(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)
Resumo: Este artigo
pretende abordar a situação de crise entre filosofia e ciência e o retorno aos
fenômenos em Merleau-Ponty. Primeiro
aborda-se, em apertada síntese, a vida do filósofo, logo após explana-se o panorama intelectual da época, para então
focar-se na crise entre filosofia e ciência e o retorno aos fenômenos sob a
perspectiva merleau-pontiana.
No dia 04 de
março de 1908 em Rochefort-sur-Mer, França, nasceu Maurice Merleau-Ponty.
Considerado o maior fenomenólogo francês.
Dizem que não tinha o hábito de discutir filosofia fora de seu escritório, mas
sim sobre fatos da vida, interrogava os amigos sobre a vida habitual, lembranças…Para
ele nada era em vão, todas as coisas, no fundo, tinham um motivo.
Merleau-Ponty
ficou conhecido pelos dois primeiros livros escritos em formato de tese: a tese
complementar cujo título é A estrutura do comportamento, finalizada em
1938, e a “tese de Estado”, que lhe proporcionou o título de doutor em
filosofia: A fenomenologia da percepção (julho de 1945).
Juntamente com Jean-Paul Sartre, funda e dirige, durante algum tempo a revista Os
tempos modernos, criada logo após a Liberação. Data da mesma época as duas
coletâneas de artigos Humanismo e terror e Sentido e não-sentido.
Tais escrito são marcados por problemas que perpassavam sua época. Na arte,
percebe-se o apreço do filósofo pelo romance existencialista, pelo cinema, pelo
teatro e pela pintura moderna.
Em 1952 foi
eleito para a cátedra de filosofia no
Collége de France. Os resumos dos cursos ministrados aí foram publicados com o
título Resumos de cursos (1952-1960). Neste período também se afasta da
direção da revista Os tempos modernos, também a amizade com Sartre se
abala irremediavelmente devido a publicação, em 1955, de As aventuras da
dialética. Publica, ainda, outra coletânea de textos chamada Signo (1960),
sendo O olho e o espírito seu último texto publicado em vida.
Claude Lefort
foi o responsável pela publicação dos livros inacabados e póstumos, A prosa
do mundo e O visível e o invisível. Merleau-Ponty morre, aos 53 anos
de maneira súbita, a 3 de maio de 1961 vítima de parada cardíaca. Sabe-se que
no momento de sua morte ele trabalhava com um livro de Descartes.
2. PANORAMA
INTELECTUAL DA ÉPOCA
Merleau-Ponty
iniciou seus trabalhos de filosofia numa época profundamente dominada por um
pensamento do tipo cartesiano e Kantiano, que equivale a uma filosofia da
consciência desencarnada. O ensino nas universidades tendiam para um idealismo
do tipo neokantiano. Através desta tradição, a filosofia que chegava aos alunos
era aquela da reflexão ou do retorno sobre si. Toda atividade humana deveria
ser considerada como atividade do espírito, ou seja, operar um retorno ao
sujeito que constrói a imagem das coisas, voltar-se em direção ao espírito ou
ao sujeito que contrói a ciência e a percepção do mundo. O trabalho do filósofo
deveria ser interpretado como a tomada de consciência desta espiritualidade,
cabendo à ciência fornecer o cânon através do qual o mundo é interpretado.
Os filósofos
da época não se preocupavam em explorar o mundo concreto que permaneciam à margem
das ciências. Como se todas as atividades humanas fossem, no limite, simples
esboços do conhecimento científico, enquanto a filosofia não passava do
conhecimento da atividade espiritual operando na ciência. É contra este tipo de
pensamento que Merleau-Ponty e toda uma geração de pensadores toma frente,
Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, dentre outros. Não se trata de
afirmar que Merleau-Ponty não estivesse convencido da existência da representação
científica do mundo, mas para ele tal representação deve ser recoloca em seu
lugar. A este propósito Merleau-Ponty nos diz que “o vigor da razão está ligado
ao reconhecimento de um sentido filosófico que, é verdade, justifica a expressão
científica do mundo, mas em sua ordem, em seu lugar no todo do mundo humano”[1] . Assim sendo, a representação científica
do mundo não é a única nem a mais importante: o mundo vivido não deve ser
considerado como menos real que tais representações, e estas devem ser situadas
em relação ao mundo, o qual deve ser descrito por ele mesmo. Ao fazê-lo, o filósofo
descobre que todas as distinções estabelecidas pela tradição são abstratas e
obscuras. Desde então, o papel da filosofia torna-se o de “encontrar o liame
com o mundo que precede o pensamento propriamente dito. […] De maneira geral, a
filosofia reencontra esta ‘ espessura’ e esta relação com os problemas
concretos que ela perdeu ao se fazer simples reflexão sobre a ciência”[2] .
