WASSILY KANDINSKY
DO ESPIRITUAL NA ARTE E NA PINTURA
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)
Kandinsky em 1910 com sua famosa aquarela “não-figurativa”, inaugurou um gênero pictórico que não existia antes dele, mas que se propagou largamente em seguida.
Kandinsky cria toda uma teoria e muitos conceitos para fundamentar sua criação: a Arte Abstrata, a Pintura Abstrata.
A GRAMÁTICA DA CRIAÇÃO
- Sobre a Questão da Forma -
Para Kandinsky a obra de arte é o espírito que, através da forma, se manifesta.
Numa abordagem sobre a questão da Forma, trata de justificar o princípio da necessidade interior, ou o princípio da entrada em contato eficaz com a alma humana: as diferentes opções artísticas de todos os tempos são bem fecundas quando saídas autenticamente da necessidade interior, quando criadas em função da força espiritual que guia todo o artista.
É necessário esclarecer o valor que Kandinsky atribui ao preto e ao branco. O preto tem sempre uma ressonância trágica, quase maléfica. É o silêncio sem esperança. O branco, em contrapartida , é o silêncio que se situa antes de qualquer nascimento. É prenhe de promessas e de esperança.
Para Kandinsky, é irrelevante que o artista recorra a uma forma real ou abstrata, pois no fim das contas elas se equivalem: “Por trás da grande diversidade dessas formas, é fácil reconhecer uma aspiração comum”.
Sempre houve dois pólos na arte: o realismo e a abstração.
Está na lógica da abstração reduzir o elemento objetivo ao mínimo, da mesma forma que o realismo só tem a ganhar com a redução do elemento abstrato.
A questão da forma, destarte, é uma questão falsa, porquanto o essencial é que a forma nasça de uma necessidade interior, vale dizer, do conteúdo, e que as formas escolhidas tenham uma ressonância interior, isto é, sejam organizadas com o intuito de expressar esse mesmo conteúdo de maneira eficaz.
Por conseguinte, é boa toda forma que exprima exatamente essa necessidade interior, e cada artista é livre para escolher a forma que lhe permitirá atingir melhor esse objetivo: “Só subsistem as criações autênticas da arte, aquelas que possuem uma alma (conteúdo) em seu corpo (forma).
As necessidades alcançam a maturidade quando chega a sua hora. É então que o espírito criador ( que se pode chamar de espírito abstrato tem acesso à alma), provocando uma aspiração, um impulso íntimo.
Quando as condições necessárias à maturação de uma forma específica estão preenchidas, essa aspiração, esse impulso íntimo recebem o poder de criar no espírito humano um novo valor que começa a viver consciente ou inconscientemente no homem. A partir desse momento, o homem busca conscientemente ou inconscientemente uma forma material para o valor novo que vive nele sob a forma espiritual.
O valor espiritual está a procura de uma materialização.
Eis o elemento positivo, criador. Eis o bem. O raio branco que fecunda. Esse raio branco conduz à evolução, à elevação; por trás da matéria, no seio da matéria que oculta o espírito criador. Poucos homens, em geral, são capazes de discerni-lo. Os olhos dos homens são geralmente incapazes de ver o espírito. É assim que, em nossos dias, muita gente não vê o espírito na religião ou na arte.
Uma mão negra veda-lhe os olhos. Eis o elemento negativo, destruidor. A mão negra que semeia a morte.
A condição exterior, a evolução, o movimento para a frente e para o alto só são possíveis quando o caminho está livre, quando não se ergue nenhuma barreira.
A condição interior, a força que impele o espírito humano para a frente e para o alto quando o caminho está livre é o espírito abstrato ( espírito criador). É preciso, naturalmente, que ele repercuta e possa ser ouvido. O apelo deve ser possível.
Destruir essas duas condições é o meio empregado pela mão negra para se opor à evolução.
Os instrumentos que ela utiliza são o medo do caminho livre, o medo da liberdade e a surdez em relação espírito.
