quarta-feira, 18 de maio de 2016

Refletindo com Aristóteles


A Causalidade do Motor Imóvel Segundo Aristóteles
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)




RESUMO: Este artigo é um resumo do Capítulo que trata A Causalidade do Motor Imóvel Segundo Aristóteles do livro “Novos Estudos Aristotélicos II - Física, antropologia e metafísica” de Enrico Berti. Nele será abordado: A Interpretação Tradicional, O Motor Imóvel como causa eficiente, O Motor Imóvel como causa final, O Motor Imóvel como fim para si mesmo, O Motor Imóvel como objeto de amor, A Origem da interpretação tradicional e O Fim do Homem.


1. A Interpretação Tradicional

A interpretação tradicional sobre a causalidade do motor imóvel, teorizada por Aristóteles no livro XII da Metafísica, é a de que ela consiste essencialmente em uma causalidade final, ou seja, que o motor imóvel move como objeto de amor da parte daquilo que por ele é movido. Esta interpretação foi formulada pela primeira vez de maneira rigorosa pelo primeiro grande comentador da Metafísica, Alexandre de Afrodísia, para quem o motor imóvel seria objeto de amor da parte do céu e o céu, sendo animado, mover-se-ia circularmente com o objetivo de imitar a imobilidade do motor imóvel. Ela foi retomada, com algumas diferenças, por todos os comentadores posteriores, tanto antigos, passando pelos medievais  até os comentadores renascentistas.

Somente na historiografia  do séc. XIX esta linha interpretativa foi colocada em questão: de fato, ela foi substituída, em Schwegler e Zeller, deixando para trás o conceito de imitação, todavia continuando a atribuir ao motor imóvel uma causalidade de tipo finalístico. Apenas Franz Bretano, negou decididamente a causalidade de tipo exclusivamente finalístico, interpretando-a antes como uma causalidade eficiente. Todavia, em seu desejo de conciliar Aristóteles com o cristianismo, Bretano foi longe demais, atribuindo a Aristóteles uma autêntica forma de criacionismo, porém o conceito de criação a partir do nada era completamente estranho aos filósofos gregos.

A posição da historiografia do séc. XX foi emblematicamente representada por W.D.Ross, que reconheceu,  que a luz do que o Estagirita afirma no livro XII, capítulo 7, que o Motor imóvel move como objeto de amor, para ele, estas passagens devem ser interpretadas no sentido de que a causa motora age como uma causa final. De resto, segundo Ross, o Motor imóvel não pode ser causa eficiente  na medida em que é desprovido de vontade. Por  isso, o grande aristotelista inglês repropôs a interpretação tradicional, sustentando que o céu, sendo animado, move-se circularmente com o fim de imitar o motor imóvel, posto ser o movimento circular aquele que mais se assemelha à imobilidade. No entanto, com isso, reconhece Ross, a teologia de Aristóteles nos oferece uma imagem de Deus muito distante da imagem cultivada pelo cristianismo, vale dizer, uma imagem, substancialmente insuficiente, o que confirma a tese de Kant segundo a qual a propósito de Deus, antes  que confiar na razão, isto é, na metafísica, vale muito mais confiar na razão prática, quer dizer, na ética.

            A interpretação de Ross  foi largamente dominante na historiografia do séc. XX. Somente na última década do século apareceram alguns estudos voltados a reabrir o debate, atribuindo ao motor imóvel de Aristóteles uma  causalidade de tipo eficiente.

2. O Motor Imóvel Como Causa Eficiente

No capítulo 6 do livro XII da Metafísica Aristóteles concebe o Motor imóvel essencialmente como causa motora, isto é, como causa eficiente do movimento eterno e contínuo do céu, é algo reconhecido. Isto resulta antes de mais nada da afirmação de Aristóteles segundo a qual para explicar este movimento é necessário um princípio motor eficiente ( 1071b 12).

