quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

ARISTÓTELES - POLÍTICA - PARTE I

APRESENTAÇÃO DA POLÍTICA DE ARISTÓTELES
( por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)

RESUMO: Este artigo pretende apresentar a Política de Aristóteles, destacando os oito livros que a compõem e focando no tema principal de cada livro.

1.1 Ciência da felicidade humana
Nos capítulos iniciais da  Ethica Nicomachea (Ética  a Nicômaco)Aristóteles aplica o termo Política ao tema único – a ciência da felicidade humana[1] – subdividido em duas partes: a primeira é a Ética e a segunda é a política propriamente dita.  Ao examinar a diferença entre, o que ele nomeia, ciências poiētikai (produtivas) e praktikai (práticas), conclui que, além de as práticas serem superiores ás produtivas, a Política é superior à Ética. A Política, diz o filósofo orienta a Ética, pois o homem só é verdadeiramente autárquico na pólis, é a Política que orienta, também, as ciências produtivas ou as technai (artes), pois somente a Politeía (Cidade) diz o que deve ser produzido para o bem de cada um e de todos, isto  é, ao tò koinòn (bem comum).
A Política é, assim, aquela ciência praktikai (prática) cujo fim é “o bem propriamente humano”e esse fim é o bem comum. Por isso a Política é a ciência prática arquitetônica, isto é, aquela que estrutura as ações e as produções humanas.
Note-se que, para Aristóteles, a felicidade humana consiste em uma certa maneira de viver, e a vida de um homem é o resultado do meio em que ele existe, das leis, dos costumes e das instituições adotadas pela comunidade à qual ele pertence[2]. Na Política de Aristóteles o homem é classificado como um “animal social por natureza”, que desenvolve suas potencialidades na vida em sociedade, organizada adequadamente para seu bem-estar. Como em 1253a, livro I, capítulo I, §9:

Estas considerações deixam claro que a cidade é uma criação natural, e que o homem é por natureza um animal social, e um homem que por natureza, e não por acidente, não fizesse parte de cidade alguma, seria desprezível ou estaria acima da humanidade (como o "sem clã, sem leis, sem lar" de que Homero fala com escárnio, pois ao mesmo tempo ele é ávido de combates), e se poderia compará-lo a uma peça isolada do jogo de gamão. Agora é evidente que o homem, muito mais que a abelha ou outro animal gregário, é um animal social. Como costumamos dizer, a natureza nada faz sem propósito, e o homem é o único entre os animais que tem o dom da fala.[...] [3]

                        A meta, portanto, é descobrir a maneira de viver que leva à felicidade humana, e estudar a forma de governo e as instituições sociais capazes de assegurar aquela maneira de viver.
A primeira tarefa leva ao estudo do éthos (caráter), objeto da Ética a Nicômaco; a última conduz ao estudo das constituições das Politeías, objeto da Política. Esta, portanto, é uma sequência da Ética, e é a segunda parte de um tratado único.  Aliás, já na geração anterior a Aristóteles, Platão, seu mestre, havia abrangido as duas partes do assunto em um só diálogo – A República.

1.2 Ciência prática por excelência

                        Em sua maior parte, as obras de Aristóteles assemelham-se a compilações de várias lições” no Liceu acerca dos diferentes aspectos do assunto em exame, reunidas às vezes sem muita clareza para formar o conjunto de um tratado. Esta observação se aplica especialmente à Política, aparentemente constituída de três grupos de lições”, ou exposições.
                        Os três grupos seriam em linhas gerais, os seguintes: primeiro, os livros I, II e III, à guisa de introdução, uma teoria da Politeía, em geral, e a classificação de suas várias espécies; segundo, os livros IV, V e VI, que tratam da Política prática, natureza das constituições existentes e dos princípios para seu bom funcionamento; terceiro, livros VII e VIII, que examinam a forma da política ideal, a estrutura da melhor cidade, inacabados.[4]
                        Temos, então, que no esquema das ciências segundo Aristóteles, a Política pertence ao grupo das ciências práticas, que buscam o conhecimento como um meio para a ação, à diferença das ciências teóricas (a metafísica e a teologia, por exemplo), cujo conhecimento é um fim em si mesmo.
                        As ciências práticas se subdividem por sua vez, de conformidade com a sistemática dicotômica de Aristóteles, em dois grupos: as ciências poiéticas (produtivas), que nos ensinam a produção de coisas, e as ciências práticas propriamente tais, que nos mostram como melhor agir. As primeiras visam a algum produto ou resultado, enquanto que as práticas implicam conhecimento adquirido nas ações e seus fins, pressupondo escolhas. As primeiras incluem as profissões e os ofícios e as últimas abrangem as chamadas “belas artes(a música e a dança, por exemplo), que são em si mesmas um fim.
                        A ciência prática por excelência é a Política, isto é, a ciência do bem-estar e da felicidade dos homens como um todo. Ela é práxis, pois estuda não somente o que é a felicidade (assunto também da Ética) mas a maneira de obtê-la; ao mesmo tempo leva à
demonstração de que a felicidade não é o resultado de ações, mas é em si mesma uma certa maneira de agir.

