PARTE - I
RESISTÊNCIA EM
FOUCAULT
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)
I- INTRODUÇÃO
Michel Foucault
nascido em 1926, numa casa de médicos, percorreu a formação convencional,
cresceu com a fenomenologia, o marxismo e as ciências humanas, teve ante os
olhos Sartre e Merleau-Ponty, leu Heidegger e Nietzsche, encontrou rapidamente
seu próprio chão, enquanto tomava pé no círculo de Bachelard, Canguilhem e
Dumézil.
Dos filósofos
contemporâneos, Foucault é o pensador que circula com mais desenvoltura nos
mais diferentes campos do saber. Surgido
num meio intelectual habituado a manifestos e grupos formadores de opinião,
Foucault não é óbvio, as dimensões de suas reflexões e sua notoriedade propiciam
tantas e tantas interpretações, algumas mais acertadas e outras totalmente
infundadas. A amplitude de sua erudição e o amplo escopo de seus interesses
ultrapassou o campo restrito da filosofia, seu talento não está aprisionado ao
domínio específico de sua formação universitária, vai muito além.
A leitura da
obra de Foucault centrada na ética e na filosofia política traz a baila três
distintas fases do pensamento foucaultiano:
1º) “arqueologia
do saber”, nos anos de 1960;
2º) “analítica
do poder” ou “genealogia do poder”, de
1969 até 1977;
3º)“ético-política”
ou último Foucault, inicia em 1978 e vai até sua morte em 1984, centradas na
relações de poder e nas resistências ao poder.
Nesta fase
ético-política o que é central são as lutas de resistência. Mas afinal o que é
a resistência em Foucault?
É o que
abordaremos a seguir.
II – RESISTÊNCIA
Em que pese a
força descritiva dos mecanismos e técnicas de poder apresentados na analítica
de poder, Foucault percebe, a partir de 1978, que sob certas condições a força
dos indivíduos e dos grupos tem o potencial de contestar os sistemas
hegemônicos de poder e consegue modificá-los. Esse é o problema que anima o
Foucault da fase ético-política (1978-1984), que passa a estudar o papel da
resistência, em todas as suas dimensões, na trama complexa das relações de
poder na atualidade, seus antecedentes históricos e suas perspectivas de êxito.
Seu interesse passa a ser os combates e as lutas inerentes às relações de
poder, e não apenas a descrição das grandes articulações institucionais e
políticas que formam as grandes estruturas de poder e que persistem num largo
espaço de tempo.
Foucault, passa a considerar que as
resistências ao poder devem ser entendidas como sendo aquelas que visam a
defesa das liberdades individuais e coletivas.
Contudo, o papel
da liberdade dos indivíduos nas lutas políticas não é para ser entendido como
uma petição de princípio teórico; deve ser elucidado no plano das lutas
sociais, precárias, contingentes, móveis.
O campo da
liberdade é o da ética encarnada:
“ o que eu quero analisar são práticas, é a
lógica imanente à prática, são as estratégias que sustentam a lógica dessas
práticas e, por conseguinte, a maneira pela qual os indivíduos, livremente, em
suas lutas, em seus afrontamentos, seus
projetos, constituem-se enquanto sujeitos de suas práticas ou recusam, pelo
contrário, as práticas que lhe são propostas. Eu acredito solidamente na
liberdade humana”(Foucault,M. Ditos e escritos,vol.IV, p.693).
Foucault em sua
fase ético-política quer mostrar o quanto está interessado em contribuir para o
processo criativo das lutas de resistência:
“ tudo isto está totalmente ligado a uma
prática e a estratégias que são, por sua vez, móveis e se transformam”(Foucault,M.
Ditos e escritos. Vol.IV, p.693).
Das artimanhas
da liberdade decorre a criatividade das estratégias e das lutas, e sua
investigação:
“ (...) consiste em tomar as formas de
resistência aos diferentes tipos de poder como ponto de partida”(Foucault,M.
Ditos e escritos. Vol.IV, p.225).
