quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

MERLEAU-PONTY


MERLEAU-PONTY: SITUAÇÃO DE CRISE ENTRE FILOSOFIA E CIÊNCIA E RETORNO AOS FENÔMENOS
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)

Resumo: Este artigo pretende abordar a situação de crise entre filosofia e ciência e o retorno aos fenômenos em Merleau-Ponty.  Primeiro aborda-se, em apertada síntese, a vida do filósofo, logo após explana-se  o panorama intelectual da época, para então focar-se na crise entre filosofia e ciência e o retorno aos fenômenos sob a perspectiva merleau-pontiana.

 

 1. INTRODUÇÃO


No dia 04 de março de 1908 em Rochefort-sur-Mer, França, nasceu Maurice Merleau-Ponty. Considerado o maior  fenomenólogo francês. Dizem que não tinha o hábito de discutir filosofia fora de seu escritório, mas sim sobre fatos da vida, interrogava os amigos sobre a vida habitual, lembranças…Para ele nada era em vão, todas as coisas, no fundo, tinham um motivo.

Merleau-Ponty ficou conhecido pelos dois primeiros livros escritos em formato de tese: a tese complementar cujo título é A estrutura do comportamento, finalizada em 1938, e a “tese de Estado”, que lhe proporcionou o título de doutor em filosofia: A fenomenologia da percepção (julho de 1945). Juntamente com Jean-Paul Sartre, funda e dirige, durante algum tempo a revista Os tempos modernos, criada logo após a Liberação. Data da mesma época as duas coletâneas de artigos Humanismo e terror e Sentido e não-sentido. Tais escrito são marcados por problemas que perpassavam sua época. Na arte, percebe-se o apreço do filósofo pelo romance existencialista, pelo cinema, pelo teatro e pela pintura moderna.

Em 1952 foi eleito para a cátedra  de filosofia no Collége de France. Os resumos dos cursos ministrados aí foram publicados com o título Resumos de cursos (1952-1960). Neste período também se afasta da direção da revista Os tempos modernos, também a amizade com Sartre se abala irremediavelmente devido a publicação, em 1955, de As aventuras da dialética. Publica, ainda, outra coletânea de textos chamada Signo (1960), sendo O olho e o espírito seu último texto publicado em vida.

Claude Lefort foi o responsável pela publicação dos livros inacabados e póstumos, A prosa do mundo e O visível e o invisível. Merleau-Ponty morre, aos 53 anos de maneira súbita, a 3 de maio de 1961 vítima de parada cardíaca. Sabe-se que no momento de sua morte ele trabalhava com um livro de Descartes.

 
2. PANORAMA INTELECTUAL DA ÉPOCA

Merleau-Ponty iniciou seus trabalhos de filosofia numa época profundamente dominada por um pensamento do tipo cartesiano e Kantiano, que equivale a uma filosofia da consciência desencarnada. O ensino nas universidades tendiam para um idealismo do tipo neokantiano. Através desta tradição, a filosofia que chegava aos alunos era aquela da reflexão ou do retorno sobre si. Toda atividade humana deveria ser considerada como atividade do espírito, ou seja, operar um retorno ao sujeito que constrói a imagem das coisas, voltar-se em direção ao espírito ou ao sujeito que contrói a ciência e a percepção do mundo. O trabalho do filósofo deveria ser interpretado como a tomada de consciência desta espiritualidade, cabendo à ciência fornecer o cânon através do qual o mundo é interpretado.