Este novo modo de pensar é fruto de
uma situação muito peculiar. Pode-se dizer que a guerra forçou os intelectuais
a compreender o mundo em que viviam, e que as categorias empregadas para tal
trabalho eram totalmente inadequadas. A guerra operou uma espécie de conversão
do pensamento em direção ao mundo. A descoberta da sociedade real carregada com
o peso da história suscitou uma mutação filosófica decisiva: a nova geração de
filósofos precisou se dar conta de que a consciência se manifesta em ações, e
que ela determina o exterior e vice-versa. Momento de uma aquisição muito
grande para a ordem da reflexão filosófica: “a liberdade não está aquém do
mundo, mas em contato com ele”[3] .
3. SITUAÇÃO DE CRISE ENTRE FILOSOFIA E
CIÊNCIA E RETORNO AOS FENÔMENOS
Desde sua juventude, Merleau-Ponty combate a ideologia do “pequeno
racionalista” (data dos idos de 1900), que é a explicação do ser pela ciência.
Ao deixar-se guiar por este mote, o pequeno racionalista pensa não ceder a
nenhuma mitologia, pois fala em nome da própria razão. Para essa ideologia,
haveria uma “imensa Ciência já feita nas coisas”, que a ciência efetiva
terminaria, cedo ou tarde, por descortinar, e não nos deixaria “mais nada por
perguntar”, já que a ciência teria poder de alcançar o próprio Ser, as leis
mesmas segundo as quais o mundo é feito. A ciência da natureza, para o pequeno
racionalista, era pura e simplesmente a medida do Ser.
Falava-se
então, “com entusiasmo ou com angústia”, da criação da vida em laboratório e
da fórmula que nos desvelaria o
mundo inteiro como um grande Processo ( S, 185), entre
outros “mitos” [4] .
Merleau-Ponty contrapõe a esta tendência
interpretativa o “grande racionalismo”do século XVII, momento privilegiado,
rico de uma “ontologia viva”. O grande racionalista, embora tivesse criado a ciência
da natureza, não a tornou medida do ser, nunca esteve em questão para os
pensadores deste século tomar os resultados da ciência como o cânon da
ontologia; na verdade, eles admitiam que a filosofia se projetasse sobre a ciência
“sem ser sua rival”: o objeto da ciência era considerado apenas um “grau do Ser”
e se justificava “em seu lugar”. Eles situavam a ciência como um “sistema
intencional no campo total de nossas relações com o Ser”. O grande racionalista
soube manter a tensão entre o exterior e o interior, sem reduzir um ao outro,
conseguiu pensar um acordo entre ambos sem cair em uma “ontologia cientificista”(
ou em um idealismo transcendental) - e ele o conseguiu à medida que o acordo
entre o exterior e o interior se fez “pela mediação de um infinito positivo, ou
infinitamente infinito”(S, 187). Para Merleau-Ponty, a solução proposta por
este século a estas questões não é mais aceitável, mas trata-se, para ele, de
retomar mais radicalmente sua tarefa[5]
A razão conceitualmente tratada
transforma-se quando passa a andar junto com a desrazão. Isto significa que a
razão que agora interessa ao filósofo não é desencarnada e não flutua fora do
mundo concreto. Trata-se de “formar uma nova ideia de razão”, razão alargada “capaz
de compreender o que em nós e nos outros precede e excede a razão”[6] . Para isto, exige-se o abandono do
solo de universalidade que caracteriza o “universal de sobrevoo de um método
estritamente objetivo”. Merleau-Ponty não abandona a pesquisa da
universalidade, mas procura “uma segunda via em direção ao universal”, “universal lateral”ou concreto[7] .
