DELEUZE E A
COMPLEXIDADE DOS ENCONTROS
Resumo:
Este
artigo tem como objetivo abordar a Complexidade dos Encontros para Gilles
Deleuze. Primeiro fala-se sucintamente sobre o pensamento e obra de Deleuze. Em
seguida passa-se ao tema Complexidade dos Encontros, abordando a experiência
dos encontros, sentir e pensar nos encontros e de outro modo e a intensificação
nos encontros.
INTRODUÇÃO
Na filosofia
contemporânea, Gilles Deleuze ocupa lugar insólito, pois está na periferia das
grandes correntes de pensamento como o marxismo, a psicanálise ou mesmo o “estruturalismo”. Difícil é atribuir-lhe
um lugar na história recente do pensamento, pois como ele mesmo afirmava está
“fora” e “ entre”, um nômade. Foi ele um dos primeiros que na França dos anos
60 sentiram a necessidade de um pensamento resolutamente anti-hegeliano e
também o primeiro, ao lado de Michel Foucault, a pressentir seus encontros.
Podemos dividir em três
períodos a obra de Gilles Deleuze. O primeiro é composto por uma série de
monografias; vai de 1953 ( Empirismo e Subjetividade) a 1968 ( Espinosa ou o
Problema da Expressão). Deleuze não fala ainda em seu próprio nome, mas
trabalha a partir de filósofos que lhe parecem exceder sob todos os aspectos a
história da filosofia: Hume, Bergson, Nietzsche e mesmo Kant. Em 1969, tem
início para ele um novo período com a publicação, quase simultânea, de
Diferença e Repetição e Lógica do Sentido. Se o primeiro ainda dissimula por
trás de um rigor clássico um conteúdo que já não o é, o segundo, ao contrário,
composto em 31 séries, extrapola em muitos os cânones universitários vigentes
na época, com seu interesse pelas meninas e pelos esquizofrênicos, com a
reflexão profunda sobre a linguagem e a literatura. Autores como Klossowski,
Gombrowicz, Lewis Carrol e mesmo James Joyce são abordados, não mais como
exemplos a sustentarem o discurso do filósofo, mas por si mesmos. No entanto, a
grande ruptura situa-se em 1972, com Anti-Édipo, que dá início a outro período,
marcado pela colaboração do psicanalista Félix Guattari. A partir de então, seus livros pretendem ser máquinas cujos
únicos critérios são: como funciona, para que serve e a quem? O que equivale a
dizer que o problema não é mais a circulação do sentido, mas sim aquilo que
Deleuze chama de efetuação prática do múltiplo: não mais falar do múltiplo, mas
fazê-lo.
A
COMPLEXIDADE DOS ENCONTROS
Deleuze em seus
escritos, entrevistas e aulas consolidou conceitualmente uma determinada
filosofia da experiência: a experiência da complexidade dos encontros.
Do
abstrato ponto de vista dos “ismos”, essa filosofia não se define como um
“empirismo” vulgar e nem como um “dogmatismo”, pois ela quer evitar tanto o
“erro” empirista de “deixar exterior o separado” quanto o erro dogmático de
“sempre preencher o que separa”. O que ela quer assinalar é “o ponto “crítico”
em que a diferença, como diferença, exerce a função de reunir”. É no sentido de
um diferencial capaz de reunir heterogêneos que ela se define como “empirista
transcendental”. Se acharmos que uma tal filosofia complica as coisas, ela nos
responderá que a complicação já está nos próprios encontros. Em nossos estados
de vivência comum, nesses estados de não filosofia, sentimos que uma admiração,
um espanto ou um susto em face de algo é uma experiência complexa que nos lança
para dimensões não contidas nesse algo, mas que nele insistem. ( Orlandi Luiz
B.L., Deleuze - Os Filósofos Clássicos da Filosofia, editora Vozes, Rossano
Pecoraro (org) vol.III.)
Para Deleuze todo
encontro ordinário está exposto a uma reviravolta instantânea que pode projetar
tudo para fora dos eixos. É como se a própria vida se sentisse abalada por esse
vinco em que uma experiência ordinária é dobrada junto a outra, a
extraordinária. A efetiva complexidade da experiência dos encontros depende do
que se passa nessa dobra. Cada um sente e exprime a seu modo essa ocorrência
simultânea de linhas divergentes, a estranha dobradura na qual os juntados
experimentam seu próprio vínculo como sendo aquilo que os lança num tempo fora
dos eixos.
Pensar conceitualmente
os encontros exige dedicação aos próprios encontros conceituais. Sem essa
dedicação não se entra em filosofia alguma.
