A Causalidade do Motor Imóvel
Segundo Aristóteles
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)
RESUMO: Este artigo é um resumo do
Capítulo que trata A Causalidade do Motor Imóvel Segundo Aristóteles do livro
“Novos Estudos Aristotélicos II - Física, antropologia e metafísica” de Enrico
Berti. Nele será abordado: A Interpretação Tradicional, O Motor Imóvel como
causa eficiente, O Motor Imóvel como causa final, O Motor Imóvel como fim para
si mesmo, O Motor Imóvel como objeto de amor, A Origem da interpretação
tradicional e O Fim do Homem.
1.
A Interpretação Tradicional
A
interpretação tradicional sobre a
causalidade do motor imóvel,
teorizada por Aristóteles
no livro XII da Metafísica,
é a de que ela consiste
essencialmente em uma causalidade final, ou seja, que o motor imóvel move como objeto de amor da
parte daquilo que por ele é movido. Esta interpretação foi formulada pela primeira vez de maneira rigorosa pelo
primeiro grande comentador da Metafísica, Alexandre de Afrodísia, para quem o motor imóvel seria objeto de amor da parte do céu e o céu, sendo animado, mover-se-ia
circularmente com o objetivo de imitar a imobilidade do motor imóvel. Ela foi retomada, com
algumas diferenças, por todos os
comentadores posteriores, tanto antigos, passando pelos medievais até os comentadores renascentistas.
Somente
na historiografia do séc. XIX esta linha
interpretativa foi colocada em questão: de fato, ela foi substituída, em Schwegler e Zeller, deixando para trás o conceito de imitação, todavia continuando a
atribuir ao motor imóvel
uma causalidade de tipo finalístico. Apenas Franz Bretano, negou decididamente a
causalidade de tipo exclusivamente finalístico, interpretando-a antes como uma causalidade
eficiente. Todavia, em seu desejo de conciliar Aristóteles com o cristianismo,
Bretano foi longe demais, atribuindo a Aristóteles uma autêntica forma de criacionismo, porém o conceito de criação a partir do nada era
completamente estranho aos filósofos gregos.
A
posição da historiografia do
séc. XX foi emblematicamente
representada por W.D.Ross, que reconheceu,
que a luz do que o Estagirita afirma no livro XII, capítulo 7, que o Motor imóvel move como objeto de amor,
para ele, estas passagens devem ser interpretadas no sentido de que a causa
motora age como uma causa final. De resto, segundo Ross, o Motor imóvel não pode ser causa eficiente na medida em que é desprovido de vontade. Por isso, o grande aristotelista inglês repropôs a interpretação tradicional, sustentando que
o céu, sendo animado,
move-se circularmente com o fim de imitar o motor imóvel, posto ser o movimento
circular aquele que mais se assemelha à imobilidade. No entanto, com isso, reconhece Ross, a
teologia de Aristóteles nos oferece uma
imagem de Deus muito distante da imagem cultivada pelo cristianismo, vale
dizer, uma imagem, substancialmente insuficiente, o que confirma a tese de Kant
segundo a qual a propósito
de Deus, antes que confiar na razão, isto é, na metafísica, vale muito mais
confiar na razão prática, quer dizer, na ética.
A interpretação de Ross foi largamente dominante na historiografia do
séc. XX. Somente na última década do século apareceram alguns estudos
voltados a reabrir o debate, atribuindo ao motor imóvel de Aristóteles uma causalidade de tipo eficiente.
2.
O Motor Imóvel Como
Causa Eficiente
No
capítulo 6 do livro XII da
Metafísica Aristóteles concebe o Motor imóvel essencialmente como causa
motora, isto é, como causa eficiente
do movimento eterno e contínuo do céu, é algo reconhecido. Isto resulta antes de mais nada da afirmação de Aristóteles segundo a qual para
explicar este movimento é necessário um princípio motor eficiente (
1071b 12).