Eis porque os homens consideram com hostilidade qualquer valor novo. Zombam e insultam o valor novo e daquele que instaura esse valor.
A alegria da vida reside no triunfo irresistível e constante do valor novo.
Essa vitória é lenta. E, quando ele se torna indiscutível aos olhos de muitos, converte-se esse valor, numa parede erguida contra o futuro.
A metamorfose do valor novo (fruto da liberdade) numa forma petrificada (muro erguido contra a liberdade) é obra da mão negra.
Toda evolução, isto é, o desenvolvimento interior e a civilização exterior, consiste pois em remover as barreiras.
Vê-se assim que, no fundo, não é o valor novo que constitui o elemento capital, mas o espírito que se manifestou em tal valor. E, também a liberdade, condição necessária dessas manifestações.
Daí resulta que o absoluto não deve ser procurado na forma (materialismo).
A forma está invariavelmente ligada ao tempo, ou seja é relativa.
A ressonância é, pois, a alma da forma, que só por ela pode vir à luz, e age do interior para o exterior.
A forma é a expressão exterior do conteúdo interior.
Eis porque não se deve divinizar a forma. Só se deve lutar pela forma na medida em que ela pode ajudar a exprimir a ressonância interior. Eis porque não se deve buscar a salvação numa forma particular.
Como a forma não passa de uma expressão do conteúdo e o conteúdo difere segundo os artistas, segue-se que podem existir na mesma época muitas formas diferentes que são igualmente boas. A necessidade cria a forma. Há nas profundezas peixes que não tem olhos, camaleão muda de cor, etc.
Assim, o espírito de cada artista se reflete na forma. A forma traz o selo da personalidade (do individual).
Ela está sujeita, até certo ponto, ao tempo (época) e ao espaço (povo).
Cada artista tem sua palavra a dizer, tal como cada povo. Tal relação se reflete na forma e constitui o elemento nacional da obra.
Cada época tem sua tarefa, que permite a manifestação de novos valores. O reflexo desse elemento temporal é o que se chama de estilo de uma obra.
A existência desses três elementos (elemento nacional, estilo e personalidade) que marcam uma obra é inevitável. Velar por sua presença é não somente supérfluo como prejudicial, já que a coação, também nesse domínio, só pode resultar numa obra ilusória, pouco duradoura.
Por outro lado, é evidente supérfluo e prejudicial querer tornar preponderante um só desses três elementos.
Como dissemos no começo, o espírito abstrato (criador) se apodera primeiro do espírito de um indivíduo, para dominar em seguida um número sempre crescente de pessoas. Neste momento, certos artistas sofrem o influxo do espírito do tempo, que os impele para formas aparentadas umas às outras e que possuem, por conseguinte, uma semelhança exterior.
Tal momento coincide com o aparecimento do que se denomina um movimento. Este é perfeitamente legítimo e indispensável a um grupo de artistas ( do mesmo modo que uma forma individual é indispensável a um artista).
E, assim como não se deve procurar a salvação na forma de um artista específico, tampouco se deve buscá-la nessa forma coletiva. Uma liberdade total deve reinar; deve-se considerar como boa ( como artística) toda forma que constitui uma expressão exterior do conteúdo interior. Caso contrário, já não é o espírito livre ( o raio branco) que se serve, mas à barreira petrificada (a mão negra).
Assim sendo, de modo geral, não é a forma (matéria), que é elemento essencial, mas o conteúdo (espírito).
A forma pode, pois, produzir um efeito agradável ou desagradável, aparecer como bela ou feia, harmoniosa ou desarmoniosa, hábil ou inábil, requintada ou grosseira, etc. E, não obstante, ela não deve ser aceita ou rejeitada, nem por qualidades consideradas positivas, nem por qualidades tidas como negativas. Todas essas noções são absolutamente relativas.
