A Concepção do Homem em Homero segundo Bruno
Snell
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)
Resumo: Este trabalho
pretende demonstrar a concepção do Homem em Homero segundo Bruno Snell, para
ele o pensamento do homem homérico se comparado àquele dos períodos posteriores
é primitivo, Snell parece acreditar num determinismo evolucionista.
1. Introdução
Para Snell, permanece um
princípio firme, de que não se podem interpretar as palavras homéricas a partir
do uso da época posterior, mas sim de explicar Homero a partir de si mesmo,
compreendendo o seu sentido exato.
Entende que, já há muito se
observou que, nas línguas relativamente primitivas, a abstração não se encontra
desenvolvida e que, em compensação, tais línguas possuem uma riqueza de
expressões referentes ao concreto e sensível, que são estranhas a uma língua
mais desenvolvida.
2. Verbos relativos a visão em Homero
Snell dá o seguinte
exemplo, Homero utiliza um grande número de verbos relativos à visão. De tais
verbos, muitos desapareceram no grego posterior, pelo menos na prosa.
Argumenta que, em
contrapartida após Homero só dois novos verbos apareceram relativos a visão. As
palavras desaparecidas mostram que a língua primitiva tinha certas necessidades
de expressão que já não tinha cabida na língua posterior. Por exemplo derchesthai
significa ter um determinado modo
de olhar. Dracon, a serpente, cujo nome deriva de derchesthai
, chama-se assim porque tem um olhar particularmente terrível. Significa
propriamente “ a que olha”, não porque possa ver particularmente bem, ou porque
a sua visão funcione bem, mas porque o que nela se percepciona é o seu olhar.
Assim diz-se da Górgona que tem um olhar terrível; do javali enraivecido que
tem um olhar de fogo. Trata-se de uma qualidade expressiva do olhar, muitas
passagens homéricas sobressaem com peculiar beleza quando se lhes dá este
sentido. Na Odisséia 5, 84=158, diz-se a propósito de Ulisses, derchesthai significa ter uma determinada expressão no
olhar e do contexto deduz-se que aqui se trata do olhar nostálgico de quem,
longe da sua pátria, olha para o mar.
Menciona o estudioso que,
o derchesthai
homérico não se refere ao sentido da vista sob o aspecto da sua finalidade
própria, como atividade peculiar do olho, que proporciona ao Homem determinadas
impressões sensoriais. O estudioso observa que, os verbos homéricos da visão
recebem seu sentido, em geral, de uma modalidade sensível ou afeta da visão.
Segundo Snell, após Homero,
por exemplo, uma palavra recente para “ ver”, a saber theorein, não era originariamente um verbo, mas derivava de um
nome, de theorós, e significava, pois, em rigor “
espectador” . Converte-se, em seguida, em verbo descritivo da visão e
significa, então, “ contemplar”, considerar. Sublinha-se, assim, a atividade
pela qual o olho percepciona um objeto. Este novo verbo expressa , dessa forma,
justamente o que não aparecia nos verbos mais antigos, o que constitui à coisa.
Afirma Snell que, os verbos
da época arcaica, formam-se, pois,
predominantemente, segundo as modalidades sensíveis do ato de ver ao passo que,
mais tarde, se salienta de modo mais exclusivo a função do ver.
Conclui o estudioso que, é
evidente que também os homens homéricos serviam dos olhos essencialmente
para “ver”, isto é, para levar a cabo
percepções óticas; mas justamente o que nós, com razão consideramos como a
função própria , como o elemento “ objetivo” da visão, não era manifestamente
para eles o essencial, mas como não tinham para tal nenhuma palavra , não existia
na realidade para a sua consciência. Neste sentido, pode dizer-se, pois, que
ainda não conheciam o sentido da visão ou, para utilizar uma formulação
paradoxal e provocadora e por assim dizer bem diante dos olhos o problema
presente, ainda não podiam ver.
3. Concepção do corpo na linguagem
de Homero
Questiona Snell que, estas
considerações leva-se logo a perguntar como é que Homero designava o corpo.
Argumenta que, Aristarco
nota que, a palavra soma, que mais tarde significa corpo, nunca se usa em
Homero em relação ao homem vivo: significa o cadáver. Aristarco pensava que o
corpo vivo em Homero era demas, mas demas é apenas um substituto
insatisfatório de “ corpo”, a palavra
surge apenas no acusativo de relação.
