MEDITAÇÕES
SOBRE FILOSOFIA PRIMEIRA
PRIMEIRA MEDITAÇÃO
SOBRE AS COISAS QUE PODEM SER POSTAS EM
DÚVIDA
(por
Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)
O século XVII se caracterizou por
uma série de descobertas científicas que desafiavam as concepções que
perduravam por aproximadamente dois mil anos, e que gozavam da autoridade de
Aristóteles, da Igreja e das universidades de um modo geral, resultantes da
tese de que o universo, cujo centro seria a Terra, exibiria uma hierarquia
interna e uma teleologia. Os experimentos de Galileu refutavam a concepção de
que os objetos da região sublunar se moviam em linha reta em direção ao que
seriam seus lugares naturais; a Teoria Copernicana de que a Terra não é o centro
estático do universo, mas ao contrário se move em torno do Sol, refutava o
cosmo medieval; a Primeira Lei de Newton, segundo a qual um corpo permanece em
seu estado (de movimento ou repouso) a menos que alguma força aja sobre ele,
explicava o movimento dos corpos sem referência ao que seria seu propósito ou
finalidade.
II - Sobre
as Meditações
Seis
são as Meditações, seis são as jornadas onde a reflexão se desenvolve e
progride. Segundo uma “ordem das razões”, ordem analítica da descoberta.
Nelas, Descartes pretende erigir as
bases para uma nova ciência, recomeçando dos primeiros fundamentos.
/1/
Faz alguns anos já dei-me conta de que admitira desde a infância muitas coisa
falsas por verdadeiras e de quão duvidoso era o que depois sobre elas construí.
Era preciso, portanto que, uma vez na vida, fossem postas abaixo todas as
coisas, todas as opiniões em que até então confiara, recomeçando dos primeiros
fundamentos, se desejasse estabelecer em algum momento algo firme e permanente
nas ciências. Mas, como tal se me afigurasse uma vasta tarefa, esperava
alcançar uma idade que fosse bastante madura, que nenhuma outra se lhe seguisse
mais apta a executá-la. Por isso, adiei por tanto tempo que, de agora em
diante, seria culpado, se consumisse em deliberar o tempo que me resta para
agir. (1ª Meditação)
A questão das Meditações é a da
justificação da verdade, ou da objetividade do que aparece como evidente.
Buscar a justificação da verdade não é mais situar-se num discurso metodológico
descritivo, mas sim num discurso metafísico. Aqui Descartes vai querer explicar
que a evidência é o critério de verdade.
Descartes assume nas Meditações a
ideia de que a filosofia está de algum modo comprometida com a verdade.
Seu discurso é constituído de
proposições concatenadas numa cadeia cujos elos seguem rigorosamente a ordem
das razões, isto é, proposições justificadas racionalmente.
Sendo assim, não se afirma num único
lugar tudo o que pode ser dito sobre um tema, pois dessa forma não se poderia
fornecer justificativas apropriadas, já que há razões que só podem ser
extraídas mais tarde.
Como consequência da pretensão de
seguir a ordem das razões, a dúvida cartesiana aparece como uma necessidade,
pois é através dela que se torna possível não aceitar o que não for
justificado.
A dúvida é, portanto, o instrumento
para se chegar ao que se pode conhecer: a matéria como pura extensão, cujo
conhecimento é mecanicista; a distinção entre alma, substância imaterial e
livre, e corpo, o que deixa a alma fora da explicação mecanicista; e a existência
de Deus, substância imaterial, infinita, criadora de todas as coisas e que
garante a verdade da evidência.
III -
Primeira Meditação : A Dúvida
Sobre
as coisas que podem ser postas em dúvida
Sinopse:
Expõem-se
na Primeira Meditação as causas por que podemos duvidar de todas as coisas,
principalmente das materiais, ao menos enquanto os fundamentos das ciências não
forem diversos dos que temos agora. E, mesmo que a utilidade de uma dúvida
tamanha não apareça de imediato, é ela, no entanto, muito grande por deixar-nos
livres de todos os preconceitos, por aplainar um caminho em que a mente
facilmente se desprenda dos sentidos e por fazer, enfim, que já não possamos
duvidar das coisas que, em seguida, se descubram verdadeiras. (pag.13)
A Primeira Meditação é composta de
13 parágrafos.