1.3 Sobre os livros da Política
Seguindo a proposta de classificação de Francis Wolff para os oito livros da Política de Aristoteles, temos:

1.3.1 Livro I – A cidade e a família

            Neste livro, Aristóteles discerne o fundamento e a essência de toda vida política, recolocando-a no interior de outras formas, mais elementares, de vida social. Estudos particulares importantes pontuam a sequência do livro, notadamente a comentada defesa da escravidão (caps. 4 a 7), ou as famosas análises de “economia políticados caps. 8 a 11, que serão retomadas por Marx no livro I de O Capital. Marx reconhece sua dívida para com Aristóteles: “o grande pensador que foi o primeiro a analisar a forma valor, bem como tantas outras formas, seja de pensamento, seja de sociedade, seja de natureza.[5]
 Aqui, temos os seguintes temas:
A) A cidade, a melhor das comunidades humanas (caps.1-2)
B) A família (caps.3-13)
1. As relações de poder que constituem a família (cap.3)
2. A escravidão (caps.4-7)
3. A gestão familiar (“ economia”) (caps.8-11)
4. As outras relações familiares (caps.12-13)

1.3.2 Livro II – Estudo crítico das melhores constituições

Neste livro, Aristóteles, concentra suas análises na melhor maneira de viver politicamente, isto é, sobre a melhor politeia, a melhor “constituição”, e contenta-se com uma análise crítica de constituições existentes, aquelas que apresentam projetos dos grandes reformadores políticos, e entre os quais está Platão, e os que estão efetivamente em vigor nas cidades reputadas como as mais bem governadas à época.  Mas existem, aqui e ali, estudos particulares, bem como outras tantas inserções que merecem atenção. Por exemplo, a passagem do Cap.8 (1268 b 25-1269 a 28), tão estimulante, e em certos aspectos tão moderna, em que Aristóteles pergunta-se se é “melhor mudar as leis, quando se vê – ou quando se acredita ver – um meio de melhorá-las”, ou se é “preferível deixá-las como são, ainda que pelo fato de que são leis”. Eis o plano geral do livro:

A) As constituições ideais em teoria (caps.1-8)
1. A da República de Platão (caps.1-5)
2. A das Leis de Platão (cap.6)
3. A de Faléias (cap.7)
4. A de Hipódamo (cap.8)

B) As constituições reais reputadas como as melhores (caps.9-12)
1. Esparta (Cap.9)
2. Creta (Cap.10)
3. Cartago (Cap.11)
4. Alguns grandes legisladores (Cap.12)

1.3.3 Livro III – A cidade, o cidadão e os diferentes regimes políticos possíveis
Este livro, contrariamente ao Livro I não busca os fundamentos da vida política (por que se vive politicamente?), mas, tomando essa vida política como dada, interroga suas formas, isto é, como diz Aristóteles na primeira frase, "a essência e as propriedades dos diferentes regimes políticos”. Essa análise é importante como reconhecimento de que ele tem em mão para considerar qual é, para ele, a melhor forma de governo. Eis o plano de conjunto:
A) Questões prévias ao exame dos regimes (caps.1-5)
1. O que é um cidadão? (caps.1 e 2)
2. O que é a cidade? (Cap.3)
3. A virtude política (Cap.4)
4. Limites da cidadania (Cap.5)