Ex: O seu corpo assemelhava -se ao
de um deus.
Continuando na sua
argumentação Snell afirma que, sem dúvida, Homero tinha ainda outras palavras
para designar o que nós chamamos “corpo” e os gregos do séc. V denominam soma.
Quando se diz :
O seu corpo desfaleceu.
A linguagem homérica
refere-se a guya.
Ou :
O suor emanava do seu corpo.
Em Homero é usada a palavra
melea.
E continua, nestes casos,
quando nós, segundo o nosso uso linguístico, esperaríamos um singular,
deparamos com um plural. Em vez de corpo, nomeiam-se “ membros”; guya são os membros, enquanto dotados de movimentos por meio de
articulações. Melea são os membros
enquanto dotados de força, devido a musculatura.
Na sequência fala que,
também há uma série de expressões em que crôs
surge no lugar de corpo. Crôs é na
realidade a pele como superfície, como limite do homem, como substrato da cor,
etc. Não confundir com derma, que é a
pele em sentido anatômico, a pele que alguém pode arrancar.
Logo em seguida, conclui
Snell que, outrora, o Homem não tinha concebido e designado o corpo enquanto
tal. Assim, em Homero as expressões que
podem surgir e ocupar na frase o lugar da palavra ulterior corpo, soma,
só os plurais guya, melea, etc,
denotam a corporeidade do corpo; chrôs é apenas um limite do corpo, e demas significa a figura, a estrutura, e
usa-se apenas no acusativo de relação.
4. A arte figurativa do corpo
Para Snell, as
representações de homens na arte arcaica mostra-nos igualmente que o corpo
substancialmente do Homem não se concebe como unidade, mas como pluralidade.
A arte clássica do século V é que, pela
primeira vez , representa o corpo dotado de unidade orgânica.
Entende o estudioso que, os
gregos primitivos não conceberam, nem na linguagem, nem na arte figurativa o
corpo como um unidade, mostra-nos o mesmo com os verbos da visão; os verbos
arcaicos da visão concebem a atividade partindo das suas modalidades sensíveis,
dos gestos ou sentimentos concomitantes, ao passo que a linguagem ulterior pôs
com maior força a função genuína desta atividade no centro do significado
verbal.
Afirma Snell que, a
linguagem tende evidentemente cada vez mais para a própria realidade, mas a
realidade é uma função que nem em si mesma nem na sua aparência sensível está
necessariamente ligada a determinados movimentos anímicos de sentido único.
Mas, logo que a função é reconhecida e expressa, começa a existir como tal, e a
consciência da sua existência depressa se transforma em patrimônio comum de
todos. Esta realidade existe para o Homem logo que é vista, logo que se tem
consciência dela e começa a ser designada por uma palavra, com a qual pode ser
pensada.
5. Concepção do espírito e da alma
Algo semelhante, para
Snell, se verificou no domínio do espírito e da alma, pois espírito-corpo, corpo animado-alma são
conceitos opostos, cada um dos quais é determinado pelo seu contrário. Onde não
existe nenhuma representação do corpo, também não pode haver qualquer
representação da alma e vice-versa. Assim, pois, Homero também não tem nenhuma
palavra para designar “ alma” ou “ espírito” .
Considera Snell que, psyche,
a palavra que, no grego posterior, significa alma, nada tem originariamente a
ver com a alma que pensa e sente. Em Homero psyche
é unicamente a alma enquanto “ anima o homem”, isto é, o mantém em vida. Também
aqui parece haver uma lacuna na linguagem homérica mas que, tal como no
âmbito do “ corpo” , é colmatada por
outras palavras.
Argumenta Snell que, para a esfera da alma existem as
palavras: psyche, thymós e nóos. Psyche
é a alma que “ anima o homem” , isto é, o mantém em vida. Permanecem como
designações do espírito em Homero: thymós e nóos. Thymós é o órgão anímico
espiritual que suscita os movimentos e as reações, é em Homero o que suscita as
emoções. Nóos é o órgão que recebe as
impressões, é a origem dos conceitos, se refere em geral mais ao intelectual,
mas há muitas interferências.