Merleau-Ponty entende que a solução
para a crise entre filosofia e ciência consiste em afastar a situação de exclusão
e incompreensão recíproca entre ambas. Para Merleau-Ponty, não seria correto
interpretar a consciência como possuindo uma liberdade absoluta, momento em que
nada estaria fora do sujeito pensante, já
que seria ele quem dá sentido a tudo - predomínio da atividade do sujeito
incondicional, intemporal e absolutamente livre. Mas também não seria correto
determinar completamente o homem excluindo toda liberdade - redução do sujeito
a um objeto completamente determinado e condicionado. Há, todavia, momentos
importantes nestas duas abordagens: do lado da filosofia é preciso chamar a
atenção para o fato de que o homem não é nem produto do meio, nem da história;
além disto, para que haja o saber é preciso haver um sujeito pensante. Já a ciência
ensina que o pensamento tomado nele mesmo não diz quase nada sobre a realidade
humana. Por um lado, encontramos um saber empírico rico, mas cego, e, por
outro, a consciência filosófica que conhece a liberdade como peculiaridade
humana, mas não sabe de onde vem e diante da qual os acontecimentos não têm
sentido.
A antinomia em questão nasce graças à usura
das categorias tradicionais para compreender a experiência, são elas que devem
ser revisadas para por fim à crise. Merleau-Ponty recua a uma “terceira dimensão”,
“meio comum” entre filosofia e ciência: atividade e passividade deixam de ser
contraditórias[8]. Merleau-Ponty reconhece, em relação à
consciência tal como interpretada pela filosofia tradicional, uma "maneira
de ser muito particular, o ser intencional, que consiste em visar todas as
coisas e não permanecer em nenhuma”[9] . Quanto à ciência, ela nos ensina
que não há como passar por cima de “nossas amarras corporais e sociais, nossa
inserção no mundo”; se o fizéssemos, “renunciaríamos a pensar a condição humana”[10] . Uma vez revelada a ambiguidade da
experiência - o modo de ser intencional da consciência e o fato de que ela
esteja sempre em situação - cabe ao filósofo
“compreender as duas coisas ao mesmo tempo”[11] . Só assim a antinomia desaparece,
afinal, a relação entre sujeito e o objeto não é uma relação de conhecimento,
mas uma relação de ser “segundo a qual paradoxalmente o sujeito é seu corpo e
sua situação, e, de alguma forma, sua permuta”[12] .
Resumia-se isto na época em um lema
que se tornou bastante conhecido: vers le concret ( em direção ao
concreto). O concreto ganha frente em relação ao abstrato e passa a ser aquilo
que o filósofo persegue; é preciso ter consciência do objeto no mundo, na
experiência natural e histórica. O que salta aos olhos é a recusa da filosofia
em exercer o domínio e o controle de si mesma, de outrem e do mundo em geral.
Mais: as cisões operadas pelo pensamento de sobrevoo são claramente recusadas
em nome da experiência. Nesse sentido, o que interessa é a relação de ser no nível
do vivido e não no nível do conhecido. A filosofia e a ciência tradicionais deixaram escorrer
por entre os dedos o mundo dos fenômenos, elas deixaram de apreender a relação
original existente entre o sujeito da percepção e o mundo percebido, e isto
porque atribuem a esta relação uma significação vinda do exterior e não uma
significação imanente ao sensível.