Os nexos entre
resistência, liberdade e relações de poder são postos, por Foucault, de maneira
contundente, na seguinte passagem:
“
quando se define o exercício do poder como um modo de ação sobre a ação
dos outros, quando o caracterizamos pelo ‘governo’ dos homens uns sobre os
outros – no sentido mais largo do termo – inclui-se, neste caso, um elemento
importante : a liberdade. O poder não se exerce senão sobre ‘sujeitos livres’ e
enquanto são ‘livres’ – entendamos por isso sujeitos individuais ou coletivos
que têm diante de si um campo de possibilidades no qual muitas condutas, muitas
reações e diversos modos de comportamento podem ter lugar. Onde as
determinações estão saturadas, não há relações de poder: a escravidão não é uma
relação de poder quando o homem está acorrentado ( trata-se, então, de uma
relação física constrangedora), mas somente quando o homem pode movimentar-se
e, no limite, fugir”(Foucault,M. Ditos e escritos. Vol.IV, p.237).
Para Foucault
não existe luta possível entre liberdade e poder num regime de terror, como nos
regimes autoritários e burocráticos, como no stalinismo, nazi-facismo, ditadura
de Pinochet (Chile), regime de Reza Palevi (Irã), Camboja, etc.
Liberdade e
poder trata-se de uma agonística, de uma incitação recíproca e de luta, de uma
provocação permanente. Enfrentam-se de maneira constante e sem síntese
dialética, sem nenhuma solução pensável a médio e longo prazos.
“o problema central do poder não é o da
‘servidão voluntária’ (como poderíamos desejar ser escravos?): no cerne da
relação de poder, ‘induzindo-a’ constantemente, temos a reatividade do querer e
a ‘intransitividade’ da liberdade (...)” (Foucault,M.Ditos e escritos.Vol.IV,
p.238).
Como Foucault já
afirmara na História da sexualidade I – A vontade de saber:
“onde há poder, há resistência”.
Para Foucault toda
experiência, seja de exercício da liberdade, seja de dominação nas relações de
poder, ocorre tão somente em ato.
Poder e
resistência são faces diversas da mesma moeda, em contraste permanente.
Equilíbrio provisório de forças talvez, mas nunca uma forma de paz durável.
Foucault entende que, em sociedades onde as
estratégias e as táticas de resistência aos poderes têm êxito em transformar
situações aparentemente insuperáveis, é possível que a “dominação” nas relações
de poder não seja o modo principal de relacionamento político.
Argumenta que, inexiste
situações políticas e quadros políticos permanentes, em qualquer lugar do
planeta, qualquer que seja a época. O que vale também para todo modo de
convivência humana, pois:
“ aquilo ao qual estou atento é o fato de
que toda relação humana é, num certo
sentido, uma relação de poder. Nós nos movimentamos num mundo de relações
estratégicas perpétuas. Nenhuma relação de poder é má nela mesma, mas é um fato
que comporta perigos, sempre” (Foucault,M. Ditos e escritos.Vol.IV, p.374).
Poder e
Liberdade, no seu embate agonístico, geram contextos éticos e políticos sempre
provisórios. É até mesmo possível que certas relações de dominação possam
perdurar – séculos ou milênios, em certas partes do planeta: todavia, suas
relações de poder passaram por transformações inevitáveis, resultado dos
constantes enfrentamentos das resistências ao poder.Não há, não houve, nem
haverá Estado, relações de poder, impérios que durem eternamente.
As razões
filosóficas para esta concepção agonística do poder em Foucault, não tem
vinculação nem com o contratualismo, nem com consentimentos ou servidões
voluntárias, nem com a crença numa hipotética expropriação originária, nem
finalismo histórico, nem crença num ‘télos’ ou destinação humana.
Para Foucault, o
verdadeiro campo da luta é o que abre as portas a um exercício de liberdade
autônomo e radical. Concede, assim, lugar a múltiplas modalidades de lutas em
jogo na atualidade, como as lutas contra a dominação: étnicas, sociais,
religiosas, as lutas contra as formas de exploração, as lutas sobre o estatuto
do indivíduo ( lutas contra o assujeitamento, contra as diversas formas de
subjetividade e submissão).