B) Os diferentes regimes (caps. 6-8)
1. Princípio de classificação dos regimes (Cap.6)
2. Classificação dos regimes (Cap.7)
3. Definição da oligarquia e da democracia (Cap.8)

C) O problema da justiça política (caps. 9-13)
1. O fim da cidade (Cap.9)
2. Os diversos pretendentes ao governo (Cap.10)
3. O governo do povo é justo? (Cap.11)
4. Sobre a justiça política (caps. 12-13)

D) O problema da realeza (caps. 14 a 17)
Recapitulação (Cap.18)

1.3.4 Livro IV – Tipos de regime

Neste livro há a opinião do que tradicionalmente é chamado de “bloco realista” (livros IV-V-VI), em que predomina a obstinada advertência quanto a diversidade dos fatos. Aqui o biólogo ganha do metafísico. W. Jaeger e outros depois dele viram nesta mudança de perspectiva a consequência das pesquisas fomentadas por Aristóteles no Liceu, que lhe permitiram inventariar e descrever 158 “constituições”, das quais somente uma chegou até nós, a de Atenas. É desse modo que, na classificação completamente conceptual dos regimes, no Capítulo III, 7, opõem-se as precisões empíricas do Capítulo IV, 3. Os critérios a priori co Capítulos III, 8 dão lugar, quando se trata de retomar uma análise comparada da oligarquia com a democracia (em IV, 4-6), a critérios econômicos, sociais ou étnicos. Aristóteles, no conjunto do livro, preocupa-se com "nuances sociológicas”, muitas vezes em tom relativista, e uma de suas conclusões é que o melhor regime varia de acordo com os povos considerados (Cap.12).
O plano de conjunto do livro é anunciado no final do Capítulo 2 (1289 b 12-26), e projeta um programa em cinco pontos, os quatro primeiros dos quais são sucessivamente abordados neste livro, ficando o quinto reservado para o livro seguinte. Eis o plano geral do livro:
A) Objetivos do estudo dos regimes (caps.1-2)

B) A variedade dos tipos de regimes (caps.3-10)
1. Fundamentos dessa variedade (cap.3)
2. Análise da democracia e da oligarquia (caps.4-6)
3. Análise da aristocracia e do regime constitucional (caps.7-9)
4. A tirania (Cap.10)

C) O melhor regime acessível (Cap.11)

D) O regime adaptado ao tipo de cidade (caps.12-13)

E) Os três “poderes” constitucionais (caps.14-16)
1. O poder deliberativo (Cap.14)
2. O poder executivo (Cap.15)
3. O poder judiciário (Cap.16)

1.3.5 Livro V – Aquilo que preserva e que destrói os regimes

Este livro é a sequência lógica do precedente. Aborda o último ponto do programa anunciado no Livro IV, 2: “Expor  quais são os modos de corrupção  e de salvaguarda das constituições, tanto aqueles que lhes são comuns, quanto os que são próprios a cada uma delas, e por quais causas ocorrem da maneira mais natural ” (1289 b 22-6). Como escreve J. Aubonnet, na Nota de sua edição: “Este Livro V torna-se assim aquele manual prático do “Homem de Estadono qual Maquiavel provavelmente se inspirou para o seu O Príncipe e os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio.[6]”  
Com frequência aparentando indiferença para com a natureza do regime, em parte, cuja salvaguarda se trata de assegurar, Aristóteles múltipla os conselhos destinados aos dirigentes para se protegerem contra sedições e revoluções, na segunda parte deste livro. O plano do conjunto do livro é:

A) Causas gerais das sedições (caps.1-4)

B) Causas das sedições de acordo com o regime e a maneira de se resguardar contra elas (caps.5-12)
1. Como morrem as democracias (Cap.5)
2. Como morrem as oligarquias (Cap.6)
3. Como morrem as aristocracias (Cap.7)
4. Como preservar os diferentes regimes (caps.8-9)
5. Como morrem as monarquias (realeza e tirania) e como preservá-las (caps.10-11)
6. Exame crítico da concepção platônica das revoluções (Cap.12)