Assim,
o motor do céu deve ser não somente em ato, mas
completamente em ato, sendo tal que a sua própria substância seja o ato, sem conter nenhum resíduo de potencialidade sob
nenhum aspecto: em suma, ele deve ser ato puro ( 1071b 19-20). Por isto é um motor completamente imóvel. O motor imóvel de Aristóteles vem, assim, reunir sem si
todas as qualidades que eram próprias aos princípios admitidos por Platão: a imobilidade, própria das ideias, dos
números ideais e dos seus
princípios, e a causalidade
motora, isto é, a eficiência, a atividade, própria da alma. Trata-se de uma
espécie de alma,
porém transcendente com
relação ao céu, e portanto totalmente imóvel. Não há dúvida de que, até este ponto, Aristóteles nos apresenta um motor imóvel dotado de causalidade
eficiente, e a polêmica contra Platão, que caracteriza toda a
argumentação com a qual ele
mostrou a sua necessidade, pretende justamente sublinhar, como um traço plenamente original em relação às ideias de Platão, o seu caráter de causa eficiente. Se a
meta da filosofia primeira de Aristóteles é mostrar a existência de substâncias imóveis, a sua originalidade com respeito à filosofia de Platão é mostrar que estas substâncias imóveis não podem ser as ideias, devendo
ser substâncias imóveis motoras, como os motores
necessários para explicar os
movimentos dos céus ( que,
como se sabe, para Aristóteles são
múltiplos,
de mesmo número que as esferas
celestes).
3.
O Motor Imóvel Como
Causa Final
Ao
lado desta concepção encontramos, no mesmo
livro XII da Metafísica, mais precisamente no capítulo 7, uma concepção do motor imóvel como causa final que na
interpretação tradicional foi usada
para corrigir e justamente substituir a concepção exposta no capítulo 6. Passemos agora ao exame dos seus elementos
mostrando como eles podem ser interpretados de um modo novo e mais satisfatório.
O
motor imóvel ė o bem supremo entendido não como objeto mais desejável, na medida em que não é praticável, mas como o objeto mais
desejável em si mesmo, assim
como ele é o objeto mais inteligível não para o homem, mas em si
mesmo. Assim, toda a argumentação concernente ao primeiro desejável e ao primeiro inteligível se funda não sobre uma identificação entre o motor imóvel e o objeto do desejo, mas
antes numa comparação, num símile entre o motor imóvel, primeiro inteligível e primeiro desejável em si mesmo, e aquilo que é objeto de intelecção e de desejo da parte do
homem: em ambos os casos, o das realidades inteligíveis e desejáveis em si mesmas e das
realidades inteligíveis e desejáveis para nós, o primeiro termo da série é o bem supremo, respectivamente
em si mesmo e para nós;
mas trata-se de realidades diferentes, como prova a conclusão de toda a argumentação, segundo a qual, o primeiro é sempre o bem supremo ou algo de
análogo a ele. O análogo do bem supremo em si é para o homem a felicidade. Todo
o discurso é, em suma, precisamente
uma analogia, vale dizer, uma comparação.
Neste
ponto Aristóteles introduz a frase
que, segundo a interpretação tradicional, provaria que o motor imóvel move como causa final: que o fim está entre as realidades imóveis mostra-o a divisão; com efeito, o fim é para alguém, dos quais um está - entre os imóveis - enquanto o outro não está ( 1072b 1-3). No
entanto, o texto dessa passagem é controverso. Com efeito, a principal família de manuscritos, compostas
pelo Parisiense E e pelo Vienense J, ambos do século X, reproduz o texto assim como acabamos de traduzi-lo,
enquanto o manuscrito Laurentino A, do séc. XII, depois de -
para alguém - acrescenta - de
alguém - . Como o texto
assim integrado não faz qualquer sentido,
os editores modernos inseriram entre para alguém e de alguém a conjunção kaí, entendendo que se trata de dois significados diferentes
do fim. Mas desse modo também o texto não tem sentido. Em contraste, ele adquire um sentido quando
se acolhe a lição que parece estar na
base do comentário de Averróis, segundo a qual o texto
faria alusão a dois tipos de fim,
aquilo que é fim apenas para alguém e aquilo que é fim em si mesmo.
