sábado, 12 de setembro de 2015

Bruno Snell

A Concepção do Homem em Homero segundo Bruno Snell
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)                           
 


Resumo: Este trabalho pretende demonstrar a concepção do Homem em Homero segundo Bruno Snell, para ele o pensamento do homem homérico se comparado àquele dos períodos posteriores é primitivo, Snell parece acreditar num determinismo evolucionista.
 
 
1. Introdução
 
 
Para Snell, permanece um princípio firme, de que não se podem interpretar as palavras homéricas a partir do uso da época posterior, mas sim de explicar Homero a partir de si mesmo, compreendendo o seu sentido exato.
 
 
Entende que, já há muito se observou que, nas línguas relativamente primitivas, a abstração não se encontra desenvolvida e que, em compensação, tais línguas possuem uma riqueza de expressões referentes ao concreto e sensível, que são estranhas a uma língua mais desenvolvida.
 
 
 
2. Verbos relativos a visão em Homero
 
                                                       
 
Snell dá o seguinte exemplo, Homero utiliza um grande número de verbos relativos à visão. De tais verbos, muitos desapareceram no grego posterior, pelo menos na prosa.
 
Argumenta que, em contrapartida após Homero só dois novos verbos apareceram relativos a visão. As palavras desaparecidas mostram que a língua primitiva tinha certas necessidades de expressão que já não tinha cabida na língua posterior. Por exemplo  derchesthai   significa ter um determinado modo de olhar.  Dracon, a serpente, cujo nome deriva de   derchesthai , chama-se assim porque tem um olhar particularmente terrível. Significa propriamente “ a que olha”, não porque possa ver particularmente bem, ou porque a sua visão funcione bem, mas porque o que nela se percepciona é o seu olhar. Assim diz-se da Górgona que tem um olhar terrível; do javali enraivecido que tem um olhar de fogo. Trata-se de uma qualidade expressiva do olhar, muitas passagens homéricas sobressaem com peculiar beleza quando se lhes dá este sentido. Na Odisséia 5, 84=158, diz-se a propósito de Ulisses,  derchesthai  significa ter uma determinada expressão no olhar e do contexto deduz-se que aqui se trata do olhar nostálgico de quem, longe da sua pátria, olha para o mar.
 
 
Menciona o estudioso que, o  derchesthai homérico não se refere ao sentido da vista sob o aspecto da sua finalidade própria, como atividade peculiar do olho, que proporciona ao Homem determinadas impressões sensoriais. O estudioso observa que, os verbos homéricos da visão recebem seu sentido, em geral, de uma modalidade sensível ou afeta da visão.
 
 
Segundo Snell, após Homero, por exemplo, uma palavra recente para “ ver”, a saber theorein, não era originariamente um verbo, mas derivava de um nome, de  theorós, e significava, pois, em rigor “ espectador” . Converte-se, em seguida, em verbo descritivo da visão e significa, então, “ contemplar”, considerar. Sublinha-se, assim, a atividade pela qual o olho percepciona um objeto. Este novo verbo expressa , dessa forma, justamente o que não aparecia nos verbos mais antigos, o que constitui à coisa.
 
 
Afirma Snell que, os verbos da época arcaica,  formam-se, pois, predominantemente, segundo as modalidades sensíveis do ato de ver ao passo que, mais tarde, se salienta de modo mais exclusivo a função do ver.
 
                                                                                                                
 
Conclui o estudioso que, é evidente que também os homens homéricos serviam dos olhos essencialmente para  “ver”, isto é, para levar a cabo percepções óticas; mas justamente o que nós, com razão consideramos como a função própria , como o elemento “ objetivo” da visão, não era manifestamente para eles o essencial, mas como não tinham para tal nenhuma palavra , não existia na realidade para a sua consciência. Neste sentido, pode dizer-se, pois, que ainda não conheciam o sentido da visão ou, para utilizar uma formulação paradoxal e provocadora e por assim dizer bem diante dos olhos o problema presente, ainda não podiam ver.
 
 
3. Concepção do corpo na linguagem  de Homero
 
 
Questiona Snell que, estas considerações leva-se logo a perguntar como é que Homero designava o corpo.
 
