sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

PARTE III - Aristóteles e a escravidão.

ARISTÓTELES E A ESCRAVIDÃO NATURAL
    (por ÂNDREA CRISTINA PIMENTEL PALAZZOLO)

RESUMO
Este artigo pretende finalizar o Livro I da Política de Aristóteles abordando  a intrigante defesa da escravidão  natural pelo filósofo estagirita, veremos a seguir quais os argumentos que ele utiliza-se para defender o escravo "por natureza.

Neste ponto, devemos aprofundar a intrigante afirmação do escravo por natureza. Sabe-se que Aristóteles afirma a escravidão por natureza. Deve-se esclarecer que, as sociedades da Antiguidade clássica eram escravagista. Nelas, uma parcela da população podia estarprivada de todo direito. Os escravos, cujas funções sociais foram variáveis, eram juridicamente excluídos da Politeia, e seu modo de vida dependeu inteiramente de seu senhor. 
Aristóteles apresenta a relação senhor/escravo como uma das três constituintes da família. Seu estudo tem um objetivo prático, determinar seu papel na satisfação das necessidades familiares e teóricas, esclarecer o debate sobre a legitimidade da escravidão.
Segundo Peter Phillips[1] Simpson, a discussão de Aristóteles acerca da escravidão encontra-se nos capítulos 4 ao 7 do Livro Política. O tema é introduzido por algumas observações no final do capítulo 3 (1253 b 15-23). Neste capítulo, Aristóteles diz que o objetivo da sua discussão tem um duplo caráter: primeiro, quanto ao uso de escravos, recuperando as afirmações do capítulo 2 (1252a31) de que o escravo é necessário por questões de preservação. Segundo, adquirir uma melhor compreensão do que as concepções correntes, relembra, assim, suas afirmações nos capítulos 1 e 2 (1252a7-9, 30-34) de que a escravidão ocorre por natureza, e saber como comandar escravos difere do saber relativo a outros tipos de comando, pois as concepções então correntes negam ambas as afirmações. O capítulo 4, trata do uso dos escravos ou a sua serventia, e os capítulos 5 a 7 o de adquirir uma compreensão melhor do que as concepções correntes. O conteúdo dos capítulos 5 e 6 mostram que a escravidão ocorre por natureza, sendo que o capítulo 5 discute diretamente que a escravidão é natural, e o capítulo 6 aborda os contra-argumentos. E o capítulo 7 trata a dominação como uma espécie distinta de comando.
Vejamos o que Aristóteles diz no parágrafo (1253b15-23) do capítulo 3:

Em primeiro lugar tratemos do senhor e do escravo, a fim de indagar as necessidade indispensáveis da existência e, simultaneamente, saber se podemos alcançar sobre tal relação um conhecimento mais exato do que é corrente. Alguns supõem que o ofício de senhor é uma ciência e que o governo da casa, do senhor, do político, e do rei são o mesmo, conforme dissemos no início; outros supõem que ser senhor é contrário à natureza porque é convenção que torna um homem escravo e outro livre; como, segundo a natureza, em nada diferem, esta diferença é injusta na medida em que resulta da força (I, 3, 1253 b 15-23).[2]

Giuseppe Tosi[3] comentando o parágrafo observa que, os críticos da escravidão afirmam que ela não é a condição dos homens, mas que é contrária à natureza porque todos os homens são livres por natureza, e a escravidão, como instituição, foi introduzida em virtude da lei do mais forte e não encontra justificação se não na pura violência, que não pode ser fundamento do justo. É preciso, portanto, encontrar uma justificação racionalda escravidão que não se fundamente só no uso da força. Desta exigência nasce a famosa distinção entre escravo por lei e por natureza.
Será[4] justamente para responder a objeção de quem não considera justo nem possível fundar o direito sobre a mera força, ou seja, da escravidão em virtude da lei do mais forte, que Aristóteles introduz a distinção entre escravo por lei e por natureza: somente demonstrando a naturalidade da escravidão, pode-se justificá-la e ir além do mero uso da força. A escravidão legal será justa somente no caso em que escravos por lei e por natureza coincidam, de outra forma pode acontecer que pessoas consideradas nobilíssimas (eugenestatoi) sejam escravas e filhas de escravos, caso sejam feitas prisioneiras e vendidas"[5].
 Lendo os capítulos que tratam da escravidão, podemos encontrar quatro distintas definições de escravo por natureza[6]:

1)       Como objeto de propriedade e instrumento de produção.
2)       Alguns, desde o nascimento, são destinados a comandar, outros a serem comandados".
3)       Aqueles que diferem entre si como a alma do corpo e o homem do animal.
4)       Quem pode perceber, mas não possuir a razão.

1)       Objeto de propriedade e instrumento de produção.