Descartes inicia a meditação desenvolvendo sua estratégia de
minar a confiança acerca, não de cada conteúdo específico do que
tradicionalmente se toma como conhecimento, mas sim dos princípios que guiam a
tradição. Trata-se de investigar se há razões para se desconfiar do que
tradicionalmente é considerado como fonte de conhecimento: os sentidos, a
imaginação e a razão. Havendo ao menos uma razão para dúvida, suspende-se a
crença neles como fontes legítimas de conhecimento.
O andamento inclui a extensão e a
intensificação progressiva da dúvida.
A dúvida assim posta em ação
distinguir-se-á da dúvida vulgar pelo fato de ser engendrada não por
experiência, mas por uma decisão.
Os §§ 1-3: estabelece-se o Princípio
da Dúvida Hiperbólica ou Excessiva, isto é sistemática e generalizada, a dúvida
começa por opor às opiniões, que naturalmente ou por hábito cominam a nossa
crença, um feixe de razões contrárias que, conquanto não provem a falsidade das
primeiras, lhes alteram a inteira certeza. E o filósofo, para quem é tão
razoável desconfiar do verossímil quanto do falso, acaba por rejeitar na
totalidade aquilo que não seja absolutamente indubitável .
/2/
É, portanto, em boa hora que, a mente desligada de todas as preocupações, no
sossego seguro deste retiro solitário, dedicar-me-ei por fim a derrubar séria,
livre e genericamente minhas antigas opiniões.
Ora,
para isso não será necessário mostrar que todas elas são falsas, - o que talvez
nunca pudesse conseguir, - mas porque a
razão já me persuade de que é preciso coibir o assentimento, de modo não menos
cuidadoso, tanto às coisas que não são de todo certas e fora de dúvida, quanto
às que são manifestamente falsas, bastará que encontre, em cada uma, alguma
razão de duvidar para que as rejeite todas.
E,
para fazê-lo, não será preciso também que as percorra uma por uma, tarefa
infindável, mas porque, se os fundamentos se afundam, desaba por si mesmo tudo
o que foi edificado sobre eles, atacarei de imediato os próprios princípios em
que se apoiava tudo aquilo em que outrora acreditei.
Descartes constata que, é preciso
desfazer-se de todas as antigas opiniões, consideradas duvidosas. Não por
desespero cético, mas como meio de buscar a verdade, que, não há dúvida, será
encontrada.
Os §§3-13: trata da Dúvida Radical, de argumentos que
estendem e radicalizam a dúvida, ela não
começa por atingir diretamente as opiniões, mas as fontes do conhecimento,
elevando-se dos sentidos ao entendimento como de uma fonte particularidades
imediatamente dadas a uma outra fonte mais simples e mais absoluta.
Assim, o § 3 refere-se ao argumento dos
erros dos sentidos.
Já os §§4-9 abordam o argumento do
sonho.
E os §§9-13 tratam do argumento que
estende a dúvida ao valor objetivo das essências matemáticas, em duas etapas: o
Deus enganador e o Gênio Maligno.
O argumento dos Erros dos sentidos e
o do sonho, são conhecidos também como a dúvida natural e a do Deus enganador e
do Gênio Maligno a da dúvida metafísica.
Todas as etapas da dúvida natural
estão relacionadas com a recusa do fundamento sensível do conhecimento, isto é,
a não aceitação de que a percepção sensível possa garantir, mesmo em parte, o
conhecimento.
A dúvida metafísica é a que deve
atingir representações que em princípio, são claras e distintas: pelo menos
assim aparecem ao exame espontâneo da razão, e é por isso que a matemática
sempre foi o conhecimento que proporcionou mais certeza. Para substituir as
razões naturais da dúvida, que aqui não existem, Descartes vai supor uma razão
de duvidar, ou seja, a dúvida metafísica é artificial. Essa suposição consiste
na argumentação do Deus enganador ou do Gênio Maligno.