 
Argumenta que, Aristarco nota que, a palavra soma, que mais tarde significa corpo, nunca se usa em Homero em relação ao homem vivo: significa o cadáver. Aristarco pensava que o corpo vivo em Homero era demas, mas demas é apenas um substituto insatisfatório de  “ corpo”, a palavra surge apenas no acusativo de relação.
 
 
Ex: O seu corpo assemelhava -se  ao de um deus.
 
 
Continuando na sua argumentação Snell afirma que, sem dúvida, Homero tinha ainda outras palavras para designar o que nós chamamos “corpo” e os gregos do séc. V denominam soma. Quando se diz :
 
                                                                                                      
 
O seu corpo desfaleceu.
 
 
A linguagem homérica refere-se a guya.
 
 
 Ou :
 
                                                                                                                
 
O suor emanava do seu corpo.
 
 
Em Homero é usada a palavra melea.
 
 
E continua, nestes casos, quando nós, segundo o nosso uso linguístico, esperaríamos um singular, deparamos com um plural. Em vez de corpo, nomeiam-se  “ membros”; guya são os membros, enquanto dotados de movimentos por meio de articulações. Melea são os membros enquanto dotados de força, devido a musculatura.
 
                                                                                             
 
Na sequência fala que, também há uma série de expressões em que crôs surge no lugar de corpo. Crôs é na realidade a pele como superfície, como limite do homem, como substrato da cor, etc. Não confundir com derma, que é a pele em sentido anatômico, a pele que alguém pode arrancar.
 
 
Logo em seguida, conclui Snell que, outrora, o Homem não tinha concebido e designado o corpo enquanto tal.  Assim, em Homero as expressões que podem surgir e ocupar na frase o lugar da palavra ulterior corpo,  soma, só os plurais guya, melea, etc, denotam a corporeidade do corpo;  chrôs é apenas um limite do corpo, e demas significa a figura, a estrutura, e usa-se apenas no acusativo de relação.
 
 
 
4. A arte figurativa do corpo
 
 
Para Snell, as representações de homens na arte arcaica mostra-nos igualmente que o corpo substancialmente do Homem não se concebe como unidade, mas como pluralidade. A  arte clássica do século V é que, pela primeira vez , representa o corpo dotado de unidade orgânica.
 
 
Entende o estudioso que, os gregos primitivos não conceberam, nem na linguagem, nem na arte figurativa o corpo como um unidade, mostra-nos o mesmo com os verbos da visão; os verbos arcaicos da visão concebem a atividade partindo das suas modalidades sensíveis, dos gestos ou sentimentos concomitantes, ao passo que a linguagem ulterior pôs com maior força a função genuína desta atividade no centro do significado verbal.
 
 
Afirma Snell que, a linguagem tende evidentemente cada vez mais para a própria realidade, mas a realidade é uma função que nem em si mesma nem na sua aparência sensível está necessariamente ligada a determinados movimentos anímicos de sentido único. Mas, logo que a função é reconhecida e expressa, começa a existir como tal, e a consciência da sua existência depressa se transforma em patrimônio comum de todos. Esta realidade existe para o Homem logo que é vista, logo que se tem consciência dela e começa a ser designada por uma palavra, com a qual pode ser pensada.
 
 
5. Concepção do espírito e da alma
 
 
Algo semelhante, para Snell, se verificou no domínio do espírito e da alma, pois  espírito-corpo, corpo animado-alma são conceitos opostos, cada um dos quais é determinado pelo seu contrário. Onde não existe nenhuma representação do corpo, também não pode haver qualquer representação da alma e vice-versa. Assim, pois, Homero também não tem nenhuma palavra para designar “ alma” ou “ espírito” .
 
 
Considera Snell que,     psyche, a palavra que, no grego posterior, significa alma, nada tem originariamente a ver com a alma que pensa e sente. Em Homero psyche é unicamente a alma enquanto “ anima o homem”, isto é, o mantém em vida. Também aqui parece haver uma lacuna na linguagem homérica mas que, tal como no âmbito  do “ corpo” , é colmatada por outras palavras. 
 
 
Argumenta Snell que, para a esfera da alma existem as palavras:  psyche, thymós e nóos. Psyche é a alma que “ anima o homem” , isto é, o mantém em vida. Permanecem como designações do espírito em Homero:  thymós e nóos. Thymós é o órgão anímico espiritual que suscita os movimentos e as reações, é em Homero o que suscita as emoções. Nóos é o órgão que recebe as impressões, é a origem dos conceitos, se refere em geral mais ao intelectual, mas há muitas interferências.
 