Mas
talvez esse mesmo sentido possa ser deduzido do texto transmitido pela
principal família de manuscritos,
quando conservado sem nenhuma correção, como propõe um artigo atualmente em curso de publicação, onde, de outro lado, uma
interpretação mais complexa é sugerida. Em todo caso, para
Enrico Berti parece que o contexto exige essa leitura, uma vez que a divisão à qual Aristóteles alude é muito provavelmente a distinção, entre o que é inteligível e desejável em si e o que é inteligível e desejável para nós, ou melhor, para alguém. Com efeito, é claro que aquilo que é desejável para alguém deve ser praticável, quer dizer, realizável por meio de uma ação, como por exemplo a saúde, ou a felicidade, sendo,
portanto, impossível que se encontre
entre as realidades imóveis,
uma vez que vem ao ser graças a uma ação que o realiza; em contraste, aquilo que é desejável em si mesmo pode muito bem
encontrar-se entre as realidades imóveis. Este último é o caso do motor imóvel, sobre o qual Aristóteles, depois de demonstrar que ele é o primeiro inteligível em si e o primeiro desejável em si, ou seja, que ele é o bem supremo, sente a
necessidade de acrescentar que é também
fim, já que em sua visão o fim e o bem sempre
coincidem. Mas é
claro
que ele não pode ser fim para
alguém, uma vez que neste
caso deveria ser praticável,
o que impediria de ser imóvel; por isso ele deve ser fim em si mesmo, ou seja, fim
para si mesmo. Assim, a interpretação tradicional, segundo a qual o motor imóvel seria o fim do céu e o moveria enquanto objeto
de desejo da parte do céu, não só não encontra nessa passagem qualquer fundamento como é explicitamente excluída pela afirmação de Aristóteles de que o motor imóvel não é fim para alguém.
4.
O Motor Imóvel Como Fim Para Si
Mesmo
A
interpretação que acaba-se de
propor da passagem de Met. XII 7 concernente ao motor imóvel como fim para si mesmo é confirmada por uma conhecida
passagem do De caelo na qual o Estagirita formula e resolve a seguinte aporia:
por que os astros que se encontram na região intermédia entre o primeiro céu e a terra se movem com movimentos mais numerosos do que
os que se encontram mais próximos respectivamente ao céu e à terra?
Para responder a essa pergunta ele observa que, a propósito dos astros, cumpre assumir
que eles não são totalmente
inanimados, mas participam da ação e da vida.
Para
Aristóteles a terra efetivamente
não se move,
porque não pode realizar nenhum
fim. Os corpos celestes que estão próximos
da terra movem-se com poucos movimentos, uma vez que jamais atingem o termo último mas se aproximam do princípio mais divino na medida em
que lhes possível. O primeiro céu o atinge logo com um único movimento. E aqueles que
estão no meio entre o
primeiro céu e os último chegam a ele por meio de
múltiplos movimentos (
292b 10-25).
O
princípio mais divino nada
tem a ver com o motor imóvel,
correspondendo ao ótimo para cada um dos
corpos celestes, isto é,
o seu fim, o bem que por ele pode ser obtido, como mostra eloquentemente o
exemplo da saúde. Por isso o primeiro
céu também tem como fim não o motor imóvel, mas o seu próprio fim, aquilo que para ele é a condição ótima ou - podemos dizer, usando
a linguagem usada para se referir ao homem, e ainda no âmbito da hipótese heurística da animação dos céus - a sua felicidade. Isto
confirma que o motor imóvel
não é fim do céu, tendo em vista que ele é um fim não praticável, e que, portanto, nada nem
ninguém pode atingir, muito
menos o primeiro céu, de seu lado, tem um
fim, mas este não
é o motor
imóvel, mas o seu estar
bem, que ele atinge mediante o movimento circular. Portanto, quando Aristóteles, em Met. XII 7, afirma que
o Motor imóvel é um fim ele não quer dizer com isso que ele é o fim do céu. A tese de que ele move o céu como causa final, defendida
pela interpretação
tradicional, é assim desprovida de
todo fundamento.
