos que guiam às ações depende da
sua alma.
Isto explica quão penetrante é o
olhar precisamente da alma dos chamados maldosos, mas sábio, e quão agudamente
(VII 519 a2-3) a alma deles consegue discernir os objetos para os quais está
virada, isto porque é dotada de visão não medíocre, mas que serve para sua
maldade, de maneira que os males por ela produzidos são tão grandes quanto mais
agudo (VII 519 a5) for seu olhar.
A “phrónesis”, a inteligência está,
por conseguinte, em todos, bons e maus,
por isso, todos podem ser educados a agir bem.
Para
Platão a dialética é o coração das disciplinas (VII 534b-535 a).
Ela exprime não só o mais alto grau
do conhecimento, mas também o momento em que o conhecimento se traduz em
“práxis”. O degrau superior é o bem a ideia do bem: só quem a possui com saber
certo, com verdade e não com opinião, é capaz de enfrentar todas as batalhas da
refutação e da ação.
Só o filósofo que possui a ideia do bem,
possui a ideia do fim de todos os seus conhecimentos; é ele que não só conhece
melhor do que os outros, mas sabe agir melhor que todos os outros, e é, por
conseguinte, o único capaz de governar a cidade.
Apenas o filósofo cumpre o seu saber,
aplicando-o no terreno não só do conhecimento teórico, mas também no do
prático. Precisamente porque ele vê infinitamente melhor do que os outros, pois
possui o olhar largo de Zeus que tudo vê, e dado que viu a verdade acerca do
belo, do justo e do bem (VII 520c), deve voltar a descer à caverna e ser
obrigado a assumir os cargos públicos, de maneira a não ser inferior aos outros
sequer por experiência (VII 539 e – 540b).
Esta íntima ligação é aquela sobre a
qual Platão insiste com força: tendo assimilado a dialética, dos 50anos em
diante, os que tiverem sido os primeiros em obras e em saber, chegados ao fim,
e através da “phronêsai” virando para cima os olhos da alma, serão capazes de
ver o bem em si, e servindo-se dele como modelo, darão ordens à cidade, por
turnos, aos privados e a si mesmos, para o resto da vida.
E, embora passem a maior parte do
tempo dentro da filosofia, quando chegar a sua vez, terão de enfrentar os
aborrecimento da vida política e governar pelo bem da cidade, não porque esta
tarefa é bela, mas porque é necessário (VII 539d-540b).
Quem é capaz de ver o todo, é
filósofo; quem não é capaz, não o é. (Platão)
Referências:
1) Platão, A República, Introdução, Tradução
e notas de Maria Helena da Rocha Pereira,
4ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa;
2)Reale Giovanni, Platão, História da
Filosofia Grega e Romana, vol. III, tradução Henrique Cláudio de Lima Vaz e
Marcelo Perini, nova edição corrigida, 2007,Edições Loyola;
3) Reale Giovanni, Antiseri Dario, História
da Filosofia, vol. I, 11ª edição, 2012, Paulus;
4)Vaz Henrique C. Lima, Antropologia
Filosófica, vol. I, 11ª edição, 2011, Edições Loyola;
5) Vaz Henrique C. Lima, Platônica, escritos
de filosofia VIII, 2011 Edições Loyola;
6) Pecoraro Rossano (org.), Os Filósofos
Clássicos da Filosofia, vol. I, 2008, Editora Vozes;
7)
Schafer Christian ( org.), Léxico de Platão,
tradução Milton Camargo Mota,
2012, Edições Loyola;
8)Casertano Giovanni, Uma introdução à
República de Platão, editora Paulus, 2011;
9) Gazolla Rachel, Consideraciones sobre La
Psyché en El Libro VII de La República : El Logistikón Del Dialéctico. Los
Símiles de La República VI-VII de Platón , editor Raúl Gutiérrez. Pontificia
Universidad Católica Del Peru, Fundo Editorial, 2003.