Opõem-se às
técnicas, conhecimentos e procedimentos de controle das subjetividades, entende
que as lutas de resistência em torno do estatuto da individuação podem ser
assim sintetizadas:
“ sem dúvida, o objetivo principal, hoje,
não é o de descobrirmos, mas o de nos recusarmos a ser o que somos”(Foucault,M.
Ditos e escritos. Vol.IV, p.232).
A questão é
inventar novos modos de subjetividade, novos estilos de vida, novos vínculos e
laços comunitários, novos modos de resistência, que se contrapõem aos sistemas
hegemônicos de poder.
Foucault procura
resolver esta complexa questão no seu pequeno e denso texto
Qu’est-ce que Le Lumières? ( O que é
esclarecimento?)
III – ESCLARECIMENTO E RESISTÊNCIA
O que é esclarecimento? ( Qu’est-ce que Le
Lumières?)
Foucault vai
beber na fonte de um texto com igual título, escrito no século XVIII por
Immanuel Kant, lembra que o esclarecimento é a passagem da minoridade para a
maioridade. Mas o que significa isto? É
quando uma pessoa ou uma coletividade ousa pensar e agir com autonomia, sem
necessidade de recorrer a guias, autoridades e mestres.
Maior é todo
aquele que deseja pensar e agir, por si próprio, sem líderes que pensem e ajam
por ele. A maioridade, portanto, depende da modificação do uso da razão, da
vontade, da relação dela com a autoridade.
Já menor é
aquele que não deseja pensar e agir com autonomia e obedece àqueles que se
outorgam à tarefa de cuidar dele, mantendo-o na condição de minoridade.
Neste processo
de passagem da minoridade para a maioridade já está em ação um embate
agonístico, de poder e liberdade, de resistência ao poder.
O que Foucault
inova em relação a Kant está na percepção de que o esclarecimento deve ser
entendido como uma ‘atitude de modernidade’ e não como um período da história
ou etapa do espírito humano:
“ o que quero dizer por atitude: um modo de
relação com a atualidade; uma escolha voluntária, que é feita por alguns; enfim,
uma maneira de pensar e sentir, também uma maneira de agir e de se conduzir
que, ao mesmo tempo, marca um pertencimento e se apresenta como uma tarefa”(Foucault,M.
Ditos e escritos, Vol. IV, p.568).
A atitude de
modernidade consiste num ‘êthos’ filosófico, que:
“(...) consiste numa crítica do que somos,
pensamos e fazemos, através de uma ontologia histórica de nós mesmos”
(Foucault,M. Ditos e escritos. Vol.IV, p.574).
A atitude de
modernidade totalmente interessada na atualidade, logo depois do diagnóstico do
presente, neste exato momento, ela torna-se atitude-limite, prática
transformadora da vida, subjetiva ou social. Escapa da velha imagem do dentro
para fora, para se situar nas fronteiras, dirigindo-se, na medida do possível,
para a ultrapassagem dos limites, para a ampliação do exercício da liberdade :
“procura relançar, tão longe e tão
amplamente quanto possível o trabalho indefinido da liberdade”(Foucault, M.
Ditos e escritos. Vol.IV, p.574).
O trabalho da
liberdade e seu papel de resistência nas relações de poder, realizados pelas
atitudes-limite, é interminável.
Referências
1) Foucault, Michel. Ditos e escritos. Ética,
estratégia, poder-saber. Motta, Manoel Barros da (Org.).Tradução de Vera Lúcia
Avellar Ribiero, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003 v.4.
2) Foucault, M..
História da Sexualidade I – A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1977).
3) Fleischer
Margot, org. Filósofos do Século XX, História da Filosofia, Editora Unisinos,
2006.
4) Branco,
Guilherme Castelo. Foucault. Os Filósofos Clássicos da Filosofia. Pecoraro
Rossano (org.), Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 2009, v. III.
5) Furtado,
Rafael Nogueira. Por um governo de si mesmo: Michel Foucault e a estética da
existência. Paralaxe, Revista de estética e filosofia da arte. Ano I - n.1 (2013).
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