quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

FOUCAULT - I

PARTE - I  


RESISTÊNCIA  EM  FOUCAULT
 (por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)


I- INTRODUÇÃO                    

Michel Foucault nascido em 1926, numa casa de médicos, percorreu a formação convencional, cresceu com a fenomenologia, o marxismo e as ciências humanas, teve ante os olhos Sartre e Merleau-Ponty, leu Heidegger e Nietzsche, encontrou rapidamente seu próprio chão, enquanto tomava pé no círculo de Bachelard, Canguilhem e Dumézil.

Dos filósofos contemporâneos, Foucault é o pensador que circula com mais desenvoltura nos mais diferentes campos do saber.   Surgido num meio intelectual habituado a manifestos e grupos formadores de opinião, Foucault não é óbvio, as dimensões de suas reflexões e sua notoriedade propiciam tantas e tantas interpretações, algumas mais acertadas e outras totalmente infundadas. A amplitude de sua erudição e o amplo escopo de seus interesses ultrapassou o campo restrito da filosofia, seu talento não está aprisionado ao domínio específico de sua formação universitária, vai muito  além.
           
A leitura da obra de Foucault centrada na ética e na filosofia política traz a baila três distintas fases do pensamento foucaultiano:

1º) “arqueologia do saber”, nos anos de 1960;
2º) “analítica do poder”  ou “genealogia do poder”, de 1969 até 1977;
3º)“ético-política” ou último Foucault, inicia em 1978 e vai até sua morte em 1984, centradas na relações de poder e nas resistências ao poder.   

Nesta fase ético-política o que é central são as lutas de resistência. Mas afinal o que é a resistência em Foucault?
É o que abordaremos a seguir.

II – RESISTÊNCIA

Em que pese a força descritiva dos mecanismos e técnicas de poder apresentados na analítica de poder, Foucault percebe, a partir de 1978, que sob certas condições a força dos indivíduos e dos grupos tem o potencial de contestar os sistemas hegemônicos de poder e consegue modificá-los. Esse é o problema que anima o Foucault da fase ético-política (1978-1984), que passa a estudar o papel da resistência, em todas as suas dimensões, na trama complexa das relações de poder na atualidade, seus antecedentes históricos e suas perspectivas de êxito. Seu interesse passa a ser os combates e as lutas inerentes às relações de poder, e não apenas a descrição das grandes articulações institucionais e políticas que formam as grandes estruturas de poder e que persistem num largo espaço de tempo.

 Foucault, passa a considerar que as resistências ao poder devem ser entendidas como sendo aquelas que visam a defesa das liberdades individuais e coletivas.

Contudo, o papel da liberdade dos indivíduos nas lutas políticas não é para ser entendido como uma petição de princípio teórico; deve ser elucidado no plano das lutas sociais, precárias, contingentes, móveis.

O campo da liberdade é o da ética encarnada:

“ o que eu quero analisar são práticas, é a lógica imanente à prática, são as estratégias que sustentam a lógica dessas práticas e, por conseguinte, a maneira pela qual os indivíduos, livremente, em suas lutas, em  seus afrontamentos, seus projetos, constituem-se enquanto sujeitos de suas práticas ou recusam, pelo contrário, as práticas que lhe são propostas. Eu acredito solidamente na liberdade humana”(Foucault,M. Ditos e escritos,vol.IV, p.693).

Foucault em sua fase ético-política quer mostrar o quanto está interessado em contribuir para o processo criativo das lutas de resistência:

“ tudo isto está totalmente ligado a uma prática e a estratégias que são, por sua vez, móveis e se transformam”(Foucault,M. Ditos e escritos. Vol.IV, p.693).

Das artimanhas da liberdade decorre a criatividade das estratégias e das lutas, e sua investigação:

“ (...) consiste em tomar as formas de resistência aos diferentes tipos de poder como ponto de partida”(Foucault,M. Ditos e escritos. Vol.IV, p.225).