1.3.6 Livro VI – Como estabelecer os diferentes regimes

Este livro, que parece complementar mais as análises do Livro IV do que as do Livro V, supõe, no entanto, que o estudo do livro precedente, sobre as causas da morte dos regimes, tenha sido feita, uma vez que agora se preocupa em como fundá-los da melhor maneira. Aqui, o destinatário dessas páginas será menos o dirigente ou o "Homem de Estado" do que o “ legislador”, isto é, o fundador da cidade, encarregado de lhe conferir as instituições iniciais mais seguras. Eis a proposta geral do livro:

Introdução: Generalidades sobre a variedade de constituições e as constituições mistas (Cap.1)
A) As democracias: o que são elas (caps. 2-4) e como estabelecê-las (Cap.5)
B) As oligarquias e como estabelecê-las (caps.6-7)
C) As magistraturas (Cap.8)

1.3.7 Livro VII – A cidade “ideal
Os livros VII e VIII , que formam um todo, geralmente são  considerados como a parte mais antiga da  Política,  e supõem uma função do discurso político oposta à dos três livros precedentes, mas que é comum a numerosos autores da Antiguidade: a descrição da cidade “ideal. Durante a leitura desse livro, que não se trata de uma “utopia” (se entendermos por isso um país imaginário em que tudo existe para o melhor) é antes, um modelo de uma cidade possível para um “ legislador” empreendedor. Eis os temas do livro:
A) A vida melhor (caps.1- 3)

B) Descrição da melhor cidade (caps.4-7)
1. Densidade demográfica (Cap.4)
2. Extensão territorial (Cap.5)
3. Acesso ao mar (Cap.6)
4. Povoamento e nacionalidade (Cap.7)

C) Organização da melhor cidade (caps.8 a 17)
1. As classes sociais e suas funções (caps.8-10)
2. Urbanismo (caps.11- 12)
3. Educação (caps.13 a 15)
4.Controle dos casamentos, nascimentos e da primeira idade (caps.16-17)

1.3.8 Livro VIII – A educação na cidade ideal
                        Este Livro é a sequência do tratado sobre a educação iniciado no Capítulo 13 do livro precedente. Como observa, ainda, J. Aubonnet: “compõe-se essencialmente de respostas dadas às três questões colocadas no final do Livro VII [...], a saber: 1) A educação das crianças deve ser objeto de uma regulamentação?; 2) Essa educação deve ser pública ou privada? 3) Sob que forma deve ser feita?[7]
Eis o plano geral do Livro:
A) A educação em geral (caps.1 a 3)
B) A ginástica (Cap.4)
C) A música (caps.5 a 7)



REFERÊNCIAS


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______. Política. Brasília: Universidade de Brasília, 1985.

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BARN'S, Jonathan. Aristóteles. 1.ed. Aparecida:Ideias e Letras, 2009.

BARNES, Jonathan. Aristóteles. 2.ed. São Paulo: Loyola, 2005.

BODÉÜS, Richard. Aristóteles. A justiça e a cidade. 1.ed. São Paulo: Loyola, 2007.

BRÉHIER, Émile. História da filosofia. 1.ed. em português São Paulo: Mestre Jou, 1977.

CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia. v.I. 2.ed.São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

GAZOLLA, Rachel. O ofício do filósofo estoico. São Paulo: Loyola, 1999.

HANKE, Lewis. Aristóteles e os índios americanos. São Paulo: Martins.   

HOURDAKIS, Antoine. Aristóteles e a educação. 1.ed. São Paulo:  Loyola, 2001.

HUISMAN, Denis. Dicionário dos filósofos. 1.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

______. Dicionários de obras filosóficas.1.ed.São Paulo: Martins Fontes, 2000.

MORRALL, John B. Aristóteles. 2.ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1985.

PERINE, Marcelo. Quatro lições sobre a ética de Aristóteles.o Paulo: Loyola, 2006.

REALE, Giovanni, e outro. História da filosofia. v.I. 11.ed.São Paulo: Paulus, 2012.

______. História da filosofia antiga. O estoicismo antigo, v.III. São Paulo: Loyola, 1992.

______. Aristóteles. V.IV. Nova ed. corrigida. São Paulo: Loyola, 2007.

ROSS, Sir David. Aristóteles. 1.ed. Lisboa: Dom Quixote, 1987.

SIMPSON, Peter Phillips. Defesa defensável da escravidão em Aristóteles. Revista Hypnos, ano 6, nº7, São Paulo, 2ºsem.2001.