Surge daí o “primado da percepção” na filosofia merleau-pontiana. O filósofo quer
recuar a uma camada originária da experiência graças à qual o próprio mundo da
ciência é constituído. Trata-se de um retorno aos fenômenos que nos ensina o
seu próprio funcionamento e que funda de uma vez por todas, o ponto de vista
que faz com que as descrições da percepção sejam verdadeiras. Este retorno aos
fenômenos requer uma inversão dos pontos de vistas tradicionais, os quais
perdem o “logos em estado nascente”, pois se atém ao resultado do processo
percebido - o objeto constituído - e não traçam sua gênese. Na Introdução à Fenomenologia
da Percepção - “Os prejuízos clássicos e o retorno aos fenômenos”-
Merleau-Ponty abre um campo fenomenal que justifica o sentido do retorno ao
vivido aquém do mundo objetivo: tal retorno é compreendido como “o primeiro ato filosófico” [13]. Este procedimento revela,
justamente, a concepção merleau-pontiana da redução fenomenológica, pondo em
relevo uma significação aderente ao mundo.
Merleau-Ponty, de início, começa
realizando uma fenomenologia da percepção, mas isso é apenas o começo, para uma
“maneira nova de ver o ser"[14] , ele seguirá em frente em direção a “verdade
explícita”, a qual é encontrada no nível da linguagem, do conceito, da cultura.
REFERÊNCIAS
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Pensamento. Ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. S.P., Martins Fontes,
2002.
Carmo, Paulo Sérgio, Merleau-Ponty
Uma Introdução. S.P., Educ, 2011.
Huisman, Denis. Dicionário dos Filósofos.
Trad. Ivone C. Benedetti e outros. S.P., Martins Fontes, 2004.
Huisman, Denis. Dicionário de Obras
Filosóficas. Trad. Ivone Castilho Benedetti.S.P.. Martins Fontes,2002.
Lalande, André. Vocabulário Técnico
e Crítico da Filosofia. Trad. Fátima Sá Correia e outros. S.P., Martins
Fontes, 1999.
Merleau-Ponty, M., Fenomenologia da
percepção. Trad. Carlos Alberto R. Moura. S.P., Martins Fontes, 1994.
Merleau-Ponty, M., Signos.
Trad. Maria E. Pereira. S.P.: Martins Fontes, 1991, p.249.
Merleau-Ponty, M., Coleção “Os
Pensadores”. Trad. M. Chauí e outros. S.P., Abril Cultural, 1. ed.,1975.
Merleau-Ponty, M., Ciências do
Homem e Fenomenologia. Trad. Salma Tannus Muchail.S.P., Saraiva,1973.
Moutinho, L. Damon Santos. Razão e
experiência. Ensaio sobre Merleau-Ponty. S.P., Unesp/Fapesp,2006.
[1]
Merleau-Ponty,
M., Signos. Trad.Maria E. Pereira. S.P.: Martins Fontes, 1991, p. 249.
[2]
Merleau-Ponty,
M., Parcours deux-1951-1961.Lagrasse : Verdier, 2000, p.66.
[3]
Merleau-Ponty,
M., Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1966, p.261.
[4]
Moutinho Luiz
Damon Santos. Razão e experiência. Ensaio sobre Merleau-Ponty. S.P.
UNESP/Fapesp,2006, p. 28.
[5]
Merleau-Ponty,
M., Signos. Trad. Maria E. Pereira. S.P.: Martins Fontes, 1991, pp.
185-191.
[6]
Merleau-Ponty,
M., Signos. Trad. Maria E. Pereira. S.P.: Martins Fontes, 1991, p.150.
[7]
Merleau-Ponty,
M., Signos. Trad. Maria E. Pereira. S.P.: Martins Fontes, 1991, p. 150.
[8]
Merleau-Ponty,
M., Fenomenologia da percepção. Trad. bras. Carlos Alberto R. Moura.
S.P., Martins Fontes, 1994, p.13.
[9]
Merleau-Ponty,
M., Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1966, p.124.
[10]
Merleau-Ponty,
M., Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1966, p.125.
[11]
Merleau-Ponty,
M., Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1966, p.126.
[12]
Merleau-Ponty,
M., Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1966, p.125.
[13]
Merleau-Ponty,
M., Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos Alberto R. de Moura. S.P.:
Martins Fontes, 1994, p.89.
[14]
Merleau-Ponty,
1959, Colóquio sobre o termo “Estrutura”, apud Chauí, M. Experiência
do pensamento. Ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty, p. 197.