Ao lado da arte e da ciência,para Deleuze e
Guattari, o pensamento filosófico é uma das “três grandes formas” ou “vias” de
pensar. Sem hierarquia, elas são basicamente definidas pela comum tarefa de
“enfrentar o caos”. Mas cada uma erige seu próprio e distinto plano de
exercício do seu modo de pensar. Enquanto a arte pensa “por sensações”,
traçando um “plano de composição”, enquanto a ciência pensa “por funções”,
traçando um “plano de coordenadas”, a filosofia, ao enfrentar a caótica dos
encontros, traça um “plano de imanência” que se erige à medida que ela “pensa por
conceitos”. O aprendizado filosófico da complexidade da experiência nos expõe a
uma dupla impregnação: a da própria caótica dos encontros seja lá com o que for
e a do vai e vem vertiginoso, que os conceitos exibem nos variados encontros
mútuos a que são levados por problemas a que têm de corresponder.
Esses
problemas não são verborragias, como os tais eternos problemas da filosofia,
que seriam sanáveis por uma higienização da linguagem. São problemas que ganham
sua objetiva verdade numa prática dos encontros. Deleuze entende que os
conceitos ganham sentido por corresponderem dinamicamente a problemas que lhes
transferem uma força de autoposição, de modo que eles, irredutíveis à
arbitrariedade subjetiva ou ao simples engajamento discursivo do filósofo,
implicam um modo de invenção sensível ao caráter problemático dos encontros.
Para Deleuze, esse caráter efetivamente problemático está numa relação de
imanência com a circunstancialidade dos encontros e já se insinua na ideia de
que os encontros constitutivos do próprio sujeito implicam “relações
exteriores” aos termos relacionados. Deleuze deixa ver que a própria “voz” incide
na “dinâmica” dos encontros conceituais:
“
a filosofia é a arte de inventar os próprios conceitos, de criar novos
conceitos dos quais temos necessidade para pensar nosso mundo e nossa vida.
Deste ponto de vista, os conceitos têm velocidades e lentidões, movimentos,
dinâmicas que se estendem ou se contraem através do texto: eles não remetem a personagens,
mas são eles próprios personagens, personagens rítmicos. Eles se completam ou
se separam, confrontam-se, estreitam-se como lutadores ou como apaixonados”. (
Orlandi Luiz B.L., Deleuze - Os Filósofos Clássicos da Filosofia, editora
Vozes, Rossano Pecoraro (org) vol.III.)
Para Deleuze o encontro
não é só importante para acordar a gente, para nos fazer sentir nossa situação
de outro modo, pois ele também ocorre na experiência de outros verbos do viver,
como imaginar, memorar, falar…e também pensar, neste há interesse
particularmente, pois o próprio encontro com o pensamento de um filósofo acaba
nos dando o que pensar, acaba nos forçando a pensar a própria diferença que o
atrai e que nos contamina.
Deleuze contraria uma
tradição que, segundo ele, erigiu uma imagem dita “dogmática” do que significa
pensar. Como “forma da representação”, essa imagem simplifica o problema: algo
impressiona nossos sentidos, nossa percepção o apreende, e nosso pensar o
representa a partir do esforço voluntário, do “exercício natural de uma
faculdade”; essa faculdade de pensar estaria por si mesma, desde o seu íntimo,
dotada de uma “afinidade com o verdadeiro”, de modo que o pensador, enquanto
tal, se caracterizaria por uma “boa
vontade”, assim como seu pensamento se caracterizaria por uma “natureza reta”,
atribuindo-se erros e desacertos a paixões, a uma falta de método, etc.
Trata-se de subverter essa forma, essa imagem representativa ou recognitiva que
escamoteia o que efetivamente se passa quando sou levado a sentir, a pensar,
etc. E como Deleuze faz isso? Ele o faz,
chamando a atenção para a própria experiência de encontros que, disparando a
sensibilidade, disparam o pensar. Ele dizia que
o pensamento nada é sem algo que force a
pensar, que faça violência ao pensamento.
Contudo, isto não quer
dizer que, no encontro, não haja consciência do algo encontrado: pode ser
fulano que reconheço pelo semblante ou pela voz, pode ser determinada favela,
que reconheço por ter vivido em seu labirinto, etc. Do mesmo modo, no encontro,
aquele que percebe esse algo tem consciência de o estar apreendendo com alegria
ou dor. Porém, se o encontro ficasse apenas nisso, nesse nível da consciência
de algo e na consciência dos sentimentos pessoais, então não se poderia,
rigorosamente, chamá-lo de “fundamental”, do ponto de vista da problemática em
questão. Um encontro desse tipo, isto é, nesse nível, é não só inevitável como
necessário, útil, etc. do ponto de vista da sobrevivência, dos passeios, da
vida em geral. Ele está presente em qualquer circunstância e funciona na comum
apreensão das situações. São encontros extensivos.