TOSI, Giuseppe. Aristóteles e a escravidão natural. Boletim do CPA, Campinas, n°15, jan.-jun.2003.

STIRN, François. Compreender Aristóteles. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

WOLF, Ursula. A ética a Nicômaco de Aristóteles. São Paulo: Loyola, 2010.

WOLFF, Francis. Aristóteles e a Política. São Paulo: Discurso Editorial, 1999.

VAZ, Henrique C. de Lima. Antropologia filosófica. v.I. 11.ed. São Paulo: Loyola, 2011.

VERGNIÈRE, Solange. Ética e Política em Aristóteles. 1.ed. São Paulo: Paulus, 1998.

ZINGANO, Marco.  Aristóteles - Ethica Nicomachea I 13 - III 8 - Tratado da Virtude Moral. 1.ed. São Paulo: Odysseus, 2008.




[1] ARISTÓTELES. PolíticaBrasília: Universidade de Brasília, 1985, p.8.
[2] WOLFF, Francis. Aristóteles e a Política. São Paulo: Discurso Editorial, 1999, p.26-34.
[3] ARISTÓTELES. Política. Brasília: Universidade de Brasília, 1985, p.15.
[4] ARISTÓTELES. Política. Brasília: Universidade de Brasília, 1985.
[5] WOLFF, Francis. Aristóteles e a Política. São Paulo: Discurso Editorial, 1999, p.27.
[6] WOLFF, Francis. Aristóteles e a Política. São Paulo: Discurso Editorial, 1999, p.31-32.
[7] WOLFF, Francis. Aristóteles e a Política. São Paulo: Discurso Editorial, 1999, p.34.

sábado, 8 de novembro de 2014

POLÍTICA E A POLÍTICA

DA POLÍTICA ATÉ  A POLÍTICA DE ARISTÓTELES
( por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)


 
 
Resumo : Este artigo é uma apertada síntese da política até a “Política" de Aristóteles sob a perspectiva de Francis Wolff. Constataremos que a “Política" de Aristóteles é o primeiro livro de “filosofia política” e onde se cruzam duas rotas gregas que até então permaneciam paralelas: a "filosofia" e a “cidade".

                  



         A política fala grego, todo nosso vocabulário político saiu dela: tirania, monarquia, oligarquia, democracia…
 
 
        Ela é produto de um momento singular em nossa história onde encontraram-se dois“frutos da história grega: um novo modo de pensar surgido por volta do século VI antes de Cristo, fundado no livre exame e na interrogação sobre o fundamento de todas as coisas cruzou com um modo livre e novo de viver juntos, surgido no século VIII antes de Cristo, chamado “polis ”.



         Política designa ao mesmo tempo uma ciência e o seu objeto: a investigação sistemática aplicada à “polis” e a prática da “polis”.



Antes do aparecimento da política, já existiam sociedades, e os homens se acomodavam a elas, bem ou mal , para viverem juntos. Mas, enquanto não “pensaram” aquilo que viviam como algo que pertencia a um domínio que chamamos de político,  isto é, como “ algo que dependia deles”, eles não puderam, especificamente falando, fazer política: submetiam a um poder como a um destino, contra o qual nada se podia fazer, no qual mal se distinguiam a autoridade do chefe, a irrecusabilidade da tradição e o temor aos deuses.



Um povo sem a consciência de um domínio próprio das coisas da cidade não pode agir politicamente, uma vez que não sabe que a política é aquilo que lhe pertence. Aquilo que a própria existência da “polis” permitiu, a política que se faz, e a existência do pensamento racional o permitiu, a política que se estuda. Se a política é aquilo que depende de nós, depende de nós que ela seja outra, e, por que não?, perfeita.



Em sentido estrito, a política são os negócios da “polis”. Esta palavra grega designa a urbe (ville) (por oposição ao campo), mas também a civilização ( por oposição à natureza selvagem ou à barbárie), e finalmente, e sobretudo, a cidade (cité) , entidade comunitária autônoma, à qual algumas dezenas de milhares de habitantes têm  consciência de pertencer ( os atenienses, ou os espartanos, ou os conríntios…), reconhecendo nela algo como sua “pátria”. A cidade tem seu território - que ultrapassa amplamente os limites da “urbe”- e se abriga por detrás de seu “regime”próprio.