Os nexos entre resistência, liberdade e relações de poder são postos, por Foucault, de maneira contundente, na seguinte passagem:

“  quando se define o exercício do poder como um modo de ação sobre a ação dos outros, quando o caracterizamos pelo ‘governo’ dos homens uns sobre os outros – no sentido mais largo do termo – inclui-se, neste caso, um elemento importante : a liberdade. O poder não se exerce senão sobre ‘sujeitos livres’ e enquanto são ‘livres’ – entendamos por isso sujeitos individuais ou coletivos que têm diante de si um campo de possibilidades no qual muitas condutas, muitas reações e diversos modos de comportamento podem ter lugar. Onde as determinações estão saturadas, não há relações de poder: a escravidão não é uma relação de poder quando o homem está acorrentado ( trata-se, então, de uma relação física constrangedora), mas somente quando o homem pode movimentar-se e, no limite, fugir”(Foucault,M. Ditos e escritos. Vol.IV, p.237).

Para Foucault não existe luta possível entre liberdade e poder num regime de terror, como nos regimes autoritários e burocráticos, como no stalinismo, nazi-facismo, ditadura de Pinochet (Chile), regime de Reza Palevi (Irã), Camboja, etc.

Liberdade e poder trata-se de uma agonística, de uma incitação recíproca e de luta, de uma provocação permanente. Enfrentam-se de maneira constante e sem síntese dialética, sem nenhuma solução pensável a médio e longo prazos.

“o problema central do poder não é o da ‘servidão voluntária’ (como poderíamos desejar ser escravos?): no cerne da relação de poder, ‘induzindo-a’ constantemente, temos a reatividade do querer e a ‘intransitividade’ da liberdade (...)” (Foucault,M.Ditos e escritos.Vol.IV, p.238).

Como Foucault já afirmara na História da sexualidade I – A vontade de saber:
           
“onde há poder, há resistência”.

Para Foucault toda experiência, seja de exercício da liberdade, seja de dominação nas relações de poder, ocorre tão somente em ato.

Poder e resistência são faces diversas da mesma moeda, em contraste permanente. Equilíbrio provisório de forças talvez, mas nunca uma forma de paz durável.

 Foucault entende que, em sociedades onde as estratégias e as táticas de resistência aos poderes têm êxito em transformar situações aparentemente insuperáveis, é possível que a “dominação” nas relações de poder não seja o modo principal de relacionamento político.

Argumenta que, inexiste situações políticas e quadros políticos permanentes, em qualquer lugar do planeta, qualquer que seja a época. O que vale também para todo modo de convivência humana, pois:

“ aquilo ao qual estou atento é o fato de que toda relação humana  é, num certo sentido, uma relação de poder. Nós nos movimentamos num mundo de relações estratégicas perpétuas. Nenhuma relação de poder é má nela mesma, mas é um fato que comporta perigos, sempre” (Foucault,M. Ditos e escritos.Vol.IV, p.374).  

Poder e Liberdade, no seu embate agonístico, geram contextos éticos e políticos sempre provisórios. É até mesmo possível que certas relações de dominação possam perdurar – séculos ou milênios, em certas partes do planeta: todavia, suas relações de poder passaram por transformações inevitáveis, resultado dos constantes enfrentamentos das resistências ao poder.Não há, não houve, nem haverá Estado, relações de poder, impérios que durem eternamente.

As razões filosóficas para esta concepção agonística do poder em Foucault, não tem vinculação nem com o contratualismo, nem com consentimentos ou servidões voluntárias, nem com a crença numa hipotética expropriação originária, nem finalismo histórico, nem crença num ‘télos’ ou destinação humana.

Para Foucault, o verdadeiro campo da luta é o que abre as portas a um exercício de liberdade autônomo e radical. Concede, assim, lugar a múltiplas modalidades de lutas em jogo na atualidade, como as lutas contra a dominação: étnicas, sociais, religiosas, as lutas contra as formas de exploração, as lutas sobre o estatuto do indivíduo ( lutas contra o assujeitamento, contra as diversas formas de subjetividade e submissão).

