quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Ts’ ui Pen e Deleuze


TEMPOS POSSÍVEIS
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)
           
RESUMO: Este artigo tem por finalidade  apresentar uma apertada síntese sobre a perspectiva de tempo de Ts’ui Pen e  Deleuze. 
                                                          
Ts’ui Pen é o governador de uma província chinesa, douto em astronomia, astrologia, livros canônicos, além de enxadrista, poeta e calígrafo. Borges conta que ele renunciou os prazeres “da opressão , da justiça, do numeroso leito, dos banquetes e ainda da erudição” a fim de compor um livro e um labirinto.  Com tal propósito enclausurou-se por treze anos no Pavilhão da Límpida Solidão. Depois de sua morte, no entanto, os herdeiros encontraram apenas escritos caóticos, e nenhum labirinto. O sinólogo Stephen  Albert assim resume sua hipótese a respeito: “ Ts’ui Pen teria dito uma vez ‘ Retiro-me para escrever um livro’ . E outra: ‘ Retiro-me para construir um labirinto’ . Todos imaginaram duas obras ; ninguém pensou que livro e labirinto eram um só objeto”. Tal pista foi-lhe sugerida por um fragmento de carta, em que Ts’ui Pen escrevia: “ Deixo aos vários futuros ( não a todos) meu jardim de caminhos que se bifurcam”. “ Quase de imediato”, refere Albert, “ compreendi; o jardim dos caminhos que se bifurcam era o romance caótico; a frase  ‘vários futuros ( não a todos)’  sugeriu-me a imagem da bifurcação no tempo, não no espaço. Em todas as ficções, cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas, opta por uma e elimina as outras; na do quase inextricável Ts’ ui Pen, opta, simultaneamente, por todas. Cria, assim, diversos futuros, diversos tempos, que também proliferam e se bifurcam. Daí as contradições do romance”. As variações a que eram submetidos os relatos de Ts’ui Pen não constituíam o capricho ocioso de um romancista menor, nem um experimento teórico mundano, mas respondiam a uma inquietação metafísica, a uma questão filosófica maior que o ocupara ao longo de toda a sua vida: o abismal problema do tempo.

Eis como Albert o explica a um interlocutor ilustre, descendente de Ts’ui Pen: “O jardim dos caminhos que se bifurcam é uma imagem incompleta, mas não falsa, do universo tal como o concebia Ts’ui Pen. Diferentemente de Newton e de Schopenhauer, seu antepassado não acreditava num tempo universo, absoluto. Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam , se bifurcam, se cortam ou se secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades. Não existimos na maioria desses tempos; em alguns o senhor existe e não eu. Noutros, eu, não o senhor; noutros, os dois (…) O tempo se bifurca perpetuamente em inumeráveis futuros. Num deles sou seu inimigo”.

Assim como Ts’ui Pen e diferentemente de Newton e Schopenhauer,  Deleuze não acredita num tempo uniforme , absoluto, mas em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram abrange todas as possibilidades. Cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas, ao invés de optar por uma e eliminar as outras, opta por todas, isto é , cria múltiplos futuros, diversos tempos que também proliferam e bifurcam, produzindo essa pululação de vidas disparatadas. É  preciso, dizia Deleuze, recusar a regra de Leibniz segundo a qual os mundos possíveis não podem ser trazidos à existência.

Ora percebe-se uma intrigante tese sobre a multiplicidade temporal. Deleuze trabalha  inúmeros tempos em sua obra nem sempre compatíveis entre si, como se a inspiração borgeana atravessasse não só esse obscuro objeto filosófico, mas também e sobretudo sua própria elaboração e feitura.

Interessante que entre Ts’ui Pen e Deleuze há uma separação temporal de muitos séculos, viveram em épocas totalmente diversas, porém ambos estão ao mesmo tempo juntos compartilhando a multiplicidade temporal. E nesse momento ( nesse tempo ) se encontram. 

Tempos transcendentais?
                                           
Referência

PELBART, Peter Pál, O tempo não-reconciliado, in Gilles Deleuze: uma vida filosófica, tradução Ana Lúcia de Oliveira,  editora 34.