Morte decorrente de intervenção
policial: o debate em torno do “auto de resistência”.
(por Rafael
Francisco Marcondes de Moraes).*
Introdução
Os conflitos envolvendo a utilização de armas de fogo apresentam alta
probabilidade de culminar na perda de vidas humanas. Essa assertiva é de fácil
percepção na medida em que o grau de letalidade proveniente desses artefatos é
indiscutível e densamente difundido em toda a sociedade.
Não por outra razão, o enfrentamento direto entre criminosos e policiais
por vezes gera mortes, tanto de delinquentes quanto de agentes estatais, e
também de vítimas ou de cidadãos que se encontravam nas imediações do confronto
ou na direção dos projéteis disparados no embate.
Nesse contexto, quando os criminosos resistem à interferência policial
com violência ou ameaça no momento em que seriam abordados ou capturados, a lei
estipula a elaboração de um auto, no qual devem ser registradas as
circunstâncias e expostas as justificativas que ultimaram a atuação da polícia
e a dinâmica dos fatos. Nesses casos, o parâmetro inicial para a apuração do
evento, em geral, será o conjunto das versões alegadas pelos policiais, bem
como por testemunhas e pessoas envolvidas no incidente.
No âmbito policial e no universo jurídico, referido documento
historicamente foi batizado de “auto de resistência” ou “auto de resistência
seguida de morte”, em especial quando ocorre a morte do suposto agressor
trânsfuga da lei em razão do revide pelos agentes policiais (BONFIM, 2010,
p.542; GAYA, 2007).
Embora o assunto seja pouco estudado pela doutrina especializada e pelos
meios de comunicação, importa assinalar que há comando legal que fundamenta o
mencionado “auto de resistência”: o artigo 292, do Código de Processo Penal
-CPP (Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941), cuja redação
original, abaixo colacionada, permanece preservada e vigente até hoje:
“Art.292. Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à
prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as
pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou
para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas
testemunhas”.
Nota-se que o texto do dispositivo legal não traz explicitamente a
nomenclatura “auto de resistência” e muito menos “resistência seguida de
morte”, mas estipula a elaboração de um auto, ou seja, exige que a ação seja
documentada e, por consequencia lógica, seja apurada a sua legitimidade
(veracidade e licitude).
Daí porque o “auto de resistência” sempre figurou, acertadamente, como
uma das formas de instauração de ofício do inquérito policial, servindo o
próprio documento como peça inaugural do procedimento de persecução criminal,
nos mesmos moldes do auto de prisão em flagrante delito (BARROS FILHO, 2010;
CHOUKR, 2009, p.500; SÃO PAULO, 2007, p.39).
Com efeito, a partir da lavratura do “auto de resistência”, como regra
são reduzidas a termo (formalizadas) as oitivas de todos os policiais,
testemunhas e pessoas envolvidas na ocorrência que estejam presentes,
determinando-se a apreensão e requisição de exame pericial das armas de fogo
utilizadas na ação e submissão dos possíveis atiradores a exame residuográfico[1].
Também costumam ser requisitados exames para o local do evento, com a adoção de
todas as demais providências de polícia judiciária para a cabal apuração dos
fatos, de acordo com as circunstâncias que o caso concreto apresentar. Toda a
documentação integrará o inquérito policial, que deverá confirmar ou infirmar a
versão originariamente sustentada, ou seja, buscará a verdade atíngivel, aquilo
que efetivamente aconteceu (ROVÉGNO, 2005, p.91).
Hodiernamente, o que se
busca por meio do inquérito policial é realizar um diagnóstico para se
estabelecer o que provavelmente ocorreu, consistindo, portanto, em uma
retrospectiva, ou seja, em uma tarefa voltada para o passado, que procura
idealizar e reconstruir o fato investigado por meio da análise de todos os
elementos que com ele possuam algum vínculo.
A reconstituição dessa “história” norteia todo o trabalho policial
investigativo, concretizado no inquérito policial, sustentado no tripé
legalidade, ciência e lógica: exige respaldo legal de suas intervenções e atos,
acompanhado da utilização e constante atualização dos recursos científicos e
tecnológicos, em todas as áreas de conhecimento humano, e a atenção ao reto
exercício do raciocínio lógico para suas conclusões (DESGUALDO, 2006, p.19).
Nota-se que hoje o inquérito policial deve funcionar como um filtro
garantista, assegurador de uma intervenção estatal harmônica aos direitos e
garantias fundamentais, que viabilize a persecução penal plena nos casos
necessários e fundados e, acima de tudo, impeça injustiças e repressões
inúteis, arbitrárias ou precipitadas (TRINDADE, 2012, p.20; ZACCARIOTTO, 2005,
p.213).