Assim, o motor do céu deve ser não somente em ato, mas completamente em ato, sendo tal que a sua própria substância seja o ato, sem conter nenhum resíduo de potencialidade sob nenhum aspecto: em suma, ele deve ser ato puro ( 1071b 19-20). Por isto é um motor completamente imóvel. O motor imóvel de Aristóteles vem, assim, reunir sem si todas as qualidades que eram próprias aos princípios admitidos por Platão: a imobilidade, própria das ideias, dos  números ideais e dos seus princípios, e a causalidade motora, isto é, a eficiência, a atividade, própria da alma. Trata-se de uma espécie de alma, porém transcendente com relação ao céu, e portanto totalmente imóvel. Não há dúvida de que, até este ponto, Aristóteles nos apresenta um motor imóvel dotado de causalidade eficiente, e a polêmica contra Platão, que caracteriza toda a argumentação com a qual ele mostrou a sua necessidade, pretende justamente sublinhar, como um traço plenamente original em relação às ideias de Platão, o seu caráter de causa eficiente. Se a meta da filosofia primeira de Aristóteles é mostrar a existência de substâncias imóveis, a sua originalidade com respeito à filosofia de Platão é mostrar que estas substâncias imóveis não podem ser as ideias, devendo ser substâncias imóveis motoras, como os motores necessários para explicar os movimentos dos céus ( que, como se sabe, para Aristóteles são múltiplos, de mesmo número que as esferas celestes). 

3. O Motor Imóvel Como Causa Final

Ao lado desta concepção encontramos, no mesmo livro XII  da Metafísica, mais precisamente no capítulo 7, uma concepção do motor imóvel como causa final que na interpretação tradicional foi usada para corrigir e justamente substituir a concepção exposta no capítulo 6. Passemos agora ao exame dos seus elementos mostrando como eles podem ser interpretados de um modo novo e mais satisfatório.

O motor imóvel ė o bem supremo entendido não como objeto mais desejável, na medida em que não é praticável, mas como o objeto mais desejável em si mesmo, assim como ele é o objeto mais inteligível não para o homem, mas em si mesmo. Assim, toda a argumentação concernente ao primeiro desejável e ao primeiro inteligível se funda não sobre uma identificação entre o motor imóvel e o objeto do desejo, mas antes numa comparação, num símile entre o motor imóvel, primeiro inteligível e primeiro desejável em si mesmo, e aquilo que é objeto de intelecção e de desejo da parte do homem: em ambos os casos, o das realidades inteligíveis e desejáveis em si mesmas e das realidades inteligíveis e desejáveis para nós, o primeiro termo da série é o bem supremo, respectivamente em si mesmo e para nós; mas trata-se de realidades diferentes, como prova a conclusão de toda a argumentação, segundo a qual, o primeiro é sempre o bem supremo ou algo de análogo a ele. O análogo do bem supremo em si é para o homem a felicidade. Todo o discurso é, em suma, precisamente uma analogia, vale dizer, uma comparação.

Neste ponto Aristóteles introduz a frase que, segundo a interpretação tradicional, provaria que o motor imóvel move como causa final:  que o fim está entre as realidades imóveis mostra-o a divisão; com efeito, o fim é para alguém, dos quais um está - entre os imóveis - enquanto o outro não está ( 1072b 1-3).  No entanto, o texto dessa passagem é controverso. Com efeito, a principal família de manuscritos, compostas pelo Parisiense E e pelo Vienense J, ambos do século X, reproduz o texto assim como acabamos de traduzi-lo, enquanto o manuscrito Laurentino A, do séc. XII, depois de  - para alguém - acrescenta - de alguém - . Como o texto assim integrado não faz qualquer sentido, os editores modernos inseriram entre para alguém e de alguém a conjunção kaí, entendendo que se trata de dois significados diferentes do fim. Mas desse modo também o texto não tem sentido. Em contraste, ele adquire um sentido quando se acolhe a lição que parece estar na base do comentário de Averróis, segundo a qual o texto faria alusão a dois tipos de fim, aquilo que é fim apenas para alguém e aquilo que é fim em si mesmo.