A própria forma é também relativa. É assim que se pode apreciá-la e concebê-la. Devemos colocar-nos em face de uma obra de modo a permitir que sua forma atue sobre a nossa alma. E, através de sua forma, de seu conteúdo (espírito, ressonância interior). Senão, erige-se o relativo em absoluto.
Quantas pessoas que buscavam a arte não acabaram prisioneiras de uma forma que um artista utilizara para seus próprios fins, quer se trate de Giotto, Rafael ou Van Gogh.
Enfim, é necessário estabelecer este princípio: o essencial não é que a forma seja pessoal, nacional, de belo estilo, que corresponda ou não ao movimento geral da época, que se aparente ou não a um grande número ou a um pequeno número de formas, que seja isolada ou não.
O essencial, na questão da forma, é saber se ela nasceu de uma necessidade interior ou não.
Não se deve fazer da forma um uniforme.
As obras de arte não são soldados.
No mesmo artista, uma só e mesma forma pode ser ora a melhor, ora a pior. No primeiro caso, ela procede da necessidade interior, no segundo, da necessidade exterior: da ambição e da cupidez.
Quanto maior for a época, quanto mais numerosas forem suas aspirações ao espiritual, mais formas ela produzirá e mais se observará nelas correntes que abrangem a época inteira ( movimento animados por grupos), o que é evidente.
Esses caracteres distintivos de uma grande época espiritual ( cuja chegada se profetizou e que manifesta hoje um de seus primeiros estágios), nós os discernimos na arte atual.
São eles:
1) uma grande liberdade, ilimitada aos olhos de alguns;
2) que nos permite ouvir a voz do espírito;
3) que vemos manifestar-se nas coisas com uma força particular;
4) que utilizará gradualmente, e já utiliza, todos os domínios espirituais como seus instrumentos;
5) que, em cada domínio espiritual - portanto também nas artes plásticas
( especialmente na pintura) -, cria numerosos meios de expressão ( formas) individuais ou de grupos;
6) que dispõe atualmente de todo o estoque das coisas existentes, ou seja, utiliza como elemento forma qualquer material, do mais “duro”à abstração bidimensional.
As formas que o espírito retira do estoque dos materiais disponíveis ordenam-se facilmente em torno de dois pólos:
1) a abstração máxima (puramente estético - belo);
2) o realismo máximo ( objetivo).
Esses dois pólos abrem dois caminhos que conduzem finalmente a um único objetivo.
Entre esses dois pólos se situam as inúmeras combinações entre o abstrato e o real em suas variadas harmonias.
Esses dois elementos sempre existiram na arte, devendo um ser designado como “puramente estético”, o outro como “objetivo”. O primeiro exprimi-se no segundo, enquanto o segundo estava a serviço do primeiro. Estava-se diante de uma dosagem variável que buscava aparentemente atingir o cimo do ideal num equilíbrio absoluto.
Hoje em dia, parece que esse ideal já não constitui um fim para nós, que o fiel que sustentava os pratos da balança desapareceu e que os dois pratos têm a intenção de levar uma vida independente. Ao que tudo indica, a arte pôs fim à agradável complementaridade entre o abstrato e o objetivo.
O realismo máximo , que por enquanto só faz despontar, porfia em eliminar do quadro o elemento estético exterior, a fim de expressar o conteúdo da obra pela simples ( inestética) reprodução do objeto em sua singeleza e nudez.
O invólucro exterior do objeto - assim concebido e fixado no quadro -, assim como a concomitante eliminação da importuna beleza convencional, liberam mais seguramente a ressonância interior das coisas. Quando o elemento “estético” se vê reduzido ao mínimo, é precisamente por intermédio desse invólucro que a alma do objeto se manifesta com mais vigor; então, a beleza externa e lisonjeira já não vem desviar dele o espírito.
E isso só é possível porque somos cada vez mais capazes de entender o mundo como ele é, portanto sem acrescentar-lhe qualquer interpretação embelezadora.
O elemento estético reduzido ao mínimo deve ser reconhecido como o mais poderoso elemento abstrato.