Opõem-se às técnicas, conhecimentos e procedimentos de controle das subjetividades, entende que as lutas de resistência em torno do estatuto da individuação podem ser assim sintetizadas:

“ sem dúvida, o objetivo principal, hoje, não é o de descobrirmos, mas o de nos recusarmos a ser o que somos”(Foucault,M. Ditos e escritos. Vol.IV, p.232).

A questão é inventar novos modos de subjetividade, novos estilos de vida, novos vínculos e laços comunitários, novos modos de resistência, que se contrapõem aos sistemas hegemônicos de poder.

Foucault procura resolver esta complexa questão no seu pequeno e denso texto
Qu’est-ce que Le Lumières? ( O que é esclarecimento?)
           
III – ESCLARECIMENTO E RESISTÊNCIA
           
O que é esclarecimento? ( Qu’est-ce que Le Lumières?)

Foucault vai beber na fonte de um texto com igual título, escrito no século XVIII por Immanuel Kant, lembra que o esclarecimento é a passagem da minoridade para a maioridade. Mas o que significa isto?  É quando uma pessoa ou uma coletividade ousa pensar e agir com autonomia, sem necessidade de recorrer a guias, autoridades e mestres.

Maior é todo aquele que deseja pensar e agir, por si próprio, sem líderes que pensem e ajam por ele. A maioridade, portanto, depende da modificação do uso da razão, da vontade, da relação dela com a autoridade.

Já menor é aquele que não deseja pensar e agir com autonomia e obedece àqueles que se outorgam à tarefa de cuidar dele, mantendo-o na condição de minoridade.
           
Neste processo de passagem da minoridade para a maioridade já está em ação um embate agonístico, de poder e liberdade, de resistência ao poder.
           
O que Foucault inova em relação a Kant está na percepção de que o esclarecimento deve ser entendido como uma ‘atitude de modernidade’ e não como um período da história ou etapa do espírito humano:

“ o que quero dizer por atitude: um modo de relação com a atualidade; uma escolha voluntária, que é feita por alguns; enfim, uma maneira de pensar e sentir, também uma maneira de agir e de se conduzir que, ao mesmo tempo, marca um pertencimento e se apresenta como uma tarefa”(Foucault,M. Ditos e escritos, Vol. IV, p.568).

A atitude de modernidade consiste num ‘êthos’ filosófico, que:

“(...) consiste numa crítica do que somos, pensamos e fazemos, através de uma ontologia histórica de nós mesmos” (Foucault,M. Ditos e escritos. Vol.IV, p.574).

A atitude de modernidade totalmente interessada na atualidade, logo depois do diagnóstico do presente, neste exato momento, ela torna-se atitude-limite, prática transformadora da vida, subjetiva ou social. Escapa da velha imagem do dentro para fora, para se situar nas fronteiras, dirigindo-se, na medida do possível, para a ultrapassagem dos limites, para a ampliação do exercício da liberdade :

“procura relançar, tão longe e tão amplamente quanto possível o trabalho indefinido da liberdade”(Foucault, M. Ditos e escritos. Vol.IV, p.574).

O trabalho da liberdade e seu papel de resistência nas relações de poder, realizados pelas atitudes-limite, é interminável.


Referências

1)  Foucault, Michel. Ditos e escritos. Ética, estratégia, poder-saber. Motta, Manoel Barros da (Org.).Tradução de Vera Lúcia Avellar Ribiero, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003 v.4.
2) Foucault, M.. História da Sexualidade I – A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1977).   
3) Fleischer Margot, org. Filósofos do Século XX, História da Filosofia, Editora Unisinos, 2006.
4) Branco, Guilherme Castelo. Foucault. Os Filósofos Clássicos da Filosofia. Pecoraro Rossano (org.), Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 2009, v. III.

5) Furtado, Rafael Nogueira. Por um governo de si mesmo: Michel Foucault e a estética da existência. Paralaxe, Revista de estética e filosofia da arte. Ano I -  n.1 (2013).

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