Porém, como o plano de
organização dos encontros extensivos não esgota a problemática dos encontros,
pergunta-se o que ocorre nos encontros que Deleuze considera fundamentais,
encontros que põem em jogo uma outra experiência de exercício das faculdades de
sentir, de memorar, de imaginar, de pensar, etc.?
Para Deleuze num
encontro dito “fundamental” o que se passa é um processo complexo. Um encontro
fundamental comporta as séries das diferenças extensivas que, num encontro
marcadamente extensivo, são aparentemente as únicas; vale dizer: nunca estamos
totalmente livres do “senso comum”. De repente, porém, a intensidade do
encontro fissura a linha do sentir, escapa das ligações recognitivas comandadas
pelo senso comum, com o que a linha do pensar é também fissurada, pondo em
nocaute o voluntarismo e a boa vontade do pensador. Forçando a perguntar pelo
que se passa nesse estranho instante.
Entende Deleuze que a
filosofia é um modo de pensar por conceitos, mas o pensamento não seria
suficiente, por si, para chegar à necessidade do que é pensado ou à própria
necessidade de pensar. O que é preciso ocorrer para que haja essa dupla
necessidade? Eis como Deleuze encaminha
a resposta numa frase que escancara sua filosofia à intromissão do fora, isto
é, ao acaso do encontro:
“não
contemos com o pensamento para assentar a necessidade relativa do que ele
pensa; contemos, ao contrário, com a contingência de um encontro com aquilo que
força a pensar, a fim de realçar e erigir a necessidade absoluta de um ato de
pensar, de uma paixão de pensar”.
É o cuidado com essa
abertura aos encontros que justifica o combate pela “destruição da imagem de um pensamento que pressupõe a si
próprio” e que se julga capaz de fixar um fundamento das coisas. E uma outra
afirmação acrescenta mais um ponto nesse combate:
“há no mundo alguma coisa que força a pensar.
Este algo é o objeto de um encontro fundamental e não de uma recognição”.
Deleuze dá o nome de
“signo” a esse estranho objeto de um encontro fundamental. Esse objeto, o
signo, é estranho por uma razão aparentemente simples, mas que mostra a
preocupação nietzscheana de Deleuze de colocar seus conceitos a serviço do
caso: então, se algo não suscitar alguma estranheza na própria experiência de
encontrá-lo, já não posso conceituá-lo como signo. Quando a estranheza de algo
me pega, sinto sem esoterismo a fragilidade desse poder de sujeitar e de fazer
de cada coisa um diverso no meio de outros, ou de tomá-la como parte de um
funcionamento extensivo qualquer, etc. Então, ela me pega como signo,
provocando variações em meu poder de ser afetado, forçando-me a sentir, a
memorar, a imaginar… a pensar de outro modo, quer dizer, sem o apoio dos dispositivos
de simplificação dos meus encontros, dispositivos de fixação de identidades, de
semelhanças, de oposições e de analogias.
O próprio encontro é
pensado como relação complexa, na reconstrução conceitual deleuziana, uma
relação que comporta linhas heterogêneas.
Conforme
o que se passa nessas linhas, o próprio encontro varia: é marcado como
extensivo, quando as diferenças empíricas são dadas a afecções e percepções que
o pensamento representa por meio de categorias sobrepostas; mas ele pode ser
marcado como encontro intensivo, quando “fluxos de intensidades” passam pelas
linhas. Experimentados como vibrações de “corpos sem órgãos”, esses fluxos abre
afectos e perceptos, isto é, outros modos de sentir e perceber, e disparam no
próprio pensar um “pensamento por demais intenso”, lançado num “trabalho
rizomático”em meio a “ percepção de coisas, de desejos”, em meio a “percepções
moleculares”, “microfenômenos”, “micro-operações”… um “mundo de velocidade e de
lentidões sem forma, sem sujeito, sem rosto”, mobilizado pelo “ziguezague de uma linha”ou pela “correia do
chicote de um carroceiro em fúria”.( Orlandi Luiz B. L., Deleuze - Os Filósofos
Clássicos da Filosofia, editora Vozes, Rossano Pecoraro (org) vol.III.)
Referências:
1)Abbagnano Nicola,
Dicionário de Filosofia, editora Martins Fontes – 2012;
2) Lechte John, 50
Pensadores Contemporâneos Essenciais do Estruturalismo à Pós-Modernidade,
tradução Fábio Fernandes, editora Difel ;
3) Huisman Denis,
Dicionário dos Filósofos, editora Martins Fontes – 2004;
4) Orlandi Luiz B.L.,
Deleuze, Os Filósofos Clássicos da Filosofia, vol. III, editora Vozes, 2ª
edição- 2009 Pecoraro Rossano (org.);
5) Huisman Denis, Dicionário
de Obras Filosóficas, editora Martins Fontes, São Paulo, 2012, trad. Ivone
Castilho Benetti;