A esse realismo opõe-se a abstração máxima, que porfia em eliminar de uma maneira aparentemente total o elemento objetivo (real) e procura traduzir o conteúdo da obra em formas “ imateriais”. Assim concebida e fixada num quadro, a vida abstrata das formas objetivas reduzidas ao mínimo, com a predominância evidente das unidades abstratas, revela o mais seguramente possível a ressonância interior da obra.
Na arte abstrata, o elemento objetivo reduzido ao mínimo deve ser reconhecido como o mais poderoso elemento real.
O realismo reforça a ressonância interior pela eliminação do abstrato, a abstração reforça essa ressonância pela eliminação do real.
Assim, a abstração pura, como o realismo puro, se serve das coisas em sua existência material. A maior negação do objeto e sua maior afirmação são equivalentes. E tal equivalência se justifica pela perseguição do mesmo objetivo: a expressão da mesma ressonância interior.
Vemos pois que, em princípio, não tem importância que o artista recorra a uma forma real ou abstrata, já que elas são equivalentes. A escolha há de ser deixada ao artista, que deve saber melhor que ninguém por qual meio ele é capaz de materializar mais claramente o conteúdo de sua arte. Em termos mais abstratos, podemos dizer que em princípio não existe o problema da forma.
Em termos práticos, o problema da forma se converte numa outra questão: que forma devo utilizar em tal caso para chegar à expressão necessária de meu sentimento interior. A forma que é a melhor num caso pode ser a pior em outro: tudo depende da necessidade interior, que só pode ser proporcionada por uma forma correta. E a forma só pode ter significado para um publico se a necessidade interior a tiver escolhido, sob a pressão do tempo e do lugar, entre outras que lhe são aparentadas. Isso não altera em nada o significado relativo da forma, que pode ser correta num determinado caso e falsa em muitos outros.
Todas as regras que foram descobertas na arte antiga e as que serão mais tarde - regras às quais os historiadores de arte atribuem uma importância exagerada - nada têm de geral: elas não conduzem à arte.
Tais regras, que logo constituirão o “baixo contínuo” da pintura, nada mais são que o conhecimento do efeito interior dos diferentes meios e de sua combinação. Mas nunca existirão regras que permitam, num dado caso, empregar a forma necessária para este ou aquele efeito e combinar os diferentes meios.
Resultado prático: não se deve jamais acreditar num teórico ( historiador da arte, crítico, etc.) quando ele afirma ter descoberto um erro objetivo numa obra.
A única coisa que um teórico tem o direito de afirmar é que ainda não conhecia esta ou aquela aplicação de um meio. Os teóricos que criticam ou elogiam uma obra partindo da análise das formas já existentes são os intermediários mais perniciosos e mais enganadores, porque erigem uma parede entre a obra e aquele que a contempla ingenuamente.
Desse ponto de vista ( não raro infelizmente, o único possível), a crítica de arte é o pior inimigo da arte.
O crítico de arte ideal seria, pois, não aquele que procura descobrir os “erros”, os “defeitos”, as “ignorâncias”, etc., mas aquele que tentasse sentir como esta ou aquela forma age e que, sem seguida, comunicasse ao público aquilo que experimentou.
O problema da forma tem repercussões funestas sobre os artistas por mais uma razão. Servindo-se de formas que lhe são estranhas, homens desprovidos de dons ( isto é, homens a quem nenhum instinto interior impele a serem artistas) criam obras factícias que semeiam a confusão.
Quanto mais o nosso olhar remonta ao passado, menos descobriremos nele obras factícias, mentirosas. Elas desaparecem misteriosamente. Só subsistem as criações autênticas da arte, as que possuem uma alma ( conteúdo) em seu corpo (forma).
A academia bloqueia mais ou menos até mesmo um talento fora de série e poderoso. Quanto aos dons menos brilhantes , perecem a centenas. Um homem medianamente dotado que recebeu uma formação acadêmica pode caracterizar-se como um indivíduo que assimilou a prática mas se tornou surdo à ressonância interior. Confeccionará desenhos corretos, mas sem vida.