Aristóteles inicia, como costuma fazer, por uma observação da realidade da escravidão assim como era vivenciada no seu tempo e, apresenta as primeiras duas características que definem o escravo: ele é um objeto de propriedade do senhor e um instrumento, ainda que sui generis:
Entre os instrumentos (organza) alguns são inanimados (ápsucha), outros animados (émpsucha): por exemplo, para o capitão do navio o timão é inanimado, o marinheiro vigilante da proa das naus é animado (pois nas artes o subordinado uperétes – é uma espécie de instrumento). Da mesma maneira cada objeto de propriedade (ktema) é um instrumento para a vida (órganon pros zoén) e a propriedade (ktésis) é um conjunto de instrumentos. Também o escravo é um objeto de propriedade animado (doutos ktéma ti émpsuchon) e cada subordinado (uperétes) é como um instrumento que tem precedência sobre os outros instrumentos [...] Portanto, os instrumentos são instrumentos de produção (órgana poietiká), enquanto um objeto de propriedade (ktema), ao contrário, é um instrumento de ação ( órganon praktikón): assim de uma lançadeira obtemos algo mais do que seu simples uso, mas uma roupa ou uma cama são apenas utilizadas [...] Ora, a vida é ação e não produção (bios práxis ou póiesis esti), por isso, o escravo é um subordinado na ordem dos instrumentos de ação ( ho doulos  uperétes ton prós práxis).[7]

A primeira definição do escravo é de ser um objeto de propriedadeo que constitui a característica permanente e principal da escravidão antiga (e moderna).[8] Enquanto objeto de propriedade, ele pertence" ao patrão no sentido literal do termo, isto é, constitui uma parte sua.
Ao mesmo tempo, Aristóteles define o escravo como instrumento animado (óganon émpsuchon) e instrumento de ação (órganon praktikón) e não como instrumento de produção (órganon poietikón). Os escravos constituem, assim, os instrumentos animados que permitem ao senhor e dono a sua plena realização humana através da práxis, e, por isso, são colocados entre os instrumentos de ação.
Parece evidente que, para Aristóteles o escravo é ao mesmo tempo uma propriedade e um instrumento "animado", como afirma nesta definição de escravo que nos fornece:
Um ser que, por natureza, não pertence a si mesmo, mas a um outro, mesmo sendo homem (ánthropos on), este é, por natureza, um escravo. Pertence a um outro que, mesmo sendo homem, é objeto de propriedade e instrumento ordenado à ação (órganon praktikón) e separado[9].

2 Alguns, desde o nascimento, são destinados a comandar, outros a serem comandados"

Giuseppe Tosi[10] comenta que, Aristóteles recorre a uma analogia entre a estrutura do organismo social e as estruturas dos seres vivos para enunciar um princípio geral em todos os seres vivos de tipo complexo deve haver um dominante e um dominado. Sem essa relação não seria possível a unidade do todo, que é o que permite a existência das partes: essa é a justificação da naturalidade das relações de domínio entre os homens. Trata-se  de uma consideração de valor universal sobre a ordem hierárquica natural que governa todos os seres vivos, animados:
 Em todas as coisas que resultam de uma pluralidade de partes e que formam uma única entidade comum, seja as partes contínuas ou separadas, sempre se verá o dominante e o dominado (to árchon kai to archómenon). Isto acontece nas criaturas animadas em virtude da ordem da natureza em sua totalidade. [...] O vivente, de qualquer maneira, é composto de alma e corpo, e a primeira, por natureza, comanda e o segundo é comandado (to árchon kai to archómenon).[11]
Aristóteles vai precisando melhor a sua definição entre quem é por natureza escravo e, portanto, destinado a obedecer e quem é por natureza livre e, portanto, destinado a comandar. Nesse ponto Aristóteles é categórico e explícito:Comandar e ser comandado (árchein kai árchesthaí) estão entre as condições não somente necessárias, mas também convenientes; e certos seres, desde o nascimento (ek genetés), são diferenciados (diésteke), para serem comandados, ou para comandarem.[12]

3 Aqueles que diferem entre si como a alma do corpo e o homem do animal

A relação senhor/escravo é considerada análoga à relação alma/corpo, em que cabe à alma governar o corpo com a autoridade despótica e à relação homem/animal, em que cabe ao homem governar o animal:[13]

Aqueles que diferem entre si como a alma do corpo e o homem do animal (e estão nesta condição aqueles cuja atividade se reduz à utilização das forças físicas sendo esse o máximo proveito que se pode tirar deles) são escravos por natureza e o melhor para eles (hois béltión estin) é se submeterem a esta forma de autoridade, como nos casos citados.(Pol., I, 5, 1254b 15-20)

 Aristóteles compara a aquisição de escravos a uma caça, análoga àquela praticada contra os animais selvagens[14]:

A arte de adquirir escravos é diferente de ambas as ciências, e é como uma forma de arte da guerra ou da caça [...] Por isso, também a arte da guerra será, por natureza, e num certo sentido, arte de aquisição (e, com efeito a arte da caça constitui uma sua parte) e ela deve ser praticada contra as feras selvagens (tería) e contra aqueles homens que, nascido para obedecer, se recusarem a isso, e esta guerra é, por natureza, justa (os phúsei díkaion touton conta tón polemón). (Pol., I, 8, 1256b 3-26.)