Afirma o estudioso que, na
Odisséia e na Ilíada, há algumas passagens em que o thymós é a alma dos mortos e onde se diz que o thymós sai voando, na ocasião da morte, trata-se em cada caso da
morte de um animal, de um cavalo ( Il. 16, 469), de um servo ( Od. 10, 163), de
um javali ( Od. 19, 454) e de uma pomba ( Il. 23, 880). Esta concepção é, sem
dúvida, derivada: no homem, o que sai voando é a psyche, mas manifestamente, não se pode atribuir uma psyche aos animais; então encontrou-se
para eles um thymós, que os abandona
no momento da morte.
Para Snell, não é possível
traçar um limite tão claro entre thymós e
nóos. Há muitas interferências entre nóos
e thymós. Argumenta que na nossa língua, por exemplo, concebemos a cabeça
como sede do pensamento, o coração como sede do sentimento e, no entanto,
podemos dizer:
tem apenas raiva na sua cabeça.
Segundo Snell, acontece a
mesma coisa com thymós= órgão do
sentimento e nóos=faculdade,
intelectiva. Exemplos: a sede da alegria encontra-se habitualmente no thymós, mas em Od. 8, 78, afirma-se:
Agamemnon chaire nóoi .
Quando Aquiles e Ulisses
lutavam pela sua preeminência. Na realidade, Agamemnon não se alegrava de que
os melhores heróis lutassem entre-si, o que seria singular, mas lembrou de que
Apolo vaticinara que Tróia seria conquistada quando entre si lutassem os
melhores heróis. Alegra-se, portanto, quando pensa nisso.
Ressalta que, embora o thymós seja, em geral, a sede da
alegria, do gosto, do amor, da compaixão, da ira, etc. Portanto, de todas as
reações anímicas, pode, no entanto, localizar-se ocasionalmente também um saber
no thymós. Na Ilíada 2, 409, diz-se que não era preciso trazer
Menelau à assembléia, pois “já sabia no seu thymós
como o seu irmão se fatigava.” Sabia-o, não em virtude de uma comunicação
ou de um conhecimento claro, mas instintivamente, por uma espécie de fraternal
simpatia: por isso, diz-se que o sabia por causa de uma emoção.
Conclui que, assim se
elucida, sem mais, também o significado de nóos,
é o espírito enquanto tem representações claras, portanto, o órgão do
discernimento: Il. 16, 688:
o nóos de Zeus é sempre mais poderoso do que o dos homens.
Em seguida, considera que,
o nóos é, por assim dizer um olho
espiritual que vê claramente. A expressão ver nos olhos ( e não com) é mais um
testemunho. No entanto, com uma passagem sempre muito fácil na linguagem, nóos designa também a função. Como
função permanente, é a capacidade de ter ideias claras, a inteligência: Il. 13,
730 :
a um Deus dá façanhas guerreiras… a outro Deus põe no seu peito um bom
nóos.
Para o estudioso, aqui
reside o ponto de partida para o fato de nóos
significar mais tarde a capacidade do pensamento, o entendimento.
Thymós, nóos e psyche, afirma Snell, são
órgãos separados que, se assim podemos falar, tem respectivamente a sua função
particular. Estes órgãos da alma não se distinguem em princípio dos órgãos do
corpo.
Pondera Snell que, poderia
pensar-se que thymós e nos nada mais são do que porventura as
partes da alma de que fala Platão, mas estas pressupõe a totalidade da alma,
que Homero não conhece. Thymós, nóos e
psyche são órgãos separados que, se assim podemos falar, têm respectivamente
a sua função particular.
Diz que, quando queremos
descrever a concepção homérica da alma com os conceitos de “ órgão “ e
“função”, enredamo-nos em dificuldades terminológicas, nas quais embate
necessariamente quem pretende descrever com termos da sua própria língua
peculiaridades que lhes são estranhas.
Argumenta que, para
falar com exatidão, eu deveria dizer: o que interpretamos como
alma, o homem homérico interpreta como se aí houvesse três entidades, que ele
concebe segundo a analogia dos órgãos corporais . As
paráfrases para psyche
, nóos e thymós como “ órgãos” da vida, do pensar e das
emoções anímicas são, pois, abreviaturas, inexatidões, insuficiências, que
resultam do fato de que o conceito de
“ alma” ( mas também o de corpo) se dá unicamente numa interpretação
através da língua; línguas diferentes podem, na interpretação, diferir muito
umas das outras.
