Inquérito e
Prova em Foucault
(por Ândrea
Cristina Pimentel Palazzolo)
Resumo: Este artigo é uma
apertada síntese da Conferência 3 do livro A Verdade e as formas jurídicas de
Michel Foucault. Nele os temas tratados serão a prova e o inquérito,
com seus traços principais. Constataremos que o sistema de provas tendeu
a desaparecer quase que por completo, e o inquérito ressurgiu em dimensões
extraordinárias, e permanece até os nossos dias.
Foucault nos
conta que, a prova é, na Grécia antiga, o procedimento judicial mais
arcaico, sobre o qual veio a prevalecer depois ( a partir do séc. V a.C. aproximadamente) a prática do inquérito.
Pela prova a verdade é judiciariamente estabelecida sem
recurso a testemunhas ou a sentenças. Os adversários se afrontavam para saber
quem estava errado e quem estava certo. Um lançava ao outro o desafio: “És
capaz de jurar diante dos deuses que não fizeste o que eu afirmo?” Diante deste
desafio que para eles era uma prova, se o guerreiro renunciasse à prova,
renunciasse a jurar, renunciasse o desafio, reconhecia assim que
cometeu a irregularidade. Em um procedimento como este, declara Foucault , confiasse o encargo de decidir não a quem
disse a verdade, mas quem tem razão. Na hipótese de ter aceitado o desafio e
jurado, a responsabilidade do que iria acontecer seria transposta aos desuses e
seria Zeus, punindo o falso juramento, se fosse o caso, que teria com seu raio
manifestado a verdade.
O pensador
observa que, no inquérito, ao contrário, a verdade é determinada por
quem “viu e enuncia”, ou seja, é baseada em testemunhos que têm, inclusive, o
direito de opor-se ao poder dos governantes. Foucault usa como exemplo a estória
de Édipo-Rei, afinal quem matou o rei Laio? Aparece um personagem fundamental,
uma testemunha, o pastor, embora sendo um homem sem importância, um escravo, o
pastor viu e pode contestar e abater o rei ou o tirano. Segundo Foucault, foi a
prática do inquérito que constituiu modelo para formações culturais daquela época:
filosofia, retórica, conhecimentos empíricos, baseado que são em testemunhos (
historiadores, botânicos, geógrafos, eta.).
Acrescenta
Foucault que, na Idade Média, os dois modelos reaparecem. Inicialmente (por
volta dos séc. V a XII), prevalece a prova, cujos traços principais,
para o pensador são: tratava-se sempre de uma ação “de estrutura binária”, isto é, em que indivíduos,
grupos ou famílias eram diretamente postos em disputa, sem intervenção de
qualquer terceiro elemento que representasse a autoridade ou a coletividade ; a
verdade se confundia com a vitória do mais forte, o direito constituindo-se num
prolongamento ritualizado da guerra. Ressalta que numa sociedade do tipo
medieval a circulação de bens era assegurada pela herança, pelos testamentos e
mais ainda pelos meios bélicos ( a rapina, a ocupação de um castelo, de uma
terra, etc), ficando em segundo plano o comércio.
O pensador
relata que, a partir dos fins do séc. XII e no decurso do séc.XIII o sistema da
prova tende a desaparecer, cedendo lugar ao ressurgimento do inquérito,
agora em "dimensões extraordinárias”, já que "seu destino será praticamente
coextensivo ao próprio destino da cultura européia ou ocidental”[1]”e de certo
modo, para a história do mundo inteiro. Usado inicialmente nas esferas eclesiásticas
e nas gestões administrativas, o inquérito é introduzido no âmbito das
práticas jurídicas e dali se generalizará como modelo de produção da verdade e
de outras práticas. Eis, no âmbito jurídico, os traços principais: a resolução
das questões de litígio não se dá diretamente entre os oponentes, mas se impõe “de
fora”e “do alto" por um poder simultaneamente judiciário e politico;
aparece a figura do “procurador" do rei , representante do soberano,
responsável por “dublar"a vítima, uma vez que o próprio rei é lesado
porque são descumpridas suas leis; surge a noção de crime como infração, porque
um dano não configura mais questão apenas entre indivíduos, grupos ou famílias,
mas “também uma ofensa de um indivíduo ao Estado, ao soberano como
representante do Estado”; por isso mesmo é da competência do soberano o direito
de impor penas e exigir reparações ( frequentemente na forma de “confiscos"que
enriquecerão as monarquias)[2]. Para isso é necessário a inquirição de testemunhas, a busca da
reconstituição dos fatos, enfim, a prática do inquérito, como
instrumento capaz de substituir o flagrante delito, reatualizando o crime,
quando o criminoso não é surpreendido na atualidade de sua falta.
Foucault então
observa que, recolher testemunhos, reconstituir situações, reunir dados são
procedimentos que se estenderão para outras práticas e, sobretudo, para a
constituição da verdade na ordem do saber. Assim, nesse quadro, desenvolver-se-ão,
principalmente, as ciências empíricas ou da natureza, em domínios “como o da
geografia, da astronomia, do conhecimento de climas, etc.”, ou ainda da
medicina, da botânica e da zoologia[3].
Conclui
Foucault que, enquanto o sistema da prova desaparece quase por completo,
dele restando talvez a tortura( e mesmo esta “ já mesclada com a preocupação de
obter a confissão, prova de verificação”[4]), o modelo do
inquérito, ao contrário, permanece e se estende até nossos dias,
constituindo ainda hoje a base do sistema jurídico de nossa sociedade.
Nenhuma história
feita em termos de progresso da razão, de refinamento do conhecimento, pode dar
conta da aquisição, da racionalidade do inquérito. Seu aparecimento é um fenômeno
político complexo. É a análise das transformações políticas da sociedade medieval
que explica como, por que e em que momento aparece este tipo de estabelecimento
da verdade a partir de procedimentos jurídicos completamente diferentes.(…)
Somente a análise dos jogos de força política, das relações de poder, pode
explicar o surgimento do inquérito [5]. (M.
Foucault)
Referências:
1) FOUCAULT,
Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução: Eduardo Jardim e Roberto
Machado. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2013.
2) MUCHAIL,
Salma Tannus. Foucault Simplesmente. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
3) REVEL, Judith. Dicionário Foucault. Tradução:
Anderson Alexandre da Silva. Rio
de Janeiro: Forense Universitária