Essas afirmações e analogias parecem admitir a existência de diferenças substânciais entre escravos e livres, como a alma do corpo.
4 Quem pode perceber, mas não possuir a razão.
Aristóteles utiliza analogia, entre a parte racional (nous) e a parte desiderativa (orexis) da alma[15]. Afirma que:

Com efeito, é escravo por natureza quem pode pertencer a um outro (o dunámenos  alou eivai) (e de fato lhe pertence) e quem participa da razão na medida em que pode percebê-la (aisthanesthai) mas não possuí-la (echein): os outros animais não são sujeitos à razão, mas às impressões. Porém, quanto à utilidade, a diferença é mínima: escravos e animais domésticos prestam ajuda com seu corpo (sómati) para as necessidades da vida. (Pol. I, 5, 1254 b 20-24).

Aqui não se constata somente que o escravo por natureza pertence a um outro, mas que pode, no sentido de que é apto a pertencer a um outro e é naturalmente incapaz de cuidar de si mesmo. Além disso, Aristóteles afirma que esse ser difere dos animais porque tem a capacidade de perceber a razão e de entender o comando, mas não de utilizar ele próprio a razão e o comando.

Amizade
Aristóteles näo enfrenta explicitamente a questão da humanidadedos escravos, mas nos deixa algumas observações importantes quando afirma a possibilidade que entre senhor e escravo exista algum tipo de amizade. Aristóteles sintetiza a discussão sobre escravidão em toda a sua ambiguidade[16]:

Com efeito, todas as coisas recebem os cuidados daqueles que as usam, mas não pode haver amizade nem justiça para com os objetos inanimados. E não pode se ter amizade por um cavalo ou um boi, nem por um escravo enquanto escravo (prós doulon é doulos), porque não há nada em comum. Pois, o escravo é um instrumento animado e o instrumento é um escravo inanimado. Enquanto escravo, portanto, não pode haver amizade com ele, mas enquanto homem sim (e anthropos): parece pois que existe algo de justo para cada homem (ti díkaion panei anthropō) em favor de todos aqueles que tem em comum a capacidade (dunámenon koinonésai) de lei e de contrato; portanto, pode haver amizade ( com o escravo) na medida em que é homem (óson anthropos).[17]

O escravo por natureza é comparado a um objeto, a um instrumento, a uma coisa ou aos animais domésticos como o boi e o cavalo. Enquanto tal, poder-se ia tomar conta dele e cuidar dele, mas não ter amizade por ele. Ao mesmo tempo, se afirma que, enquanto homem, é possível um certo tipo de amizade, porque há um justo para cada homem com o qual pode-se ter em comum uma lei e um contrato.

 Homens livres e escravos

Ao que tudo indica, para Aristóteles, podem ser escravos naturais somente os bárbaros, mas não os gregos. Com efeito, nem todos os escravos por leimerecem ser tais; isso acontece quando uma guerra não é justa ou quando a natureza dos prisioneiros não o consente[18]. Entre os que merecem ser escravos como prisioneiros de uma guerra justa estão certamente os bárbaros, mas não os gregos, porque “é necessário afirmar que alguns são escravos em qualquer lugar, outros em nenhum. O mesmo princípio vale também para a nobreza: os Gregos acreditam que são nobres não somente em pátria mas em todo lugar, e que os bárbaros o são somente em pátria, supondo que exista uma nobreza e uma liberdade absoluta e uma outra que não é absoluta, como afirma Helena: Porém eu, que descendo de divinos genitores/quem jamais ousaria me chamar de serva?[19]
Percebemos assim que, a ideia de uma igualdade natural entre todos os homens não havia se tornado um preceito comum. Aristóteles representa, naquele momento histórico, as concepções de uma formação histórico-social que estava entrando em decadência: a polis grega. Com a conquista de Alexandre Magno abrem-se novos horizontes inesperados e inimagináveis que atenuam as barreiras tradicionais entre gregos e bárbaros e ampliam os horizontes culturais que levam da polis à cosmópolis helenística e romana.
O estoicismo e o cristianismo, afirmarão a existência de uma lei natural igual para todos os homens,[20] pregando o cosmopolitismo em nome de uma philia ou fraternidade universal, sem distinções entre judeu e grego, circunciso e não circunciso, bárbaro e cita, escravo e livre.[21] Por isso, a doutrina da escravidão natural perderá grande parte da sua aceitação; o que não significa a queda ou decadência da escravidão como instituição. Simplesmente mudaram as teorias que a justificavam.
Durante longos séculos, a doutrina não teve grande influência histórica, mesmo depois da redescoberta da Política no século XIII.[22] Ela assumirá um papel importante somente no século XVI, no debate sobre o Novo Mundo, tornando-se o eixo central da justificação do domínio das potências ibéricas sobre os novos povos descobertos: Juan Ginés de Sepúlveda, tradutor de Aristóteles a aplicará quase que literalmente aos índios, Bartolomé de Las Casas, defensor dos índios, a rechaçará com veemência. Mas esse é um outro capítulo da rica história do aristotelismo político que, certamente, merece uma discussão à parte[23].