Ocorre que, em virtude de lamentáveis episódios de abusos e fraudes para
encobrir homicídios perpetrados por maus policiais, os famigerados “autos de
resistência” passaram a receber severas críticas, tanto da mídia quanto de
estudiosos das ciências sociais, bem como de organismos internacionais atuantes
na defesa dos direitos humanos.
Houve uma banalização e uma distorção na comunicação para a elaboração
do documento, e o “auto de resistência” passou a simbolizar, em muitos casos,
falsas e desvirtuadas notícias com o fito de ocultar situações de uso excessivo
e arbitrário de força letal e assassinatos praticados por desonrados agentes
das forças policiais (SOUZA, 2010, p.156).
Destaca-se, nesse panorama, o triste e emblemático caso da morte da
juíza carioca Patricia Acioli, assassinada por atuar rigorosamente na apuração
de um grupo de extermínio composto por policiais militares, os quais se tratavam
na verdade de criminosos covardes, envolvidos em ocorrências de simuladas
“resistências seguidas de morte” e que forjavam “autos de resistência” no
escopo de deturpar e mascarar homicídios de desafetos nas atividades criminosas
perpetradas pelo bando de “pseudopoliciais”[2].
Esse cenário repercutiu na edição da Resolução nº 8, de 20 de dezembro
de 2012, do Conselho de Direitos de Defesa da Pessoa Humana, vinculado à
Secretaria Especial dos Direitos Humanos, órgão da Presidência da República,
ato no qual foi recomendado que as nomenclaturas “auto de resistência” e
“resistência seguida de morte” não fossem mais empregadas pelas autoridades
policiais no registro de boletins de ocorrência, inquéritos policiais e notícias de
fatos criminosos.
Nessa toada, no âmbito do Estado de São Paulo, a Secretaria de Segurança
Paulista editou a Resolução nº 5, de 07 de janeiro de 2013, determinando a
substituição das designações “auto de resistência” e“resistência seguida de
morte” pelas expressões “morte decorrente de intervenção policial” ou “lesão
corporal decorrente de intervenção policial”,no caso de óbito ou ferimento do
suposto criminoso, respectivamente.
A tônica acerca do “auto de resistência” reside, no fundo, na efetiva e
isenta apuração dos fatos, e não tão-somente no título a ser consignado para o
documento. O que se espera é que o fato seja vigorosamente perscrutado desde a
etapa extrajudicial do processo penal, por uma autoridade estatal com
independência funcional que propicie o cotejo da versão sustentada pelos
agentes policiais com todos os demais elementos e circunstâncias correlatas
para se extrair e elucidar a verdade.
Resta evidente que apenas uma investigação policial imparcial,
transparente e séria terá aptidão para inibir e sobretudo reprimir eventuais
práticas delituosas por “pseudopoliciais“ (criminosos travestidos formalmente
de policiais), que simulem ações supostamente legítimas, ocultando homicídios
por eles praticados, seja utilizando de artifícios e subterfúgios como a fraude
no cenário do evento e indevida remoção de corpos, seja forjando a posse ilegal
de armas de fogo ou de drogas para tentar justificar o assassinato do fictício
criminoso.
Sob a ótica jurídica, os aspectos fundamentais que envolvem a apuração
preliminar de uma morte decorrente de intervenção policial consistem na
presunção de legitimidade da conduta do agente público e no reconhecimento de
excludentes de ilicitude pelo delegado de polícia.
Isso porque a ação policial, para ser autêntica e lícita, precisa decorrer
da atuação sob a causa justificante de estrito cumprimento do dever legal no
primeiro instante (visando frustar a conduta criminosa em flagrante delito ou
capturar um agente procurado pela Justiça) e, no momento subsequente, deve
estar albergada pela descriminante da legítima defesa própria ou de terceiro em
face da agressão injusta dos deliquentes submetidos à intervenção estatal. Em
tais situações, a versão dos policiais em geral será a primeira a ser ofertada,
desencadeando a apuração dos fatos pela polícia judiciária. A avaliação
técnico-jurídica dessas excludentes (estrito cumprimento do dever legal e
legítima defesa) e a justa apuração de todo o contexto fático na etapa
extrajudicial do processo penal exprimem a exata dimensão da incumbência e do papel
constitucional do delegado de polícia.