Mas talvez esse mesmo sentido possa ser deduzido do texto transmitido pela principal família de manuscritos, quando conservado sem nenhuma correção, como propõe um artigo atualmente em curso de publicação, onde, de outro lado, uma interpretação mais complexa é sugerida. Em todo caso, para Enrico Berti parece que o contexto exige essa leitura, uma vez que a divisão à qual Aristóteles alude é muito provavelmente a distinção, entre o que é inteligível e desejável em si e o que é inteligível e desejável para nós, ou melhor, para alguém. Com efeito, é claro que aquilo que é desejável para alguém deve ser praticável, quer dizer, realizável por meio de uma ação, como por exemplo a saúde, ou a felicidade, sendo, portanto, impossível que se encontre entre as realidades imóveis, uma vez que vem ao ser graças a uma ação que o realiza; em contraste, aquilo que é desejável em si mesmo pode muito bem encontrar-se entre as realidades imóveis. Este último é o caso do motor imóvel, sobre o qual Aristóteles, depois de demonstrar que ele é o primeiro inteligível em si e o primeiro desejável em si, ou seja, que ele é o bem supremo, sente a necessidade de acrescentar que é também fim, já que em sua visão o fim e o bem sempre coincidem. Mas é claro que ele não pode ser fim para alguém, uma vez que neste caso deveria ser praticável, o que impediria de ser imóvel; por isso ele deve ser fim em si mesmo, ou seja, fim para si mesmo. Assim, a interpretação tradicional, segundo a qual o motor imóvel seria o fim do céu e o moveria enquanto objeto de desejo da parte do céu, não só não encontra nessa passagem qualquer fundamento como é explicitamente excluída pela afirmação de Aristóteles de que o motor imóvel não é fim para alguém.   

4. O Motor Imóvel Como Fim Para Si Mesmo

A interpretação que acaba-se de propor da passagem de Met. XII 7 concernente ao motor imóvel como fim para si mesmo é confirmada por uma conhecida passagem do De caelo na qual o Estagirita formula e resolve a seguinte aporia: por que os astros que se encontram na região intermédia entre o primeiro céu e a terra se movem com movimentos mais numerosos do que os que se encontram mais próximos respectivamente ao céu e à terra? Para responder a essa pergunta ele observa que, a propósito dos astros, cumpre assumir que eles não são totalmente inanimados, mas participam da ação e da vida.

Para Aristóteles a terra efetivamente não se move, porque não pode realizar nenhum fim. Os corpos celestes que estão próximos da terra movem-se com poucos movimentos, uma vez que jamais atingem o termo último mas se aproximam do princípio mais divino na medida em que lhes possível. O primeiro céu o atinge logo com um único movimento. E aqueles que estão no meio entre o primeiro céu e os último chegam a ele por meio de múltiplos movimentos ( 292b 10-25).

O princípio mais divino nada tem a ver com o motor imóvel, correspondendo ao ótimo para cada um dos corpos celestes, isto é, o seu fim, o bem que por ele pode ser obtido, como mostra eloquentemente o exemplo da saúde. Por isso o primeiro céu também tem como fim não o motor imóvel, mas o seu próprio fim, aquilo que para ele é a condição ótima ou - podemos dizer, usando a linguagem usada para se referir ao homem, e ainda no âmbito da hipótese heurística da animação dos céus - a sua felicidade. Isto confirma que o motor imóvel não é fim do céu, tendo em vista que ele é um fim não praticável, e que, portanto, nada nem ninguém pode atingir, muito menos o primeiro céu, de seu lado, tem um fim, mas este não é o motor imóvel, mas o seu estar bem, que ele atinge mediante o movimento circular. Portanto, quando Aristóteles, em Met. XII 7, afirma que o Motor imóvel é um fim ele não quer dizer com isso que ele é o fim do céu. A tese de que ele move o céu como causa final, defendida pela interpretação tradicional, é assim desprovida de todo fundamento. 

5. O Motor Imóvel Como Objeto De Amor

Na passagem de 1072b 12-14 fica claro que o ato do Motor imóvel é um melhor, uma atividade, e que esta é prazer. Apenas em consequência do fato de que a atividade do Motor imóvel é prazer Aristóteles pode afirmar que ela é pensamento: com efeito, a atividade que para nós é a melhor, ainda que por um breve tempo, é precisamente o pensamento, quer dizer, o conhecer. Mas o pensamento que é por si mesmo, tem como objeto o que é ótimo por si mesmo. De resto, como ele poderia amar a si mesmo se não conhecesse a si mesmo? E, se é pensamento sempre em ato, ele encontra-se sempre na condição na qual nós nos encontramos apenas por um breve tempo; mas uma vez que esta é a condição própria do deus deve-se também admitir que o Motor imóvel é um deus (1072 b 17-26).