Os testemunhos, para Snell,
acerca do uso das palavras soma e psyche da época entre Homero e o século V não chegam para rastrear
de modo pormenorizado como é que se desenvolveram os novos significados de
corpo e alma. É evidente que surgiram como conceitos entre si complementares, e
a evolução da palavra teve de ocorrer previamente sobretudo onde as ideias
acerca da imortalidade da alma tiveram influência.
Considera o estudioso que,
se justamente o termo que designava a alma dos defuntos se transforma em termo
para designar a alma em geral, e o que designava o cadáver passa a designar o
corpo vivo, isso pressupõe evidentemente que se atribuiu ao princípio das
emoções, sentimentos e pensamentos do homem uma existência ulterior na psyche. Isto implica, para Snell, uma
consciência de que o homem vivo tem algo anímico ou de espiritual, sem que de
imediato ele se pudesse designar com uma palavra precisa e adequada.
Encontra-se esta situação na lírica arcaica. Como contraposição a esta psyche, havia no morto o soma, e quase de um modo evidente
utilizou-se em seguida esta palavra também para os vivos, em contraposição a psyche.
No entanto, pondera Snell
que, por mais que se percorra em pormenor este processo, com a distinção entre
corpo e alma, “descobriu-se” algo que de tal modo se impôs à consciência que,
doravante e para sempre, se tornou como algo de evidente, não obstante a relação
entre corpo e alma e também a essência da alma ter sido permanentemente objeto
de novas interrogações.
Afirma Snell que, a nova
concepção da alma está representada pela primeira vez em Heráclito. Ele chama à
alma do homem vivo psyche, o homem
consiste para ele, em corpo e alma. Heráclito atribui à alma um logos que pode,
a partir de si mesmo, estender-se e crescer. Por
conseguinte, considera-se a alma como ponto de partida para determinados
desenvolvimentos. Já em Homero o espiritual não tem a faculdade de se auto
superar.
6. Conclusão de Snell
Assim, para Snell em
Homero, toda a intensificação das forças corporais e espirituais acontece a
partir de fora, sobretudo graças aos deuses. Ex. O canto XVI da Ilíada. Quando Homero quer explicar de onde procede a
nova força, só lhe resta dizer que o deus é que a outorga. Homero, acima de
tudo, desconhece decisões autênticas, específicas, do homem e, por isso, nas
cenas em que alguém delibera sobre algo tem tanta importância a intervenção da
divindade. A fé em tais intervenções é, pois, o complemento necessário das
ideias de Homero sobre o espírito e a alma do homem. Os homens homéricos ainda
não despertaram para a consciência de possuir na sua própria alma a origem das
suas próprias forças, não pretendem atrair tais forças mediante quaisquer
práticas mágicas, mas recebem-nas de um modo completamente natural como dons
dos deuses. Os heróis da Ilíada, porém, não se sentiam já expostos as forças
destruidoras, mas aos seus deuses olímpicos. Quanto mais os gregos aceitam a
influência destes deuses tanto mais se desenvolve a concepção espiritual do
homem. Para Snell, a concepção homérica do homem, tal como a podemos captar na
linguagem de Homero, não só é primitiva mas, ao mesmo tempo, olha o futuro,
constitui a primeira etapa do pensamento europeu.
Referências
1) CHANTRAINE, Pierre.
Dictionnnaire étymologique de la langue grecque. Paris: Klincksieck, 1999.
2) GILL, Christopher.
Personality in Greek Epic, Tragedy and Philosophy. The self in dialogue
.Oxford: Clarendon Press, 1996 reprinted 2002.
3)GENTILI, Bruno. Direttore
responsabile. Quaderni Urbani di cultura classica. Roma. Editore Fabrizio
Serra, 2012.
4) SNELL, Bruno. A
Descoberta do Espírito. A Concepção do Homem em Homero. Edições 70 Lisboa.
5) WILLIAMS, Bernard. Shame
and Necessity. Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press,
1993.
6) SCHULLER, Donaldo. Revista USP, SP, n.53, p.
196-197 , março/maio 2002.