Presunção de legitimidade dos atos e condutas estatais
Quanto ao primeiro ponto, ainda que se presuma legítima (verdadeira e
lícita) a notícia comunicada pelo policial que apresenta a ocorrência, a qual,
em sentido amplo, pode ser considerada uma conduta compreendida por atos
administrativos, tal presunção será sempre relativa, admitindo qualquer meio de
prova para que seja impugnada e demonstre o que realmente aconteceu, caso o mau
policial tenha alegado uma versão distorcida e falaciosa (SPITZCOVSKY, 2005,
p.110).
Como representante do Estado, o policial precisa atuar dentro dos
estritos limites da lei e somente empregar força na intensidade
denominada“moderada”, ou seja, proporcional à agressão injusta exercida pelo
delinquente transgressor.
Nesse diapasão, o mencionado artigo 292, do CPP, precisa ser
interpretado por meio da conjugação com o artigo 284, do mesmo diploma
processual[3], e com o artigo 329, do Código Penal (Decreto-lei nº
2.848/1941)[4], definidor do crime de resistência, os quais
estabelecem que o emprego de força pelos organismos policiais deve ocorrer em
situações excepcionais e ser equilibrado ao necessário para neutralizar o
ataque criminoso, somente em casos de efetiva oposição violenta ou ameaçadora à
execução do ato legal.
Além de buscar preservar a própria integridade física, o policial deve,
acima de tudo, proteger a vida de vítimas e de todos cidadãos que estejam
expostos ao evento, inclusive do próprio criminoso causador da desordem pública.
O policial, diferente do particular, encontra-se sob um regime de
legalidade pública, e só pode fazer aquilo expressamente autorizado em lei,
consubstanciado num preceito normativo positivo, por permitir ao agente público
restritas formas de agir. Já o cidadão comum subordina-se a um preceito
normativo negativo, traduzido na legalidade privada: pode fazer tudo, salvo
aquilo proibido em lei, a qual veda ao particular específicas formas de agir.
Com isso, em caso de suspeita de transgressão pelo agente estatal,
impõe-se uma rigorosa apuração para restabelecer a ordem pública e possibilitar
a devida responsabilização funcional e penal. Num Estado Democrático de
Direito, é inconcebível um policial, como agente essencial para a pacificação
social e manutenção do sistema jurídico, atuar na prática como um justiceiro ou
capanga, dissociado da lei, valendo-se de sua condição para praticar
atrocidades e se tornando autor de delitos ao invés de combater a criminalidade.
Por tais razões, a imparcialidade na investigação criminal, comprometida
acima de tudo com a verdade para a obtenção de elementos probatórios,
independente de quem seja favorecido ou prejudicado, revela-se imprescindível
para uma persecução penal escorreita e justa.
Reconhecimento de excludentes pelo delegado de polícia
No tocante ao segundo aspecto, a orientação da melhor doutrina aponta
que o reconhecimento de descriminantes pelo delegado de polícia, longe de ser
uma mera faculdade, consiste em um dever legal da autoridade policial, a qual,
diante de uma causa que exclua a ilicitude da conduta, deverá reconhecê-la,
ainda que provisoriamente, sob pena de inverter a lógica do sistema legal e
cometer graves e irreparáveis injustiças, como o absurdo encarceramento de
vítimas ou o constrangimento de pessoas inocentes sem o devido respaldo na lei,
o que beira uma teratologia jurídica, a causar indignação e perplexidade no
seio social (CABETTE, 2011; CAPEZ, 2006, p.261; GOMES Luiz Flavio; SANCHES, Rogério;
MACIEL, Silvio, 2011, p.138; PAULO FILHO, 2010, p.71-72).
De igual sorte, o reconhecimento provisório de qualquer das causas
descriminantes pela autoridade policial, superando equivocada cogitação de
prisão em flagrante, a qual inclusive consubstancia ato ilegal nos casos em que
os elementos informativos coligidos indiquem a situação justificante, é medida
de rigor a ser adotada. Como asseverado, trata-se de um dever legal do delegado
de polícia, visto que“não há crime” quando a pessoa age sob o manto da
excludente, conclusão extraída da exegese e da literalidade do artigo 23, caput,
do Código Penal, bem como dos princípios constitucionais da dignidade, da
legalidade e da presunção de inocência, e até mesmo do senso comum (CAMPOS,
2011; MARREY, 1991, p.386-387; PAGLIONE, 2007).
As excludentes de ilicitude estão arroladas nos incisos do artigo 23, do
Código Penal: estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do
dever legal e exercício regular de direito e, como a própria designação sugere,
eliminam a antijuridicidade da conduta do agente. Não há, portanto, fato típico
e antijurídico (o fato é lícito), logo, não há crime a ser imputado, em
princípio.
