DA POLÍTICA ATÉ A POLÍTICA DE ARISTÓTELES
( por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)
Resumo
: Este artigo é uma apertada síntese da política até a “Política" de
Aristóteles sob a perspectiva de Francis Wolff. Constataremos que a
“Política" de Aristóteles é o primeiro livro de “filosofia política” e
onde se cruzam duas rotas gregas que até então permaneciam paralelas: a
"filosofia" e a “cidade".
A política fala grego, todo nosso vocabulário
político saiu dela: tirania, monarquia, oligarquia, democracia…
Ela é produto de um
momento singular em nossa história onde encontraram-se dois“frutos da história
grega: um novo modo de pensar surgido por volta do século VI antes de Cristo,
fundado no livre exame e na interrogação sobre o fundamento de todas as coisas
cruzou com um modo livre e novo de viver juntos, surgido no século VIII antes
de Cristo, chamado “polis ”.
Política designa ao mesmo tempo uma
ciência e o seu objeto: a investigação sistemática aplicada à “polis” e a
prática da “polis”.
Antes do aparecimento
da política, já existiam sociedades, e os homens se acomodavam a elas, bem ou
mal , para viverem juntos. Mas, enquanto não “pensaram” aquilo que viviam como
algo que pertencia a um domínio que chamamos de político, isto é, como “ algo que dependia deles”, eles
não puderam, especificamente falando, fazer política: submetiam a um poder como
a um destino, contra o qual nada se podia fazer, no qual mal se distinguiam a
autoridade do chefe, a irrecusabilidade da tradição e o temor aos deuses.
Um povo sem a
consciência de um domínio próprio das coisas da cidade não pode agir
politicamente, uma vez que não sabe que a política é aquilo que lhe pertence.
Aquilo que a própria existência da “polis” permitiu, a política que se faz, e a
existência do pensamento racional o permitiu, a política que se estuda. Se a
política é aquilo que depende de nós, depende de nós que ela seja outra, e, por
que não?, perfeita.
Em sentido estrito, a
política são os negócios da “polis”. Esta palavra grega designa a urbe (ville)
(por oposição ao campo), mas também a civilização ( por oposição à natureza
selvagem ou à barbárie), e finalmente, e sobretudo, a cidade (cité) , entidade
comunitária autônoma, à qual algumas dezenas de milhares de habitantes têm consciência de pertencer ( os atenienses, ou
os espartanos, ou os conríntios…), reconhecendo nela algo como sua “pátria”. A
cidade tem seu território - que ultrapassa amplamente os limites da “urbe”- e
se abriga por detrás de seu “regime”próprio.
Não viver numa cidade
é, para um grego da época clássica , não viver politicamente, isto é, de
maneira “civilizada”. É certo que, após a conquista alexandrina, quando todos
dependeram do mesmo rei da Macedônia, as
cidades perderam sua autonomia, os gregos num certo sentido, já não “fizeram”
mais política.
Para os gregos, toda a
esfera da vida pública é, num certo sentido, política, e a esfera privada é
muito mais estreita do que para nós: nem a “moral”, nem a religião, nem a
educação das crianças, por exemplo, estão fora do campo da política. Não que
“tudo seja político”, o “econômico”, por exemplo, que para nós é altamente
político, pertence para eles à esfera privada e concerne à gestão do patrimônio
( a palavra vem de “oikos”, que significa “casa”, propriedade). O político pertence ao “koinon”, o comum, e
abarca todas as atividades e práticas que devem ser partilhadas, isto é, que
não devem ser privilégio exclusivo de ninguém, todas as atividades relativas a um
mundo comum, por oposição àquelas que concernem à manutenção da vida.
Assim, fazer política,
isto é, participar da vida comum, não é, na época clássica, uma atividade entre
outras possíveis: é a atividade nobre por excelência, a única que vale o sacrifício
de sua vida. Despreza-se o negociante, o homem que faz negócios, isto é,
negócios privados. O destino de um jovem ateniense só poderia ser a
“carreira" política.
A ideia de “sucesso
privado”seria uma contradição numa civilização que identifica o sucesso com os
seus signos: o homem superior é aquele reconhecido como tal. O sucesso
político, dito de outra forma, público por seu domínio e publicamente
sancionado, é portanto o único possível.
A política é, por
outro lado, o único lugar em que se decide o poder: o que define a “polis"
é que, contrariamente à tribo ou às grandes monarquias, contrariamente à
comunidade familiar, ali ninguém possui “a priori”o poder. Não se trata do objeto de um “ter”reservado,
mas o lugar de uma luta pelo reconhecimento público.
Lembremos que estão
excluídos da cidadania os estrangeiros, os escravos, as crianças e as mulheres.
A grande cisão entre homens livres e escravos distingue aqueles que têm quase
todos os poderes sobre outros homens. As crianças devem naturalmente obediência
aos adultos, e as mulheres aos homens, ainda que estas tenham poder sobre a
casa familiar (espaço privado). Estes, os cidadãos, constituem o conjunto da
comunidade chamada cidade ( espaço público). A política é, portanto, ocupação
exclusiva daqueles que “a priori”já estão cheios de poderes é também ocupação
para todos, coletivamente, e, bem ou mal, de todos, distributivamente, ou ao
menos daqueles que se mostrem, aos olhos de todos, os melhores entre os iguais.
A prática política
reveste-se de um valor tão elevado pois a excelência política totaliza de algum
modo todas as outras excelências. Primeiro porque o terreno político exige uma
competência universal: na assembléia deliberativa de uma democracia direta,
todos os cidadãos devem se pronunciar a respeito de todos os assuntos, pelo
menos todos os assuntos de interesse geral ( ver Platão, “Protágoras”, 219
b-d). Além do mais, o homem político deve demonstrar o mais elevado grau de
todas as qualidades morais, justiça, piedade, senso de honra e de sacrifício.