Observa Aristóteles a títulos de explicação que, se o Motor imóvel é pensamento, e o pensamento é uma forma de vida, pode-se dizer que o Motor imóvel possui a vida, aliás uma vida ótima e eterna. Mas esta corresponde ao tipo de vida que os gregos do seu tempo atribuíam aos deuses, afirma Aristóteles :

s dizemos que o deus é um vivente eterno e ótimo, porquanto ao deus pertencem uma vida                                                                                                                                                               e uma idade contínuas e eternas: este, com efeito, é o deus ( 1072b 26-30).

Mesmo que a frase final não faça referência ao Motor imóvel, mas à definição de deus que acaba de ser dada, não há dúvida de que o Motor imóvel também é um deus. Mas esta não é a tese que Aristóteles quer demonstrar: ela é, por assim dizer, apenas um corolário da tese principal de que o Motor imóvel conhece a si mesmo e ama a si mesmo.

6. A Origem da Interpretação Tradicional

A interpreta tradicional revela-se uma interpretação platonizante do texto aristotélico, isto é, uma interpretação que busca conciliar Aristóteles e Platão. Não é motivo de surpresa, com efeito, que ela tenha justamente se tornado tradicional, uma vez que é de conhecimento geral que a tradição aristotélica  na Antiguidade foi caracterizada pela intenção de conciliar os dois autores, como propôs-se fazer também o assim chamado médio-platonismo, assim como o movimento que lhe sucedeu, o neoplatonismo.

7. Apêndice:  O Fim do Homem

Visto que o Motor imóvel é a primeira entre as causas motoras, ele é objeto da ciência das causas primeiras, vale dizer, da sabedoria, e visto que ele é um deus pode-se dizer que o conhecimento dele faz parte do fim do homem. Pode-se ainda dizer que o homem tende a assemelhar-se o máximo possível ao deus, na medida em que tem como fim o mesmo tipo de atividade que é próprio do Deus, o conhecimento ( Eth. Nic. X 8, 1178b 20-32).  Mas tudo isso nada tem a ver com a interpretação tradicional da causalidade do Motor imóvel, segundo a qual o céu se move circularmente para imitar a imobilidade do Motor imóvel.


Bibliografia

BERTI, E.,Novos estudos aristotélicos II. Física, antropologia e metafísica, trad. S. Cocucci Leite; C. Camargo Bartalotti e E. de G. Verçosa Filho, São Paulo, Edições Loyola, 2011.

domingo, 17 de abril de 2016

FOUCAULT E A BUSCA DA VERDADE


Inquérito e Prova em Foucault
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)

 

Resumo: Este artigo é uma apertada síntese da Conferência 3 do livro A Verdade e as formas jurídicas de Michel Foucault. Nele os temas tratados serão a prova e o inquérito, com seus traços principais. Constataremos que o sistema de provas tendeu a desaparecer quase que por completo, e o inquérito ressurgiu em dimensões extraordinárias, e permanece até os nossos dias.
 
 

 

Foucault nos conta que, a prova é, na Grécia antiga, o procedimento judicial mais arcaico, sobre o qual veio a prevalecer depois ( a partir do séc. V a.C. aproximadamente) a prática do inquérito. Pela prova  a verdade é judiciariamente estabelecida sem recurso a testemunhas ou a sentenças. Os adversários se afrontavam para saber quem estava errado e quem estava certo. Um lançava ao outro o desafio: “És capaz de jurar diante dos deuses que não fizeste o que eu afirmo?” Diante deste desafio que para eles era uma prova, se o guerreiro renunciasse à prova, renunciasse  a jurar,  renunciasse o desafio, reconhecia assim que cometeu a irregularidade. Em um procedimento como este, declara Foucault ,  confiasse o encargo de decidir não a quem disse a verdade, mas quem tem razão. Na hipótese de ter aceitado o desafio e jurado, a responsabilidade do que iria acontecer seria transposta aos desuses e seria Zeus, punindo o falso juramento, se fosse o caso, que teria com seu raio manifestado a verdade.

 

O pensador observa que, no inquérito, ao contrário, a verdade é determinada por quem “viu e enuncia”, ou seja, é baseada em testemunhos que têm, inclusive, o direito de opor-se ao poder dos governantes. Foucault usa como exemplo a estória de Édipo-Rei, afinal quem matou o rei Laio? Aparece um personagem fundamental, uma testemunha, o pastor, embora sendo um homem sem importância, um escravo, o pastor viu e pode contestar e abater o rei ou o tirano. Segundo Foucault, foi a prática do inquérito que constituiu modelo para formações culturais daquela época: filosofia, retórica, conhecimentos empíricos, baseado que são em testemunhos ( historiadores, botânicos, geógrafos, eta.).