O delegado de polícia realiza um juízo de deliberação tanto da
tipicidade quanto (e principalmente) da ilicitude do fato que lhe é
apresentado, ou seja, avalia todos os elementos constitutivos do crime, e
jamais pode fazer um mero juízo de tipicidade para exarar sua decisão, ainda
que numa etapa urgente e de cognição sumaríssima, típica de possível estado
flagrancial.
Há quem alegue que o reconhecimento da justificante em situação de
estado de suposta flagrância delitiva só poderia ser realizado pelo juiz de
direito, em virtude do texto do parágrafo único, do artigo 310, do CPP (NUCCI,
2011, p. 45). O dispositivo foi assim atualizado pela Lei Federal nº
12.403/2011:
“Se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente
praticou o fato nas condições constantes dos incisos I a III do caput do art.
23 do Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, poderá,
fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de
comparecimento a todos os atos processuais, sob pena de revogação”.
Com a devida vênia, diante do atual sistema jurídico brasileiro, tendo
em vista, sobretudo, a ordem constitucional garantista, e a concepção da
segregação provisória cada vez mais como medida excepcional, a leitura a ser
dada ao dispositivo em comento só pode ser a seguinte: caso o delegado de
polícia já não tenha reconhecido a verossímil presença de excludente de
ilicitude na conduta do agente, e tenha este sido preso e autuado em flagrante
delito mesmo aparentemente agindo de modo lícito, a autoridade judiciária, logo
que comunicada, corrigirá o lapso, concedendo a liberdade ao indivíduo, o qual
em juízo poderá sedimentar a demonstração da legitimidade de sua ação, isso se
o inquérito policial instaurado não for arquivado após regular controle externo
e manifestação do Ministério Público (justamente porque a conduta do
“investigado” é lícita), sem que o processo criminal sequer se inicie, o que de
fato costuma ocorrer na prática forense.
Nas intervenções policiais genuínas, qualquer policial, civil ou
militar, como agente da autoridade policial – o delegado de polícia, ao
capturar indivíduo que constava como “procurado” pela Justiça, pendente contra
ele mandado prisional, ou deter um criminoso por prática delitiva em estado de
flagrância, priva a liberdade desse sujeito e deve apresentá-lo ao delegado de
polícia, atuando em estrito cumprimento do seu dever legal, previsto nos
artigos 13, inciso III, e artigo 301, ambos do CPP. Se considerássemos um mero
e superficial juízo de tipicidade, a conduta do policial poderia ser enquadrada
no crime de seqüestro e cárcere privado, do artigo 148, caput, do Código
Penal. Na prática, ninguém questiona o delegado de polícia que, implicitamente,
reconhece a causa justificante na conduta do agente estatal, por se tratar de
uma excludente nítida e habitual do trabalho policial.
Se houver resistência violenta ou ameaçadora do indivíduo submetido à
intervenção, a hostilidade criminosa se desdobra numa reação proporcional por
parte dos policiais, que pode resultar na morte do delinquente agressor. Tanto
o estrito cumprimento do dever legal quanto a legítima defesa devem ser
analisados e, caso as circunstâncias apontem nesse sentido, reconhecidos
provisoriamente pelo delegado de polícia.
Quando a ação policial não redundar em maiores sequelas, leia-se, óbitos
ou ferimentos graves, e a autoridade policial reputar caracterizado isolado o
delito de resistência do citado artigo 329, do Código Penal4 (sem a
prática de outros crimes em concurso), por se tratar de infração de menor
potencial ofensivo (cuja pena máxima não suplanta dois anos), afigura-se
possível a lavratura de um termo circunstanciado, assumindo o autor compromisso
de comparecimento ao Juizado Especial Criminal competente, para onde o
expediente de polícia judiciária será encaminhado, com arrimo nos artigos 98,
inciso I, da Constituição Federal, e artigos 61 e 69, da Lei Federal no
9.099, de 26 de setembro de 1995. No documento, o delegado de polícia, valendo-se de seu
poder de síntese, bem insculpirá os dados mínimos exigidos para a propositura e
futura aplicação das benesses legais ou, caso estas não sejam cabíveis,
viabilizar ao titular da ação penal lastro probatório mínimo para a propositura
da denúncia ou queixa (MORAES; ZOMPERO, 2010).
É óbvio que tais juízos de deliberação não perfazem conclusões
precipitadas e muito menos definitivas, e por isso devem ser exaradas
motivadamente com independência funcional, de acordo com a convicção
técnico-jurídica do delegado de polícia, expondo os fundamentos fáticos e
legais de sua decisão (LESSA, 2012, p.6).