Tratemos pois do primeiro argumento:
o §3 refere-se a Dúvida Epistêmica dos Dados Sensoriais, os erros dos sentidos:
/3/
Com efeito, tudo o que admiti até agora como o que há de mais verdadeiro, eu o
recebi dos sentidos ou pelos sentidos. Ora, notei que os sentidos às vezes
enganam e é prudente nunca confiar completamente nos que, seja uma vez, nos enganaram.
Descartes questiona a possibilidade
de, através dos sentidos, conhecermos as qualidades sensíveis dos objetos
singulares. Diz Descartes que se algumas vezes os sentidos nos enganam podem
sempre nos enganar, argumenta assim a razão da dúvida. Como de fato verificamos
que algumas vezes os sentidos nos enganam quanto às qualidades das coisas
singulares (se são grandes, pequenas, redondas ou quadradas, etc.) então
devemos suspender a crença nos sentidos como fontes legítimas de conhecimento
destas.
Constata-se a recusa do fundamento
sensível do conhecimento, isto é, a não aceitação de que a percepção sensível possa garantir, mesmo em parte, o
conhecimento.
Uma vez
verificado que tudo que sei vem direta ou indiretamente pelos sentidos, o
exercício deliberado da dúvida deverá começar pela recusa dessa origem de
minhas certezas. Como recuso o fundamento sensível do conhecimento, não preciso
examinar as certezas uma a uma, pois a derrubada do fundamento, faz com que
caia com ele tudo o que sobre ele tiver sido edificado. Não me contento,
portanto, com a enumeração dos erros eventuais dos sentidos, aqueles que posso
mais ou menos facilmente reconhecer como erros, mas admitirei que tudo o que se
relaciona com o conhecimento sensível é falso, estendendo e radicalizando a
dúvida até os elementos da sensação.( pag.36 e 37, Leopoldo e Silva Franklin,
Descartes a metafísica da modernidade, 5ª edição, Editora Moderna.)
O segundo argumento é a hipótese do sonho.
/5/
Ainda bem! Como se eu não fosse um homem, acostumado a dormir à noite e sentir
nos sonos todas essas mesmas coisas e, até menos verossímeis, que eles em sua
vigília! Em verdade, com que frequência o sono noturno não me persuadiu dessas
coisas usuais, isto é, que estava aqui, vestindo esta roupa, sentado junto ao
fogo, quando estava, porém nu, deitado entre as cobertas! Agora, no entanto,
estou certamente de olhos despertos e vejo este papel e, esta cabeça que
movimento não está dormindo e é, de propósito, ciente disso, que estendo e
sinto esta mão, coisas que não ocorreriam de modo tão distinto a quem dormisse.
Mas, pensando nisto cuidadosamente, como não recordar que fui iludido nos sonos
por pensamentos semelhantes, em outras ocasiões! E, quando penso mais
atentamente, vejo do modo mais manifesto que a vigília nunca pode ser
distinguida do sono por indícios certos, fico estupefato e esse mesmo estupor
quase me confirma na opinião de que estou dormindo.
Neste argumento Descartes lança mão
da impossibilidade de distinguir o sono da vigília. Nos sonhos percebemos os
objetos sensíveis, mas estes não existem, e como não se distingue a vigília do
sono por indícios certos, mina-se a crença de que os sentidos sejam fonte de
conhecimento mesma das coisas particulares.
/6/
Sonhemos, portanto, e que aquelas coisas particulares – que abrimos os olhos,
mexemos a cabeça, estendemos a mão e semelhantes – não são verdadeiras e talvez
não tenhamos também estas mãos, nem este corpo todo. (...)
Os argumentos dos sentidos
enganadores e do sonho arruínam o conhecimento que meus sentidos me dão do
exterior, assim como a certeza que tenho de sua existência.