Não devemos tender à limitação, mas à libertação. Não devemos rejeitar nada sem um esforço obstinado para descobrir a vida. Mais vale tomar a morte pela vida do que a vida pela morte. Só a liberdade nos permite acolher o futuro.
- Da Compreensão na Arte -
Kandinsky defende o artista profeta inspirado e precursor contra a falsa familiaridade que a “grande massa” com pretensões à “compreensão da arte” tenta criar.
A explicação que o artista dá de seu trabalho pode ser útil, pois as palavras agem sobre o espírito e podem assim despertar na alma “formas capazes de descobrir o que faz a necessidade de uma dada obra”. Ela pode permitir ao leitor associar-se a uma “experiência vivida da obra”.
Mas não deixa de oferecer perigos, porquanto o público tende a deleitar-se rapidamente com as palavras de feição moderna, continuando a não entender nada. Eis porque o artista tanto hesita em explicar-se. O medo endêmico da novidade no público logo engendra um exibicionismo: seja o esnobismo ( “eu também, agora sei”), seja a substituição da realidade viva por uma palavra. Dá-se um nome ao demônio, e tanto basta para exorcizá-lo.
A compreensão da arte é, pois, perniciosa e a explicação não nos pode aproximar-se da obra de arte. Ela só pode ser utilizada no nível da colocação em forma, vale dizer, no momento em que o espírito, para expressar-se pelo meio específico da pintura, escolhe uma certa forma que é a obra de arte. Pode-se criticar ou explicar a forma; o conteúdo permanece inacessível, ou, mais exatamente, só pode se atingido indiretamente.
Kandinsky , parece hesitar ante o racionalismo e o intelectualismo, para os quais se sente atraído e ante seu gosto pela explicação e pelo ensino, por medo de perder a essência da arte, seu valor próprio de vida, de mensagem da “alma “.
Aos poucos, a busca de coerência e a necessidade pedagógica farão cair suas reticências, mas isso nunca se fará em detrimento da origem “espiritual”da criação artística.
Somente haverá explicação fecunda se essa vontade real sublimada pelo amor estiver diante de outra vontade real sublimada pelo amor. Não se deve, pois, abordar a arte coma razão e a inteligência, mas com a alma, com a exigência vivida.
- A Pintura enquanto Arte Pura -
Aqui o autor procura definir claramente a criação artística: a forma da obra de arte é a expressão material do conteúdo abstrato. A beleza é a relação do conteúdo com a forma, ou seja, a relação entre a obra e a emoção que a faz nascer no artista, ou a emoção que ela engendra no espectador.
Porque toda obra nasce de uma emoção que no artista traduz em sentimento. É esse sentimento que o impele a criar. Uma vez criada a obra, isto é, uma vez posta em forma a emoção, fixada num suporte material, ela provoca no espectador um sentimento que lhe permite encontrar o conteúdo da obra, a emoção puramente espiritual.
Emoção - sentimento - obra - sentimento - emoção
A obra é, assim, a forma material exterior que permite a comunicação do conteúdo imaterial, a linguagem de alma para alma que fala de emoção.
Assiste-se, pois, a uma espiritualização da estética. A pintura enquanto arte pura deve servir para a comunicação de espírito para espírito - uma arte pura é uma arte na qual o elemento espiritual se isola do elemento corporal e se desenvolve de maneira independente.
A evolução na pintura passa por 03 períodos :
1) Primeiro período: Origem: desejo prático de fixar o elemento corporal efêmero (finalidade prática).
2) Segundo período: Desenvolvimento: a pintura se separa progressivamente dessa finalidade prática e o elemento espiritual passa a dominar progressivamente ( conteúdo espiritual objetivamente sustentado).
3) Terceiro período: Finalidade: a pintura atinge o estágio mais elevado da arte pura, na qual os vestígios do desejo prático são totalmente eliminados. Ela fala de espírito para espírito numa língua artística, constituindo um domínio de seres pictóricos-espirituais (sujeitos) ( composição - construção).