REFERÊNCIAS


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REFERÊNCIAS NORMATIVAS (ABNT)

ABNT NBR 6027:2012 – Informação e documentação – Informação e documentação – Sumário Apresentação

ABNT NBR 14724:2011 – Informação e documentação – trabalhos acadêmicos apresentação

ABNT NBR 15287:2011 – Informação e documentação – Projetos de pesquisa apresentação

ABNT NBR 6034:2005 – Informação e documentação – Índice – Apresentação

ABNT NBR 12225:2004 – Informação e documentação – Lombada – Apresentação

ABNT NBR 6024:2003 – Informação e documentação – Numeração progressiva das seções de um documento escrito Apresentação

ABNT NBR 6028:2003 – Informação e documentação – Resumo Apresentação

ABNT NBR 10520:2002 – Informação e documentação – citações em documentos Apresentação

ABNT NBR 6023:2002 – Informação e documentação – Referências Elaboração



[1] SIMPSON, Peter Phillips. Defesa defensável da escravidão em Aristóteles. Revista Hypnos, ano 6, nº7, São Paulo, 2ºsem.2001, p.70-71.
[2] ARISTÓTELES. Política. 1.ed. em português feita a partir do grego. Lisboa: Vega, Gabinete de Edições, 1998, p.57-59.
[3] TOSI, Giuseppe. Aristóteles e a escravidão natural. Boletim do CPA, Campinas, n°15, jan.-jun.2003, p.74.
[4] TOSI, Giuseppe. Aristóteles e a escravidão natural. Boletim do CPA, Campinas, n°15, jan.-jun.2003, p.75.
[5] TOSI, Giuseppe. Aristóteles e a escravidão natural. Boletim do CPA, Campinas, n°15, jan.-jun.2003.
[6] TOSI, Giuseppe. Aristóteles e a escravidão natural. Boletim do CPA, Campinas, n°15, jan.-jun.2003, p.76.
[7] Pol.,I,4,1253b27-1254a8.
[8] GARNSEY, Ideas of slavery,cit.,p.1.
[9] Pol., I, 5, 125,a 14-18.
[10] TOSI, Giuseppe. Aristóteles e a escravidão natural. Boletim do CPA, Campinas, n°15, jan.-jun.2003, p.80.
[11] Pol., I, 5, 1254a 28-32; 1254a 34-36.
[12] Pol., I,5, 1254a 21-24.
[13] TOSI, Giuseppe. Aristóteles e a escravidão natural. Boletim do CPA, Campinas, n°15, jan.-jun.2003, p.80.
[14] TOSI, Giuseppe. Aristóteles e a escravidão natural. Boletim do CPA, Campinas, n°15, jan.-jun.2003, p.84.
[15] TOSI, Giuseppe. Aristóteles e a escravidão natural. Boletim do CPA, Campinas, n°15, jan.-jun.2003, p.81.
[16] TOSI, Giuseppe. Aristóteles e a escravidão natural. Boletim do CPA, Campinas, n°15, jan.-jun.2003, p.88.
[17] EN., VIII, 13 1161 b 5-8
[18] Pol., I, 7, 1255b 22-25
[19] Pol. I, 6, 1255a 32.  Citação de Eurípedes é retirada da Ifigen. Aul., 1400.
[20] REALE, Giovanni. História da filosofia antiga. O estoicismo antigo, v.III. São Paulo: Loyola, 1992, p.259-362; GAZOLLA, Rachel. O ofício do filósofo estoico. São Paulo: Loyola, 1999, p.9-77.
[21] SÃO PAULO, Colosenses, III, 11.
[22] J.AUBONNET. Le destin de l’œuvre: la place de la Politique  dans lhistoire des idées. In: FRISOTTE. Politique, cit., v.I, p. CXLVI.
[23] HANKE, Lewis. Aristóteles e os índios americanos. São Paulo: Martins.