Afirma o estudioso que, na Odisséia e na Ilíada, há algumas passagens em que o thymós é a alma dos mortos e onde se diz que o thymós sai voando, na ocasião da morte, trata-se em cada caso da morte de um animal, de um cavalo ( Il. 16, 469), de um servo ( Od. 10, 163), de um javali ( Od. 19, 454) e de uma pomba ( Il. 23, 880). Esta concepção é, sem dúvida, derivada: no homem, o que sai voando é a psyche, mas manifestamente, não se pode atribuir uma psyche aos animais; então encontrou-se para eles um thymós, que os abandona no momento da morte.
 
 
Para Snell, não é possível traçar um limite tão claro entre thymós e nóos. Há muitas interferências entre nóos e thymós. Argumenta que na nossa língua, por exemplo, concebemos a cabeça como sede do pensamento, o coração como sede do sentimento e, no entanto, podemos dizer: 
 
 
tem apenas raiva na sua cabeça.
 
 
Segundo Snell, acontece a mesma coisa com thymós= órgão do sentimento e nóos=faculdade, intelectiva. Exemplos: a sede da alegria encontra-se habitualmente no thymós, mas em Od. 8, 78, afirma-se:
 
 
Agamemnon chaire nóoi .
 
 
Quando Aquiles e Ulisses lutavam pela sua preeminência. Na realidade, Agamemnon não se alegrava de que os melhores heróis lutassem entre-si, o que seria singular, mas lembrou de que Apolo vaticinara que Tróia seria conquistada quando entre si lutassem os melhores heróis. Alegra-se, portanto, quando pensa nisso.
 
 
Ressalta que, embora o thymós seja, em geral, a sede da alegria, do gosto, do amor, da compaixão, da ira, etc. Portanto, de todas as reações anímicas, pode, no entanto, localizar-se ocasionalmente também um saber no thymós. Na Ilíada  2, 409, diz-se que não era preciso trazer Menelau à assembléia, pois “já sabia no seu thymós como o seu irmão se fatigava.” Sabia-o, não em virtude de uma comunicação ou de um conhecimento claro, mas instintivamente, por uma espécie de fraternal simpatia: por isso, diz-se que o sabia por causa de uma emoção.
 
 
Conclui que, assim se elucida, sem mais, também o significado de nóos, é o espírito enquanto tem representações claras, portanto, o órgão do discernimento: Il. 16, 688:
 
 
o nóos de Zeus é sempre mais poderoso do que o dos homens.
 
 
Em seguida, considera que, o nóos é, por assim dizer um olho espiritual que vê claramente. A expressão ver nos olhos ( e não com) é mais um testemunho. No entanto, com uma passagem sempre muito fácil na linguagem, nóos designa também a função. Como função permanente, é a capacidade de ter ideias claras, a inteligência: Il. 13, 730 :
 
 
a um Deus dá façanhas guerreiras… a outro Deus põe no seu peito um bom nóos.
 
 
Para o estudioso, aqui reside o ponto de partida para o fato de nóos significar mais tarde a capacidade do pensamento, o entendimento.
 
 
Thymós, nóos e psyche, afirma Snell, são órgãos separados que, se assim podemos falar, tem respectivamente a sua função particular. Estes órgãos da alma não se distinguem em princípio dos órgãos do corpo.
 
                                                                                                                
 
Pondera Snell que, poderia pensar-se que thymós e nos nada mais são do que porventura as partes da alma de que fala Platão, mas estas pressupõe a totalidade da alma, que Homero não conhece. Thymós, nóos e psyche são órgãos separados que, se assim podemos falar, têm respectivamente a sua função particular.
 
 
Diz que, quando queremos descrever a concepção homérica da alma com os conceitos de “ órgão “ e “função”, enredamo-nos em dificuldades terminológicas, nas quais embate necessariamente quem pretende descrever com termos da sua própria língua peculiaridades que lhes são estranhas.
 
 
Argumenta que, para falar  com exatidão,  eu deveria dizer: o que interpretamos como alma, o homem homérico interpreta como se aí houvesse três entidades, que ele concebe segundo a analogia dos órgãos corporais .  As   paráfrases   para psyche  , nóos   e    thymós   como “ órgãos” da vida, do pensar e das emoções anímicas são, pois, abreviaturas, inexatidões, insuficiências, que resultam do fato de que o conceito de         “ alma” ( mas também o de corpo) se dá unicamente numa interpretação através da língua; línguas diferentes podem, na interpretação, diferir muito umas das outras.
 