Na situação atual da pintura, podemos perceber essas três características em combinações diversas e em graus variados. Sob esses aspecto, a característica do segundo período ( desenvolvimento) é determinante.
Primeiro período. Pintura realista ( o realismo sendo entendido aqui tal como se desenvolveu através da tradição até o séc. XIX): preponderância da característica de origem - do desejo prático de fixar o elemento corporal efêmero ( retratos, paisagens, temas históricos no sentido direto).
Segundo período. Pintura naturalista ( sob a forma do impressionista, do neo-impressionismo e do expressionismo, aos quais se ligam parcialmente o cubismo e o fauvismo): eliminação da finalidade prática e preponderância gradual do elemento espiritual.
Terceiro período. A pintura de composição que se desenvolve ante os nossos olhos discernimos de pronto a característica do acesso ao estágio superior da arte pura: os vestígios do desejo prático podem ser completamente eliminados, a pintura pode falar de espírito para espírito numa linguagem puramente artística; ela constitui um domínio de seres pictóricos-espiritualmente (sujeitos).
O esforço de substituir o elemento objetivo pelo elemento construtivo - esforço consciente ou muitas vezes ainda inconsciente, que se manifesta intensamente hoje e se manifestará com intensidade cada vez maior - é o primeiro estágio da arte pura que se anuncia e para o qual as épocas passadas da arte foram fases inevitáveis e lógicas.
Ensina-nos o passado que a evolução da humanidade consiste na espiritualização de numerosos valores. Entre esses valores, a arte ocupa o primeiro lugar.
Entre as artes, a pintura percorre o caminho que vai da finalidade prática à finalidade espiritual. Do objetivo ao compositivo.
- Itinerário pictório rumo a abstração -
Kandinsky evoca o seu itinerário pictórico rumo à abstração. A este propósito ele coloca a “grande questão”: sabemos muito mais o que queremos fazer do que como fazê-lo.
Assim, é preciso determinar qual a parte da intuição e qual a parte da lógica na criação artística. Todos os meios são bons para materializar a emoção do artista, que é uma emoção “espiritual”.
Em Kandinsky, intuição e lógica sempre coexistiram. Ele vê em seu espiritualismo cósmico um fundamento cósmico: “A gênese de uma obra é de caráter cósmico. O criador da obra é portanto o espírito. A obra existe abstratamente antes de sua materialização que a torna acessível aos sentidos humanos.”Por conseguinte, todos os meios são bons para essa materialização necessária, tanto a lógica quanto a intuição. O espírito criador examina esses dois fatores e rejeita o que é falso num e noutro. Ambos os fatores são em si estéreis e desprovidos de vida sem o controle do espírito. Nem a lógica nem a intuição podem criar, na ausência do espírito, obras perfeitamente boas.
Acresce ainda o autor a ideia de um “conflito dramático dos elementos isolados”e introduz uma nova noção, a do trágico, opondo “a grandeza do desenho ao trágico das cores.”
Conta que seu desenvolvimento compreende três fases:
1) O diletantismo da sua infância e de sua juventude, tempo de impulsões indefinidas, quase sempre atormentadas, prenhes de aspirações que lhe permaneciam incompreensíveis.
2) O tempo posterior à escola, durante o qual tais impulsões assumiram gradualmente para ele uma forma mais definida e mais clara. Tentou então exprimi-la por todo tipo de formas exteriores que a natureza exterior lhe oferecia, por objetos.
3) O tempo da utilização consciente do material pictórico, quando tomou consciência de que a forma real era supérflua para ele, quando, gradativamente e penosamente, tornou-se cada vez mais capaz de extrair dele mesmo não apenas o conteúdo, como também a forma que lhe era adequada - tempo, por conseguinte, da passagem à pintura pura, também chamada pintura absoluta e do acesso à forma abstrata que lhe era necessária.