Ademais, se no transcorrer das investigações, a autoridade policial
presidente do inquérito vislumbrar que os elementos probatórios angariados
rechaçam a versão originária dos policiais, representará pelas medidas legais
cabíveis, mormente pela prisão temporária ou preventiva dos maus policiais
investigados, sem prejuízo inclusive de prisão em flagrante delito se no caso
concreto estiverem presentes as hipóteses legais autorizadoras e não haja
verossimilhança na versão dos policiais ou esta seja afastada durante a
comunicação inicial dos fatos.
Conclusão
Ao elevar a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado
brasileiro (art. 1º,III, da CF), a Lei Maior impõe que a existência do Estado
deve ser voltada e se justifica, acima de tudo, para a proteção da pessoa
humana, e não o contrário. O Poder Público deve ser estruturado em derredor de
seus cidadãos, a todos eles buscando proporcionar uma vida com padrões dignos,
com qualidade, e com garantias contra intervenções indevidas ou abusivas,
sobretudo do próprio Estado.
Não por outra razão, as técnicas operacionais tanto para o policiamento
ostensivo e preventivo (realizado pelas polícias militares), quanto para a
atividade repressiva de investigação criminal (incumbência das polícias civis e
federal), devem buscar o máximo de eficiência com o mínimo de transtorno aos
direitos de cada indivíduo.
Para tanto é preciso contínuo aperfeiçoamento das táticas para o uso
progressivo da força, com emprego de armas menos letais, e reiterado
treinamento dos agentes policiais, focado num trabalho de inteligência,
legalidade e otimização no manejo das informações obtidas, sempre voltado à
preservação da vida.
O presente ensaio pretendeu cuidar, em breves linhas, das implicações
legais afetas à formalização de fatos envolvendo suposta resistência exercida
por indivíduos contra as forças policiais no momento de suas abordagens e
prisões, até então registrados na peça intitulada “auto de resistência”, que
passa a cair em desuso por sua associação a condutas espúrias.
Destacou-se também a importância da repressão e da responsabilização
criminal de maus policiais, que forjam falsas resistências sob a real intenção
de camuflar homicídios qualificados, e que exterminam vidas humanas de modo
covarde e ao arrepio da ordem jurídica vigente.
Ainda que seja possível cogitar a documentação dos fatos por meio de
outra designação, como “auto de morte decorrente de intervenção policial”, por
exemplo, e não mais a do famigerado “auto de resistência”, atendendo da mesma
maneira o destacado artigo 292, do CPP, a tendência atual é que o registro
inicial seja realizado em boletim de ocorrência circunstanciado, intitulado nos
moldes da primeira nomenclatura (“morte decorrente de intervenção policial”), o
qual fará as vezes do referido “auto” exigido pelo diploma processual, com
apuração por intermédio de inquérito policial instaurado via portaria.
Nesse boletim de ocorrência, serão descritos os fatos de modo
pormenorizado, ocasião em que serão hauridas as oitivas dos policiais e pessoas
envolvidas presentes, com requisição dos exames periciais cabíveis e
esgotamento de todas as demais diligências investigativas imediatas, as quais
serão incorporadas ao inquérito policial para o pleno e imparcial
esclarecimento do que ocorreu.
Como se demonstrou, para que isso de fato se concretize, a polícia
judiciária, responsável pela repressão criminal, assim como e em especial o
delegado de polícia, presidente das investigações, precisam manter uma postura
legalista, firme e isenta. O delegado de polícia, como agente político e
representante da vontade estatal, exerce papel essencial no combate a quaisquer
condutas que ultrapassem os limites legais, para tutelar a dignidade e a
integridade física e moral de todo cidadão, mormente aquele submetido a uma
investigação ou custodiado, angariando todos os elementos probatórios
disponíveis e assim cuidando também para que os verdadeiros criminosos sejam
encaminhados à Justiça e devidamente responsabilizados.
NOTAS
[1] O exame residuográfico busca revelar a presença de micropartículas
de chumbo ou outras substâncias nas mãos das pessoas que fizeram ou suspeitas
de fazer uso de arma de fogo.
[2] Conforme notícias veiculadas na mídia, como na revista juridica
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[3] Art. 284. Não será permitido o emprego de força, salvo a
indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso.
[4] Crime de Resistência: Art. 329. Opor-se à execução de ato legal,
mediante violência ou ameaça a funcionário competente para executá-lo ou a quem
lhe esteja prestando auxílio: Pena - detenção, de dois meses a dois anos.
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* Sobre o autor:
Rafael Francisco Marcondes de Moraes é Delegado de Polícia em São Paulo e professor da
Academia de Policia Civil de São Paulo na cátedra de Inquérito Policial.
* Como citar este texto (NBR 6023:2002 ABNT):