Os filósofos da época não se preocupavam em explorar o mundo concreto que permaneciam à margem das ciências. Como se todas as atividades humanas fossem, no limite, simples esboços do conhecimento científico, enquanto a filosofia não passava do conhecimento da atividade espiritual operando na ciência. É contra este tipo de pensamento que Merleau-Ponty e toda uma geração de pensadores toma frente, Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, dentre outros. Não se trata de afirmar que Merleau-Ponty não estivesse convencido da existência da representação científica do mundo, mas para ele tal representação deve ser recoloca em seu lugar. A este propósito Merleau-Ponty nos diz que “o vigor da razão está ligado ao reconhecimento de um sentido filosófico que, é verdade, justifica a expressão científica do mundo, mas em sua ordem, em seu lugar no todo do mundo  humano”[1] . Assim sendo, a representação científica do mundo não é a única nem a mais importante: o mundo vivido não deve ser considerado como menos real que tais representações, e estas devem ser situadas em relação ao mundo, o qual deve ser descrito por ele mesmo. Ao fazê-lo, o filósofo descobre que todas as distinções estabelecidas pela tradição são abstratas e obscuras. Desde então, o papel da filosofia torna-se o de “encontrar o liame com o mundo que precede o pensamento propriamente dito. […] De maneira geral, a filosofia reencontra esta ‘ espessura’ e esta relação com os problemas concretos que ela perdeu ao se fazer simples reflexão sobre a ciência”[2] . 

 
Este novo modo de pensar é fruto de uma situação muito peculiar. Pode-se dizer que a guerra forçou os intelectuais a compreender o mundo em que viviam, e que as categorias empregadas para tal trabalho eram totalmente inadequadas. A guerra operou uma espécie de conversão do pensamento em direção ao mundo. A descoberta da sociedade real carregada com o peso da história suscitou uma mutação filosófica decisiva: a nova geração de filósofos precisou se dar conta de que a consciência se manifesta em ações, e que ela determina o exterior e vice-versa. Momento de uma aquisição muito grande para a ordem da reflexão filosófica: “a liberdade não está aquém do mundo, mas em contato com ele”[3] .

 

3. SITUAÇÃO DE CRISE ENTRE FILOSOFIA E CIÊNCIA E RETORNO AOS FENÔMENOS

 
Desde sua juventude,  Merleau-Ponty combate a ideologia do “pequeno racionalista” (data dos idos de 1900), que é a explicação do ser pela ciência. Ao deixar-se guiar por este mote, o pequeno racionalista pensa não ceder a nenhuma mitologia, pois fala em nome da própria razão. Para essa ideologia, haveria uma “imensa Ciência já feita nas coisas”, que a ciência efetiva terminaria, cedo ou tarde, por descortinar, e não nos deixaria “mais nada por perguntar”, já que a ciência teria poder de alcançar o próprio Ser, as leis mesmas segundo as quais o mundo é feito. A ciência da natureza, para o pequeno racionalista, era pura e simplesmente a medida do Ser.

Falava-se então, “com entusiasmo ou com angústia”, da criação da vida em laboratório  e   da   fórmula que nos desvelaria o mundo inteiro   como   um grande Processo ( S, 185), entre outros “mitos” [4] .

Merleau-Ponty contrapõe a esta tendência interpretativa o “grande racionalismo”do século XVII, momento privilegiado, rico de uma “ontologia viva”. O grande racionalista, embora tivesse criado a ciência da natureza, não a tornou medida do ser, nunca esteve em questão para os pensadores deste século tomar os resultados da ciência como o cânon da ontologia; na verdade, eles admitiam que a filosofia se projetasse sobre a ciência “sem ser sua rival”: o objeto da ciência era considerado apenas um “grau do Ser” e se justificava “em seu lugar”. Eles situavam a ciência como um “sistema intencional no campo total de nossas relações com o Ser”. O grande racionalista soube manter a tensão entre o exterior e o interior, sem reduzir um ao outro, conseguiu pensar um acordo entre ambos sem cair em uma “ontologia cientificista”( ou em um idealismo transcendental) - e ele o conseguiu à medida que o acordo entre o exterior e o interior se fez “pela mediação de um infinito positivo, ou infinitamente infinito”(S, 187). Para Merleau-Ponty, a solução proposta por este século a estas questões não é mais aceitável, mas trata-se, para ele, de retomar mais radicalmente sua tarefa[5]
 
 
A razão conceitualmente tratada transforma-se quando passa a andar junto com a desrazão. Isto significa que a razão que agora interessa ao filósofo não é desencarnada e não flutua fora do mundo concreto. Trata-se de “formar uma nova ideia de razão”, razão alargada “capaz de compreender o que em nós e nos outros precede e excede a razão”[6] . Para isto, exige-se o abandono do solo de universalidade que caracteriza o “universal de sobrevoo de um método estritamente objetivo”. Merleau-Ponty não abandona a pesquisa da universalidade, mas procura “uma segunda via em direção ao universal”,  “universal lateral”ou concreto[7] .