Sabemos o que queremos com muito mais frequência do que descobrimos como realizá-lo. Esse como só é realmente bom sob condição de se ter apresentado de modo espontâneo, quando a mão, numa inspiração feliz, não obedece à razão, mas concretiza por si mesma, não raro contra a razão, aquilo que convém fazer. E só semelhante forma proporciona, além da satisfação, uma alegria que não se compara a nenhuma outra.
- Um novo naturalismo? -
A questão consiste em saber se a arte assiste à ascensão de um novo naturalismo.
Em sua reposta, Kandinsky retoma sua definição da arte abstrata como realismo verdadeiro em oposição ao realismo da natureza (figuração). Os artistas abstratos são pioneiros que realizam “a derradeira separação entre a arte e a natureza.” Vivem no futuro e estão “talvez vários séculos à frente”porque vêem “além das aparências”.
O autor guarda distância em relação à forma ( opósta ao conteúdo). É preciso desconfiar da materialização do sentimento, é preciso desconfiar do primado da forma, pois ele conduz ao fim da arte. É o conteúdo espiritual que deve, segundo ele, engendrar a forma material.
Cumpre não esquecer que os caminhos aparentemente mais opostos convergem para um único objetivo. E que o realismo que se anuncia e do qual o naturalismo hoje questionado constitui, talvez, uma etapa é chamado a aplanar o caminho da arte abstrata, se se considerar o objetivo final.
- Os elementos fundamentais da forma -
Kandinsky fora chamado à Bauhaus em 1921, para dar um curso, mas não era um curso de pintura, ele devia elaborar uma teoria da forma, uma espécie de baixo contínuo da forma.
O estudo da forma em seu conjunto deve dividir-se em duas partes:
1) A forma no sentido restrito do termo - plano e espaço,
2) A forma no sentido amplo do termo - cor e relação com a forma no sentido restrito do termo.
Em ambos os casos, os trabalhos devem levar, seguindo um procedimento metódico, do mais simples ao mais complicado.
- Sobre a cor -
Aqui se trata não somente da utilização da cor na criação pictórica, como também de sua integração “nos objetivos dos diferentes ateliês”.
A cor , como qualquer outro fenômeno, deve ser estudada a partir de pontos de vista diferentes, em diferentes direções e com os meios apropriados.
De um ponto de vista puramente científico, tal estudo pode orientar-se para três domínios: o da física e da química, o da fisiologia e o da psicologia.
Mas, além disso, o artista pode proceder a um estudo teórico da cor, orientando-se em duas direções, que são:
1) o estudo da cor - a natureza da cor
2) o estudo da cor vista sob o ângulo da necessidade prática
Esses dois estudos estão intimamente ligados e o segundo supõe a exigência do primeiro. O método utilizado para essas pesquisas deve ser analítico e sintético.
- Ontem, hoje, amanhã -
Kandinsky definiu de maneira concisa as direções de pesquisa da arte, num vocabulário em que se sentem os esforços de clareza e de coerência que lhe eram peculiares na época da Bauhaus.
Traça verdadeiro quadro da dinâmica da criação a partir de dois pares de movimentos evolutivos opostos. No nível dos meios, distingue-se o movimento analítico, que consiste em isolar os diferentes materiais - essencialmente as cores e as formas - e o movimento sintético, que aborda o problema da combinação harmônica desses meios: a composição pictórica. No nível da demanda, opõem-se o movimento materialista, “que atinge aparentemente suas últimas consequências”, e o movimento espiritual, destinado a substituí-lo.
Um terceiro par se acrescenta aos anteriores, unindo o procedimento lógico, ligado ao problema da materialização do conteúdo, e o procedimento intuitivo, ligado ao próprio conteúdo.
Mas todas essas oposições convergem, e tal convergência constitui a riqueza da criação artística, que se fortifica graças à dinâmica das mesmas.