Por fim, e simplesmente, o homem completo só pode ser o cidadão, porque seu
grau de completude se manifesta pelo poder que ele tem sobre seus pares. Como
“Menon”indica, no diálogo Mênon, de uma maneira geral, a virtude do homem “ é a
capacidade de comandar homens”(73 b); e, no Górgias, Górgias repete fazendo
eco: o domínio político recobre “as mais importantes e as melhores coisas
humanas (451 d), e não há bem maior para o homem do que convencer os outros em
qualquer reunião de cidadãos (452 d).
A política não passa
de realização de si, uma vez que o “si” é relação com o outro.
A política, cruzamento
do pensamento racional e da “polis”, poderíamos esperar então que, do encontro
da forma mais livre do pensamento, a
filosofia, com a forma mais livre da vida comum, a “polis”, nasceu a “filosofia
política”, que teria sido afinal a realização idílica de uma e da outra em sua
união.
Não foi bem assim. De
fato, entre filosofia e política, tudo se passou, ao contrário, como se tivesse
havido, desde o início, um imenso mal-entendido. O descompasso das datas de
seus apogeus respectivos o atesta: a idade do ouro da “polis” é o século V; a
da filosofia, é o século IV. A política, no sentido da vida sob o teto da
“polis”, portanto, não coincide exatamente com a política, no sentido de
reflexão sobre a “polis”: a filosofia política é a consciência de uma forma que
se acha no crepúsculo, como Hegel já indicava.
Em Atenas, no séc. V,
desconfia-se das especulações teóricas dos “filósofos"sobre a Natureza e sobre
o Ser, e o primeiro filósofo da cidade, Sócrates, foi condenado por ela à
morte. Tudo se passa como se, na idade clássica da cidade, as exigências da
política se opusessem às da filosofia. A preservação da cidade não requer outra
especulação além dos velhos princípios de uma moral pragmática, e, por
conseguinte, proíbe a do “livre-pensador”, o filósofo: é uma ameaça para a harmonia da cidade.
A condenação de Sócrates à morte pela
cidade acaba por consumar o divórcio e consigna a impossibilidade de uma
“filosofia política”no grande século da cidade.
Inversamente, o século
seguinte será o da filosofia e Platão fará deste divórcio matéria-prima de sua
reflexão. Para Platão a cidade digna era
filosófica e a filosofia era inteira e profundamente política, mas é também a
razão pelo que não há filosofia política propriamente dita em Platão.
Entenda-se, reflexão sobre a cidade enquanto tal, engajada nas vicissitudes
imprevisíveis da história.
É pois a Política de
Aristóteles que inaugura a filosofia
política, justamente no momento em que a polis clássica está se acabando. A filosofia de Aristóteles justamente
permitirá pensar essa autonomia. Pois ela não subordina a prática política à
posse de um saber imutável, mas a “prudência"e a “experiência”. Esta é atributo
daqueles que sabem não por terem aprendido, mas por terem vivido. Ao contrário
da ciência que concerne ao que é necessário e ao que não depende de nós, a
“prudência”, isto é, a sabedoria na ordem da ação, é sobre o contingente, e se
adapta à variabilidade de indivíduos e de circunstâncias; desse modo, está na
medida da cidade, na qual se delibera sobre aquilo que pode ser diferente do
que é, já que isto depende de nós, ao contrário do movimento dos astros, que só
podemos admirar, sem poder fazer nada.
Analisando o sentido e
o lugar desse conceito de “prudência" na filosofia de Aristóteles, P.
Aubenque demonstrou o quanto ele é solidário de toda a cosmologia do filósofo,
que distingue a ordem imutável e necessária do “mundo celeste”(supralunar) e a ordem
contingente do mundo “terrestre”(“sublunar”). O acaso, a temporalidade, a
circunstâncias não têm nela um lugar marginal, mas sim essencial, e, de certo
modo o mais elevado, pois são a condição de exigência da liberdade deste mundo:
este mundo que, na falta de ser divino, é humano; demasiado humano, sem dúvida,
tendo em vista o ideal contemplativo, mas bem humano mesmo, para que se possa
agir e escolher.
A política não é
independente da ética, mas adquiriu sua autonomia. A Política de Aristóteles,
primeiro livro de “filosofia política”, em que se cruzam então, estas duas rotas gregas que até então
permaneciam paralelas: a filosofia e a cidade.
2) ARISTÓTELES, Ética a
Nicômaco, Os Pensadores, Vol IV, São Paulo: ed. Victor Civita, 1973.
3) ARISTÓTELES, Política. 1ª ed. em português feita a
partir do grego, Lisboa: Vega, Gabinete de Edições, 1998.
4) BARNES, Jonathan. Aristóteles. 1a ed. Aparecida:Editora
Ideias e Letras, 2009.
5)BARNES, Jonathan, Aristóteles. 2a edição São Paulo: Editora Loyola, 2005.
6) BODÉÜS, Richard.
Aristóteles. A Justiça e a Cidade. 1a
ed. São Paulo: Edições Loyola, 2007.
7) BRÉHIER, Émile. História da Filosofia. 1a ed. em
português São Paulo: Editora Mestre Jou, 1977.
8) CHAUÍ, Marilena. Introdução a História da Filosofia.
Vol.I. 2a ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
9) WOLFF, Francis.
Aristóteles e a Política. São Paulo: Discurso Editorial, 1999.
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