 
Merleau-Ponty entende que a solução para a crise entre filosofia e ciência consiste em afastar a situação de exclusão e incompreensão recíproca entre ambas. Para Merleau-Ponty, não seria correto interpretar a consciência como possuindo uma liberdade absoluta, momento em que nada estaria  fora do sujeito pensante, já que seria ele quem dá sentido a tudo - predomínio da atividade do sujeito incondicional, intemporal e absolutamente livre. Mas também não seria correto determinar completamente o homem excluindo toda liberdade - redução do sujeito a um objeto completamente determinado e condicionado. Há, todavia, momentos importantes nestas duas abordagens: do lado da filosofia é preciso chamar a atenção para o fato de que o homem não é nem produto do meio, nem da história; além disto, para que haja o saber é preciso haver um sujeito pensante. Já a ciência ensina que o pensamento tomado nele mesmo não diz quase nada sobre a realidade humana. Por um lado, encontramos um saber empírico rico, mas cego, e, por outro, a consciência filosófica que conhece a liberdade como peculiaridade humana, mas não sabe de onde vem e diante da qual os acontecimentos não têm sentido.

 
A antinomia em questão nasce graças à usura das categorias tradicionais para compreender a experiência, são elas que devem ser revisadas para por fim à crise. Merleau-Ponty recua a uma “terceira dimensão”, “meio comum” entre filosofia e ciência: atividade e passividade deixam de ser contraditórias[8]. Merleau-Ponty reconhece, em relação à consciência tal como interpretada pela filosofia tradicional, uma "maneira de ser muito particular, o ser intencional, que consiste em visar todas as coisas e não permanecer em nenhuma”[9] . Quanto à ciência, ela nos ensina que não há como passar por cima de “nossas amarras corporais e sociais, nossa inserção no mundo”; se o fizéssemos, “renunciaríamos a pensar a condição humana”[10] . Uma vez revelada a ambiguidade da experiência - o modo de ser intencional da consciência e o fato de que ela esteja  sempre em situação - cabe ao filósofo “compreender as duas coisas ao mesmo tempo”[11] . Só assim a antinomia desaparece, afinal, a relação entre sujeito e o objeto não é uma relação de conhecimento, mas uma relação de ser “segundo a qual paradoxalmente o sujeito é seu corpo e sua situação, e, de alguma forma, sua permuta”[12] .

 
Resumia-se isto na época em um lema que se tornou bastante conhecido: vers le concret ( em direção ao concreto). O concreto ganha frente em relação ao abstrato e passa a ser aquilo que o filósofo persegue; é preciso ter consciência do objeto no mundo, na experiência natural e histórica. O que salta aos olhos é a recusa da filosofia em exercer o domínio e o controle de si mesma, de outrem e do mundo em geral. Mais: as cisões operadas pelo pensamento de sobrevoo são claramente recusadas em nome da experiência. Nesse sentido, o que interessa é a relação de ser no nível do vivido e não no nível do conhecido. A filosofia  e a ciência tradicionais deixaram escorrer por entre os dedos o mundo dos fenômenos, elas deixaram de apreender a relação original existente entre o sujeito da percepção e o mundo percebido, e isto porque atribuem a esta relação uma significação vinda do exterior e não uma significação imanente ao sensível.