 

Acrescenta Foucault que, na Idade Média, os dois modelos reaparecem. Inicialmente (por volta dos séc. V a XII), prevalece a prova, cujos traços principais, para o pensador são: tratava-se sempre de uma ação  “de estrutura binária”, isto é, em que indivíduos, grupos ou famílias eram diretamente postos em disputa, sem intervenção de qualquer terceiro elemento que representasse a autoridade ou a coletividade ; a verdade se confundia com a vitória do mais forte, o direito constituindo-se num prolongamento ritualizado da guerra. Ressalta que numa sociedade do tipo medieval a circulação de bens era assegurada pela herança, pelos testamentos e mais ainda pelos meios bélicos ( a rapina, a ocupação de um castelo, de uma terra, etc), ficando em segundo plano o comércio.

 

O pensador relata que, a partir dos fins do séc. XII e no decurso do séc.XIII o sistema da prova tende a desaparecer, cedendo lugar ao ressurgimento do inquérito, agora em "dimensões extraordinárias”, já que "seu destino será praticamente coextensivo ao próprio destino da cultura européia ou ocidental”[1]”e de certo modo, para a história do mundo inteiro. Usado inicialmente nas esferas eclesiásticas e nas gestões administrativas, o inquérito é introduzido no âmbito das práticas jurídicas e dali se generalizará como modelo de produção da verdade e de outras práticas. Eis, no âmbito jurídico, os traços principais: a resolução das questões de litígio não se dá diretamente entre os oponentes, mas se impõe “de fora”e “do alto" por um poder simultaneamente judiciário e politico; aparece a figura do “procurador" do rei , representante do soberano, responsável por “dublar"a vítima, uma vez que o próprio rei é lesado porque são descumpridas suas leis; surge a noção de crime como infração, porque um dano não configura mais questão apenas entre indivíduos, grupos ou famílias, mas “também uma ofensa de um indivíduo ao Estado, ao soberano como representante do Estado”; por isso mesmo é da competência do soberano o direito de impor penas e exigir reparações ( frequentemente na forma de “confiscos"que enriquecerão as monarquias)[2]. Para isso é necessário  a inquirição de testemunhas, a busca da reconstituição dos fatos, enfim, a prática do inquérito, como instrumento capaz de substituir o flagrante delito, reatualizando o crime, quando o criminoso não é surpreendido na atualidade de sua falta.

 

Foucault então observa que, recolher testemunhos, reconstituir situações, reunir dados são procedimentos que se estenderão para outras práticas e, sobretudo, para a constituição da verdade na ordem do saber. Assim, nesse quadro, desenvolver-se-ão, principalmente, as ciências empíricas ou da natureza, em domínios “como o da geografia, da astronomia, do conhecimento de climas, etc.”, ou ainda da medicina, da botânica e da zoologia[3].

 

Conclui Foucault que, enquanto o sistema da prova desaparece quase por completo, dele restando talvez a tortura( e mesmo esta “ já mesclada com a preocupação de obter a confissão, prova de verificação”[4]), o modelo do inquérito, ao contrário, permanece e se estende até nossos dias, constituindo ainda hoje a base do sistema jurídico de nossa sociedade.

 

Nenhuma história feita em termos de progresso da razão, de refinamento do conhecimento, pode dar conta da aquisição, da racionalidade do inquérito. Seu aparecimento é um fenômeno político complexo. É a análise das transformações políticas da sociedade medieval que explica como, por que e em que momento aparece este tipo de estabelecimento da verdade a partir de procedimentos jurídicos completamente diferentes.(…) Somente a análise dos jogos de força política, das relações de poder, pode explicar o surgimento do inquérito [5]. (M. Foucault)

 

 

 

Referências:

 

1) FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução: Eduardo Jardim e Roberto Machado. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2013.

2) MUCHAIL, Salma Tannus. Foucault Simplesmente. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
3) REVEL, Judith. Dicionário Foucault. Tradução: Anderson Alexandre da Silva. Rio de Janeiro: Forense Universitária


[1] Ibid., 42-43
[2] Ibid.,51-52.
[3] Ibid., 59.
[4] Ibid.,59.
[5] Ibid.,75.