- Por que Concreto? -
Para Kandinsky, é a pintura tradicional que é abstrata, já que extrai ( portanto abstrai) o Belo encarnado de maneira visível na natureza. A pintura não-figurativa, esta sim, é concreta e não abstrata, visto que cria um objeto e, por conseguinte, o Belo não é, nela, abstraído da natureza, mas produzido diretamente por meios que lhe são próprios. A pintura não-figurativa é tão concreta e tão objetiva quanto o Belo encarnado na natureza.
Em 1910 sua famosa aquarela “não-figurativa”, Kandinsky inaugurou um gênero pictórico que não existia antes dele, mas que se propagou largamente em seguida.
Pode-se, pois, chamar de abstrata toda a pintura que precedeu a arte pictórica inaugurada por Kandinsky. Mas pode-se também chamá-la de subjetiva.
Com efeito, só um sujeito pode “fazer abstração “ de certos elementos de um objeto. Assim, ao re-produzir a beleza abstraída de uma árvore, o artista desenha ou pinta não essa árvore, nem sequer sua beleza, mas a beleza da impressão subjetiva que ele tem desta. A pintura anterior a Kandinsky era, portanto, subjetiva na medida em que era abstrata, e o era necessariamente pelo simples fato de ser “figurativa”.
No entanto, se a pintura do gênero figurativo é inevitavelmente abstrata e subjetiva, os graus de abstração e subjetividade podem variar de um quadro para outro, o que permite distinguir nesse gênero de pinturas quatro espécies de pinturas quanto espécies principais.
Na espécie de pintura expressionista, o caráter subjetivo da pintura do gênero “figurativo”é levado ao extremo, enquanto, por isso mesmo, a abstração própria desse gênero se vê reduzida ao mínimo. Porque o artista expressionista quer re-produzir não o objeto e nem mesmo a impressão que tal objeto produz nele, mas unicamente a atitude que ele assume em relação ao objeto.
Na pintura impressionista , o elemento subjetivo é menos pronunciado do que na espécie precedente, enquanto a abstração é mais acentuada. Essa pintura é subjetivista no sentido de que o artista re-produz consciente e voluntariamente não o objeto, mas a impressão por ele causada. Todavia, o que importa agora é, não a impressão produzida no pintor, mas a impressão produzida pelo objeto.
Na realista, o artista não quer reproduzir nem a sua atitude em relação a um objeto, nem a impressão produzida nele por esse objeto, mas o próprio objeto.
Na simbólica, é o caso, por exemplo, das pinturas ditas “primitivas”, nas quais um máximo de abstração se acompanha de um mínimo de subjetividade. Com isso o grau de abstração é levado ao extremo, visto que o artista se limita a reproduzir o que há de mais essencial no objeto, omitindo o resto.
Também temos espécies intermediárias ou híbridas, assim, a pintura figurativa contemporânea, a de Picasso, por exemplo, apresenta-se frequentemente como uma espécie de expressionismo simbólico ou de simbolismo expressionista.
Quanto à pintura não-figurativa inaugurada por Kandinsky, ela é concreta e objetiva, essa pintura se opõe ao gênero da pintura abstrata e subjetiva.
A arte pictórica de Kandinsky é concreta, e não abstrata, porque se produz sem re-produzir o que quer que seja. Nada re-produzindo, o artista não tem mais nada de que poderia fazer abstração. Não sendo extraída de nenhum objeto não -pictórico, a beleza produzida pela pintura não-figurativa não é uma beleza abstrata. Essa beleza nada mais é que a beleza do quadro que a encarna, e esse quadro a encarna, portanto, tal como ela é, sem nada suprimir-lhe. A beleza encarnada em e por uma pintura não-figurativa é tão concreta quanto a beleza que se encarna pela e na natureza e é, por conseguinte, tão objetiva quanto esta última.
Referência:
Kandinsky, Wassily, Do Espiritual na Arte e na Pintura em particular, tradução Álvaro Cabral e Antônio de Pádua Danesi, Ed. Martins Fontes.