        

Não viver numa cidade é, para um grego da época clássica , não viver politicamente, isto é, de maneira “civilizada”. É certo que, após a conquista alexandrina, quando todos dependeram do mesmo rei da Macedônia,  as cidades perderam sua autonomia, os gregos num certo sentido, já não “fizeram” mais política.



Para os gregos, toda a esfera da vida pública é, num certo sentido, política, e a esfera privada é muito mais estreita do que para nós: nem a “moral”, nem a religião, nem a educação das crianças, por exemplo, estão fora do campo da política. Não que “tudo seja político”, o “econômico”, por exemplo, que para nós é altamente político, pertence para eles à esfera privada e concerne à gestão do patrimônio ( a palavra vem de “oikos”, que significa “casa”, propriedade).  O político pertence ao “koinon”, o comum, e abarca todas as atividades e práticas que devem ser partilhadas, isto é, que não devem ser privilégio exclusivo de ninguém, todas as atividades relativas a um mundo comum, por oposição àquelas que concernem à manutenção da vida.



Assim, fazer política, isto é, participar da vida comum, não é, na época clássica, uma atividade entre outras possíveis: é a atividade nobre por excelência, a única que vale o sacrifício de sua vida. Despreza-se o negociante, o homem que faz negócios, isto é, negócios privados. O destino de um jovem ateniense só poderia ser a “carreira" política.



A ideia de “sucesso privado”seria uma contradição numa civilização que identifica o sucesso com os seus signos: o homem superior é aquele reconhecido como tal. O sucesso político, dito de outra forma, público por seu domínio e publicamente sancionado, é portanto o único possível.



A política é, por outro lado, o único lugar em que se decide o poder: o que define a “polis" é que, contrariamente à tribo ou às grandes monarquias, contrariamente à comunidade familiar, ali ninguém possui “a priori”o poder.  Não se trata do objeto de um “ter”reservado, mas o lugar de uma luta pelo reconhecimento público.



Lembremos que estão excluídos da cidadania os estrangeiros, os escravos, as crianças e as mulheres. A grande cisão entre homens livres e escravos distingue aqueles que têm quase todos os poderes sobre outros homens. As crianças devem naturalmente obediência aos adultos, e as mulheres aos homens, ainda que estas tenham poder sobre a casa familiar (espaço privado). Estes, os cidadãos, constituem o conjunto da comunidade chamada cidade ( espaço público). A política é, portanto, ocupação exclusiva daqueles que “a priori”já estão cheios de poderes é também ocupação para todos, coletivamente, e, bem ou mal, de todos, distributivamente, ou ao menos daqueles que se mostrem, aos olhos de todos, os melhores entre os iguais.



A prática política reveste-se de um valor tão elevado pois a excelência política totaliza de algum modo todas as outras excelências. Primeiro porque o terreno político exige uma competência universal: na assembléia deliberativa de uma democracia direta, todos os cidadãos devem se pronunciar a respeito de todos os assuntos, pelo menos todos os assuntos de interesse geral ( ver Platão, “Protágoras”, 219 b-d). Além do mais, o homem político deve demonstrar o mais elevado grau de todas as qualidades morais, justiça, piedade, senso de honra e de sacrifício. Por fim, e simplesmente, o homem completo só pode ser o cidadão, porque seu grau de completude se manifesta pelo poder que ele tem sobre seus pares. Como “Menon”indica, no diálogo Mênon, de uma maneira geral, a virtude do homem “ é a capacidade de comandar homens”(73 b); e, no Górgias, Górgias repete fazendo eco: o domínio político recobre “as mais importantes e as melhores coisas humanas (451 d), e não há bem maior para o homem do que convencer os outros em qualquer  reunião de cidadãos (452 d).



A política não passa de realização de si, uma vez que o “si” é relação com o outro.

                           

A política, cruzamento do pensamento racional e da “polis”, poderíamos esperar então que, do encontro da forma mais  livre do pensamento, a filosofia, com a forma mais livre da vida comum, a “polis”, nasceu a “filosofia política”, que teria sido afinal a realização idílica de uma e da outra em sua união.



