TEMPOS POSSÍVEIS
(por
Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)
RESUMO: Este artigo tem por
finalidade apresentar uma apertada síntese
sobre a perspectiva de tempo de Ts’ui Pen e
Deleuze.
Ts’ui Pen é o governador de uma província
chinesa, douto em astronomia, astrologia, livros canônicos, além de enxadrista,
poeta e calígrafo. Borges conta que ele renunciou os prazeres “da opressão , da
justiça, do numeroso leito, dos banquetes e ainda da erudição” a fim de compor
um livro e um labirinto. Com tal propósito
enclausurou-se por treze anos no Pavilhão da Límpida Solidão. Depois de sua
morte, no entanto, os herdeiros encontraram apenas escritos caóticos, e nenhum
labirinto. O sinólogo Stephen Albert
assim resume sua hipótese a respeito: “ Ts’ui Pen teria dito uma vez ‘ Retiro-me
para escrever um livro’ . E outra: ‘ Retiro-me para construir um labirinto’ .
Todos imaginaram duas obras ; ninguém pensou que livro e labirinto eram um só objeto”.
Tal pista foi-lhe sugerida por um fragmento de carta, em que Ts’ui Pen
escrevia: “ Deixo aos vários futuros ( não a todos) meu jardim de caminhos que
se bifurcam”. “ Quase de imediato”, refere Albert, “ compreendi; o jardim dos
caminhos que se bifurcam era o romance caótico; a frase ‘vários futuros ( não a todos)’ sugeriu-me a imagem da bifurcação no tempo, não
no espaço. Em todas as ficções, cada vez que um homem se defronta com diversas
alternativas, opta por uma e elimina as outras; na do quase inextricável Ts’ ui
Pen, opta, simultaneamente, por todas. Cria, assim, diversos futuros, diversos
tempos, que também proliferam e se bifurcam. Daí as contradições do romance”.
As variações a que eram submetidos os relatos de Ts’ui Pen não constituíam o
capricho ocioso de um romancista menor, nem um experimento teórico mundano, mas
respondiam a uma inquietação metafísica, a uma questão filosófica maior que o
ocupara ao longo de toda a sua vida: o abismal problema do tempo.
Eis como Albert o explica a um
interlocutor ilustre, descendente de Ts’ui Pen: “O jardim dos caminhos que se
bifurcam é uma imagem incompleta, mas não falsa, do universo tal como o
concebia Ts’ui Pen. Diferentemente de Newton e de Schopenhauer, seu antepassado
não acreditava num tempo universo, absoluto. Acreditava em infinitas séries de
tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e
paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam , se bifurcam, se cortam ou se
secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades. Não existimos na
maioria desses tempos; em alguns o senhor existe e não eu. Noutros, eu, não
o senhor; noutros, os dois (…) O tempo se bifurca perpetuamente em inumeráveis
futuros. Num deles
sou seu inimigo”.
Assim como Ts’ui Pen e diferentemente
de Newton e Schopenhauer, Deleuze não
acredita num tempo uniforme , absoluto, mas em infinitas séries de tempos, numa
rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos.
Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que
secularmente se ignoram abrange todas as possibilidades. Cada vez que um homem
se defronta com diversas alternativas, ao invés de optar por uma e eliminar as
outras, opta por todas, isto é , cria múltiplos futuros, diversos tempos que
também proliferam e bifurcam, produzindo essa pululação de vidas disparatadas. É preciso, dizia Deleuze, recusar a regra de
Leibniz segundo a qual os mundos possíveis não podem ser trazidos à existência.
Ora percebe-se uma intrigante tese
sobre a multiplicidade temporal. Deleuze trabalha inúmeros tempos em sua obra nem sempre compatíveis
entre si, como se a inspiração borgeana atravessasse não só esse obscuro objeto
filosófico, mas também e sobretudo sua própria elaboração e feitura.
Interessante que entre Ts’ui Pen e
Deleuze há uma separação temporal de muitos séculos, viveram em épocas
totalmente diversas, porém ambos estão ao mesmo tempo juntos compartilhando a
multiplicidade temporal. E nesse momento ( nesse tempo ) se encontram.
Tempos transcendentais?
Referência
PELBART, Peter Pál, O tempo não-reconciliado,
in Gilles Deleuze: uma vida filosófica, tradução Ana Lúcia de
Oliveira, editora 34.