 
Surge daí o “primado da percepção” na  filosofia merleau-pontiana. O filósofo quer recuar a uma camada originária da experiência graças à qual o próprio mundo da ciência é constituído. Trata-se de um retorno aos fenômenos que nos ensina o seu próprio funcionamento e que funda de uma vez por todas, o ponto de vista que faz com que as descrições da percepção sejam verdadeiras. Este retorno aos fenômenos requer uma inversão dos pontos de vistas tradicionais, os quais perdem o “logos em estado nascente”, pois se atém ao resultado do processo percebido - o objeto constituído - e não traçam sua gênese. Na Introdução à Fenomenologia da Percepção - “Os prejuízos clássicos e o retorno aos fenômenos”- Merleau-Ponty abre um campo fenomenal que justifica o sentido do retorno ao vivido aquém do mundo objetivo: tal retorno é compreendido como  “o primeiro ato filosófico” [13]. Este procedimento revela, justamente, a concepção merleau-pontiana da redução fenomenológica, pondo em relevo uma significação aderente ao mundo.

Merleau-Ponty, de início, começa realizando uma fenomenologia da percepção, mas isso é apenas o começo, para uma “maneira nova de ver o ser"[14] , ele seguirá em frente em direção a “verdade explícita”, a qual é encontrada no nível da linguagem, do conceito, da cultura.                         

 

REFERÊNCIAS

 
Chauí, M., Experiência do Pensamento. Ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. S.P., Martins Fontes, 2002.

Carmo, Paulo Sérgio, Merleau-Ponty Uma Introdução. S.P., Educ, 2011.

Huisman, Denis. Dicionário dos Filósofos. Trad. Ivone C. Benedetti e outros. S.P., Martins Fontes, 2004.

Huisman, Denis. Dicionário de Obras Filosóficas. Trad. Ivone Castilho Benedetti.S.P.. Martins Fontes,2002.

Lalande, André. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. Trad. Fátima Sá Correia e outros. S.P., Martins Fontes, 1999.

Merleau-Ponty, M., Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos Alberto R. Moura. S.P., Martins Fontes, 1994.

Merleau-Ponty, M., Signos. Trad. Maria E. Pereira. S.P.: Martins Fontes, 1991, p.249.

Merleau-Ponty, M., Coleção “Os Pensadores”. Trad. M. Chauí e outros. S.P., Abril Cultural, 1. ed.,1975.

Merleau-Ponty, M., Ciências do Homem e Fenomenologia. Trad. Salma Tannus Muchail.S.P., Saraiva,1973.

Moutinho, L. Damon Santos. Razão e experiência. Ensaio sobre Merleau-Ponty. S.P., Unesp/Fapesp,2006.



[1] Merleau-Ponty, M., Signos. Trad.Maria E. Pereira. S.P.: Martins Fontes, 1991, p. 249.
[2] Merleau-Ponty, M., Parcours deux-1951-1961.Lagrasse : Verdier, 2000, p.66.
[3] Merleau-Ponty, M., Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1966, p.261.
[4] Moutinho Luiz Damon Santos. Razão e experiência. Ensaio sobre Merleau-Ponty. S.P. UNESP/Fapesp,2006, p. 28.
[5] Merleau-Ponty, M., Signos. Trad. Maria E. Pereira. S.P.: Martins Fontes, 1991, pp. 185-191.
[6] Merleau-Ponty, M., Signos. Trad. Maria E. Pereira. S.P.: Martins Fontes, 1991, p.150.
[7] Merleau-Ponty, M., Signos. Trad. Maria E. Pereira. S.P.: Martins Fontes, 1991, p. 150.
[8] Merleau-Ponty, M., Fenomenologia da percepção. Trad. bras. Carlos Alberto R. Moura. S.P., Martins Fontes, 1994, p.13.
[9] Merleau-Ponty, M., Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1966, p.124.
[10] Merleau-Ponty, M., Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1966, p.125.
[11] Merleau-Ponty, M., Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1966, p.126.
[12] Merleau-Ponty, M., Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1966, p.125.
[13] Merleau-Ponty, M., Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos Alberto R. de Moura. S.P.: Martins Fontes, 1994, p.89.
[14] Merleau-Ponty, 1959, Colóquio sobre o termo “Estrutura”, apud Chauí, M. Experiência do pensamento. Ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty, p. 197.