 
Os testemunhos, para Snell, acerca do uso  das palavras soma e psyche da época entre Homero e o século V não chegam para rastrear de modo pormenorizado como é que se desenvolveram os novos significados de corpo e alma. É evidente que surgiram como conceitos entre si complementares, e a evolução da palavra teve de ocorrer previamente sobretudo onde as ideias acerca da imortalidade da alma tiveram influência.
 
 
Considera o estudioso que, se justamente o termo que designava a alma dos defuntos se transforma em termo para designar a alma em geral, e o que designava o cadáver passa a designar o corpo vivo, isso pressupõe evidentemente que se atribuiu ao princípio das emoções, sentimentos e pensamentos do homem uma existência ulterior na psyche. Isto implica, para Snell, uma consciência de que o homem vivo tem algo anímico ou de espiritual, sem que de imediato ele se pudesse designar com uma palavra precisa e adequada. Encontra-se esta situação na lírica arcaica. Como contraposição a esta psyche, havia no morto o soma, e quase de um modo evidente utilizou-se em seguida esta palavra também para os vivos, em contraposição a psyche.
 
 
No entanto, pondera Snell que, por mais que se percorra em pormenor este processo, com a distinção entre corpo e alma, “descobriu-se” algo que de tal modo se impôs à consciência que, doravante e para sempre, se tornou como algo de evidente, não obstante a relação entre corpo e alma e também a essência da alma ter sido permanentemente objeto de novas interrogações.
 
 
Afirma Snell que, a nova concepção da alma está representada pela primeira vez em Heráclito. Ele chama à alma do homem vivo psyche, o homem consiste para ele, em corpo e alma. Heráclito atribui à alma um logos que pode, a partir de si mesmo, estender-se e crescer.    Por conseguinte, considera-se a alma como ponto de partida para determinados desenvolvimentos. Já em Homero o espiritual não tem a faculdade de se auto superar.
 
 
 
6. Conclusão de Snell
 
 
Assim, para Snell em Homero, toda a intensificação das forças corporais e espirituais acontece a partir de fora, sobretudo graças aos deuses. Ex. O canto XVI da Ilíada.  Quando Homero quer explicar de onde procede a nova força, só lhe resta dizer que o deus é que a outorga. Homero, acima de tudo, desconhece decisões autênticas, específicas, do homem e, por isso, nas cenas em que alguém delibera sobre algo tem tanta importância a intervenção da divindade. A fé em tais intervenções é, pois, o complemento necessário das ideias de Homero sobre o espírito e a alma do homem. Os homens homéricos ainda não despertaram para a consciência de possuir na sua própria alma a origem das suas próprias forças, não pretendem atrair tais forças mediante quaisquer práticas mágicas, mas recebem-nas de um modo completamente natural como dons dos deuses. Os heróis da Ilíada, porém, não se sentiam já expostos as forças destruidoras, mas aos seus deuses olímpicos. Quanto mais os gregos aceitam a influência destes deuses tanto mais se desenvolve a concepção espiritual do homem. Para Snell, a concepção homérica do homem, tal como a podemos captar na linguagem de Homero, não só é primitiva mas, ao mesmo tempo, olha o futuro, constitui a primeira etapa do pensamento europeu.
 
 
Referências
 
 
1) CHANTRAINE, Pierre. Dictionnnaire étymologique de la langue grecque. Paris: Klincksieck, 1999.
 
 
2) GILL, Christopher. Personality in Greek Epic, Tragedy and Philosophy. The self in dialogue .Oxford: Clarendon Press, 1996 reprinted 2002.
 
 
3)GENTILI, Bruno. Direttore responsabile. Quaderni Urbani di cultura classica. Roma. Editore Fabrizio Serra, 2012.
 
 
4) SNELL, Bruno. A Descoberta do Espírito. A Concepção do Homem em Homero. Edições 70 Lisboa.
 
 
5) WILLIAMS, Bernard. Shame and Necessity. Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press, 1993.
 
 
6)  SCHULLER, Donaldo. Revista USP, SP, n.53, p. 196-197 , março/maio 2002.