VIGIAR E PUNIR - O CORPO DOS CONDENADOS
(Por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)
Resumo: Este artigo é uma apertada síntese do “O corpo dos condenados”, de "Vigiar e Punir”, de Michel Foucault. Nele constataremos o deslocamento das penas de sofrimentos corporais gravíssimas à suspensão de direitos.
Foucault inicia o capítulo I “O corpo dos condenados" com o caso Damiens, quando na metade do século XVIII (1757) em Paris, autor de um parricídio foi condenado ao suplício, primeiro a pedir perdão publicamente e logo em seguida a ser esquartejado e queimado publicamente, em frente a igreja de Paris.
Três décadas mais tarde, por volta de 1787, o regulamento redigido por Léon Faucher para a “Casa de jovens detentos em Paris”, estabelecia horário para tudo, era um total controle sobre os detentos através do horário. Através deste estabeleciam as tarefas, controlava-se toda a vida do detento.
O filósofo apresenta dois exemplos bem diversos para comparação, o suplício e a utilização de tempo. Constata-se que eles não sancionam os mesmos crimes, não punem os mesmo gênero de delinquentes, mas definem bem, cada um deles, um certo estilo penal.
Menos de um século medeia entre ambos. É a época em que foi redistribuído, na Europa e nos Estados Unidos, toda a economia do castigo. Época de grandes “escândalos” para a justiça tradicional, época dos inúmeros projetos de reformas, nova teoria da lei e do crime, nova justiça moral ou política do direito de punir. Para justiça penal uma nova era.
Dentre tantas modificações Foucault atem-se a uma: o desaparecimento dos suplícios.
Observa o pensador que, no fim do século XVIII e começo do XIX, a despeito de algumas grandes fogueiras, a melancólica festa de punição vai-se extinguindo.
Beccaria há muito dissera: “ O assassinato que nos é apresentado como um crime horrível, vemo-lo sendo cometido friamente, sem remorsos ”. É indecoroso ser passível de punição, mas pouco glorioso punir.
O filósofo observa que, o sofrimento físico, a dor do corpo não são mais os elementos constitutivos da pena. O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos. Tanto é assim que, os rituais modernos de execução capital dão testemunho desse duplo processo - supressão do espetáculo e anulação da dor.
Em 1792 aparece a guilhotina , a morte então é reduzida a um acontecimento visível e instantâneo.
Em princípios do século XIX desaparece o grande espetáculo da punição física, o corpo supliciado é escamoteado. Exclui-se do castigo a encenação da dor. Entra-se na época da sobriedade punitiva., pode-se considerar o desaparecimento dos suplícios como um objetivo mais ou menos alcançado, por volta de 1830 a 1848. Claro, tal afirmação em termos globais deve ser bem entendida. As transformações não se fazem em conjunto nem de acordo com um único processo. Houve atrasos. Paradoxalmente, a Inglaterra foi um dos países mais reacionários ao cancelamento dos suplícios. Deve-se levar em consideração também as acelerações e recuos que o processo global seguiu entre 1760 e 1840. Tudo isto torna bem irregular o processo evolutivo que se desenvolveu na virada do século XVIII e XIX.
Assim, quando se chega em 1840 embora os mecanismos punitivos tenham adotado novo tipo de funcionamento, o processo ainda não chegou ao fim. A redução do suplício era uma tendência com raízes na grande transformação de 1760-1840, ms que não chegara a termo.
Na realidade a prisão nos seus dispositivos mais explícitos sempre aplicou certas medidas de sofrimento físico. Os castigos como trabalhos forçados ou prisão - privação pura e simples da liberdade - nunca funcionaram sem certos complementos punitivos referentes ao corpo: redução alimentar, privação sexual, expiação física, masmorra. Permanece, portanto, um fundo “supliciante" (sofrimento físico) nos modernos mecanismos da justiça criminal, fundo que não está inteiramente sob controle.
Mas se não é mais ao corpo que se dirige a punição, em suas formas mais duras, sobre o que, então , se exerce? A punição deveria cair não sobre o corpo , mas sobre a alma, segundo os teóricos (1780), período que ainda não se encerrou.
Faz 150 ou 200 anos que a Europa implantou seus novos sistemas de penalidades, e desde então os juizes, pouco a pouco, começaram a julgar coisa diferente além dos crimes a “alma"dos criminosos.
E, com isso começaram a fazer algo diferente de que julgar, ou seja, no próprio cerne da modalidade judicial do julgamento, outros tipos de avaliação se introduziram discretamente, modificando no essencial suas regras de elaboração.
Assim a sentença que condena ou absolve não é simplesmente um julgamento de culpa, uma decisão legal que sanciona, ela implica uma apreciação de normalidade e uma prescrição técnica para uma normalização possível. O juiz de hoje, magistrado ou jurado, faz outra coisa, diferente de julgar.
Ele não julga sozinho. Ao longo do processo penal, e da execução da pena, prolifera toda uma série de instâncias anexas. Pequenas justiças e juizes paralelos ou psicológicos, magistrados da aplicação das penas, educadores, funcionários da administração penitenciária fracionam o poder legal de punir; dir-se-á que nenhum deles partilha realmente o direito de julgar, mas desde que as penas e medidas de segurança definidas pelo tribunal não são determinadas de uma maneira absoluta, são sem dúvida mecanismos de punição legal que lhe são colocados à sua apreciação; juizes anexos.
Desde que funciona o novo sistema penal, definido pelos grandes códigos dos séculos XVIII e XIX, um processo global levou os juizes a julgar coisas bem diversas do que crimes, foram levados em suas sentenças a fazer coisas diferentes de julgar; e o poder de julgar foi, em parte, transferido a instâncias que não são a dos juizes da infração.