5.
O Motor Imóvel Como Objeto De Amor
Na
passagem de 1072b 12-14 fica claro que o ato do Motor imóvel é um melhor, uma atividade, e que
esta é prazer. Apenas em
consequência do fato de que a
atividade do Motor imóvel é prazer Aristóteles pode afirmar que ela é pensamento: com efeito, a
atividade que para nós é a
melhor, ainda que por um breve tempo, é precisamente o pensamento, quer dizer, o conhecer. Mas o
pensamento que é
por si
mesmo, tem como objeto o que é ótimo por si mesmo. De resto, como ele poderia amar a si
mesmo se não conhecesse a si mesmo?
E, se é pensamento sempre em
ato, ele encontra-se sempre na condição na qual nós nos encontramos apenas por um breve tempo; mas uma vez
que esta é a condição própria do deus deve-se também admitir que o Motor imóvel é um deus (1072 b 17-26).
Observa
Aristóteles a títulos de explicação que, se o Motor imóvel é pensamento, e o pensamento é uma forma de vida, pode-se
dizer que o Motor imóvel
possui a vida, aliás uma vida ótima e eterna. Mas esta
corresponde ao tipo de vida que os gregos do seu tempo atribuíam aos deuses, afirma Aristóteles :
Nós dizemos que o deus é um vivente eterno e ótimo, porquanto ao deus pertencem uma
vida e
uma idade contínuas
e eternas: este, com efeito, é o deus ( 1072b 26-30).
Mesmo
que a frase final não
faça referência ao Motor imóvel, mas à definição de deus que acaba de
ser dada, não há dúvida de que o Motor imóvel também é um deus. Mas esta não é a tese que Aristóteles quer demonstrar: ela é, por assim dizer, apenas um
corolário da tese principal
de que o Motor imóvel conhece a si mesmo
e ama a si mesmo.
6.
A Origem da Interpretação Tradicional
A
interpreta tradicional revela-se uma interpretação platonizante do texto aristotélico, isto é, uma interpretação que busca conciliar
Aristóteles e Platão. Não é motivo de surpresa, com efeito,
que ela tenha justamente se tornado tradicional, uma vez que é de conhecimento geral que a
tradição aristotélica na Antiguidade foi caracterizada pela intenção de conciliar os dois autores,
como propôs-se fazer também o assim chamado médio-platonismo, assim como o
movimento que lhe sucedeu, o neoplatonismo.
7.
Apêndice: O Fim do Homem
Visto
que o Motor imóvel é a primeira entre as causas
motoras, ele é objeto da ciência das causas primeiras, vale
dizer, da sabedoria, e visto que ele é um deus pode-se dizer que o conhecimento dele faz parte do
fim do homem. Pode-se ainda dizer que o homem tende a assemelhar-se o máximo possível ao deus, na medida em que
tem como fim o mesmo tipo de atividade que é próprio do Deus, o conhecimento ( Eth. Nic. X 8, 1178b
20-32). Mas tudo isso nada tem a ver com
a interpretação tradicional da
causalidade do Motor imóvel,
segundo a qual o céu se move circularmente
para imitar a imobilidade do Motor imóvel.
Bibliografia
BERTI,
E.,Novos estudos aristotélicos II. Física, antropologia e metafísica, trad. S. Cocucci Leite; C. Camargo Bartalotti e E. de
G. Verçosa
Filho, São Paulo, Edições Loyola, 2011.