Não foi bem assim. De fato, entre filosofia e política, tudo se passou, ao contrário, como se tivesse havido, desde o início, um imenso mal-entendido. O descompasso das datas de seus apogeus respectivos o atesta: a idade do ouro da “polis” é o século V; a da filosofia, é o século IV. A política, no sentido da vida sob o teto da “polis”, portanto, não coincide exatamente com a política, no sentido de reflexão sobre a “polis”: a filosofia política é a consciência de uma forma que se acha no crepúsculo, como Hegel já indicava.



Em Atenas, no séc. V, desconfia-se das especulações teóricas dos “filósofos"sobre a Natureza e sobre o Ser, e o primeiro filósofo da cidade, Sócrates, foi condenado por ela à morte. Tudo se passa como se, na idade clássica da cidade, as exigências da política se opusessem às da filosofia. A preservação da cidade não requer outra especulação além dos velhos princípios de uma moral pragmática, e, por conseguinte, proíbe a do “livre-pensador”, o filósofo:  é uma ameaça para a harmonia da cidade. A  condenação de Sócrates à morte pela cidade acaba por consumar o divórcio e consigna a impossibilidade de uma “filosofia política”no grande século da cidade.



Inversamente, o século seguinte será o da filosofia e Platão fará deste divórcio matéria-prima de sua reflexão. Para Platão a cidade  digna era filosófica e a filosofia era inteira e profundamente política, mas é também a razão pelo que não há filosofia política propriamente dita em Platão. Entenda-se, reflexão sobre a cidade enquanto tal, engajada nas vicissitudes imprevisíveis da história.



É pois a Política de Aristóteles  que inaugura a filosofia política, justamente no momento em que a polis clássica está se acabando.  A filosofia de Aristóteles justamente permitirá pensar essa autonomia. Pois ela não subordina a prática política à posse de um saber imutável, mas a “prudência"e a “experiência”. Esta é atributo daqueles que sabem não por terem aprendido, mas por terem vivido. Ao contrário da ciência que concerne ao que é necessário e ao que não depende de nós, a “prudência”, isto é, a sabedoria na ordem da ação, é sobre o contingente, e se adapta à variabilidade de indivíduos e de circunstâncias; desse modo, está na medida da cidade, na qual se delibera sobre aquilo que pode ser diferente do que é, já que isto depende de nós, ao contrário do movimento dos astros, que só podemos admirar, sem poder fazer nada.



Analisando o sentido e o lugar desse conceito de “prudência" na filosofia de Aristóteles, P. Aubenque demonstrou o quanto ele é solidário de toda a cosmologia do filósofo, que distingue a ordem imutável e necessária do “mundo celeste”(supralunar) e a ordem contingente do mundo “terrestre”(“sublunar”). O acaso, a temporalidade, a circunstâncias não têm nela um lugar marginal, mas sim essencial, e, de certo modo o mais elevado, pois são a condição de exigência da liberdade deste mundo: este mundo que, na falta de ser divino, é humano; demasiado humano, sem dúvida, tendo em vista o ideal contemplativo, mas bem humano mesmo, para que se possa agir e escolher.



A política não é independente da ética, mas adquiriu sua autonomia. A Política de Aristóteles, primeiro livro de “filosofia política”, em que se cruzam então,  estas duas rotas gregas que até então permaneciam paralelas: a filosofia e a cidade.


Referências:


1)         Anotações de classe.

2) ARISTÓTELES,  Ética a Nicômaco, Os Pensadores, Vol IV, São Paulo: ed. Victor Civita, 1973.

3) ARISTÓTELES, Política. 1ª ed. em português feita a partir do grego, Lisboa: Vega, Gabinete de Edições, 1998.

4) BARNES, Jonathan. Aristóteles. 1a ed. Aparecida:Editora Ideias e Letras, 2009.

5)BARNES, Jonathan, Aristóteles. 2a edição  São Paulo: Editora Loyola, 2005.

6) BODÉÜS, Richard. Aristóteles. A Justiça e a Cidade. 1a ed. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

7) BRÉHIER, Émile. História da Filosofia. 1a ed. em português São Paulo: Editora Mestre Jou, 1977.

8) CHAUÍ, Marilena. Introdução a História da Filosofia. Vol.I. 2a ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

9) WOLFF, Francis. Aristóteles e a Política. São Paulo: Discurso Editorial, 1999.