E visto que a imaginação é a faculdade de
concretizar em imagens o que é dado pelos sentidos, ao suspender a crença nos
sentidos como fonte legítima de conhecimento Descartes questiona também a
imaginação.
Quanto ao limite do segundo
argumento:
“
O segundo argumento encontra, pois, o seu limite: ele não me permite pôr em
dúvida os componentes de minhas percepções, a saber, as “ naturezas simples”,
indecomponíveis ( figura, quantidade, espaço, tempo), que são o objeto da
matemática. Tais elementos “ escapam, contrariamente aos objetos sensíveis, a
todas as razões naturais de duvidar”, sublinha Guéroult, apoiando-se no texto
da 5ª Meditação: “ A natureza de meu espírito é tal que eu não me poderia
impedir de julgá-las verdadeiras enquanto as concebo clara e distintamente.”
Daí a necessidade de decorrer ao 3º argumento que abalará esta certeza “
natural”. (pag.95, 1ª Meditação, Descartes, Meditações, Os Pensadores, 1ª
edição, 1973)
O terceiro argumento: a essas razões
naturais para duvidar soma-se o terceiro argumento a hipótese de um Deus
enganador, que põe em perigo o edifício das verdades racionais (matemáticas). Mesmo
o conhecimento mais geral que não depende diretamente dos sentidos é
questionado: a existência não de coisas particulares, mas de um mundo externo e
as matemáticas.
Pode haver um Deus que
sistematicamente engane todas as vezes que se tem ideias claras e distintas e,
assim, mesmo quanto às idéias mais evidentes pode-se estar enganado. Suponho,
pois, que Deus tem o poder de me enganar e que, portanto, me leva a crer na
verdade das representações matemáticas fazendo com que elas me apareçam como
claras e distintas, quando em realidade não o são.
Se tenho dificuldades em acreditar,
ainda que apenas metodicamente, que Deus possa me enganar, escolho então supor
que há um Gênio Maligno que detém tal poder e o exerce quando penso nos seres
matemáticos ou efetuo operações que correspondem a essa ciência.
/12/
Suporei, portanto, que há não um Deus ótimo, fonte soberana da verdade, mas
algum gênio maligno, e ao mesmo tempo, sumamente poderoso e manhoso, que põe
toda a sua indústria em que me engane: pensarei que o céu, o ar, a terra, as
cores, as figuras, os sons e todas as coisas externas nada mais são do que
ludíbrios dos sonhos, ciladas que ele estende à minha credulidade. Pensarei que
sou mesmo desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue, de sentido algum
mas, tenho a falsa opinião de que possuo tudo isso. Manter-me-ei obstinadamente
firme nesta meditação, de maneira que, se não estiver em meu poder conhecer
algo verdadeiro, estará em mim pelo menos negar meu assentimento aos erros, às
coisas falsas. Eis por que tomarei cuidado para não receber em minha crença
nenhuma falsidade, a fim de que esse enganador, por mais poderoso e por mais
astuto que ele seja, nada possa me impor.
A hipótese do Malin Gênie (Gênio Maligno) permite universalizar a dúvida.
O que interessa é que em qualquer um desses casos o resultado é o
mesmo: sou necessariamente iludido quanto às representações matemáticas, uma
vez que não posso recusar como verdadeiro o que aparece como claro e distinto. Através
dessa suposição, que é uma ficção, tenho como estender a dúvida à esfera
matemática. De outro modo isso não seria possível, pois a matemática, enquanto
atividade mais elevada da razão, não pode de fato ser submetida a dúvida, uma
vez que o acordo entre a representação matemática e as essências matemáticas é
como o acordo da razão consigo mesma.
Se repararmos no caráter metódico da dúvida,
verificaremos que a suposição cartesiana tem a função de uma hipótese de que
lançamos mão para melhor formular um problema visando a sua solução. A
inspiração matemática do método aparece aqui de maneira nítida. Assim o
astrônomo supõe linhas imaginárias para melhor compreender a trajetória dos
astros, ou como o geômetra prolonga hipoteticamente linhas de uma figura para
melhor trabalhar com ela, assim também o filósofo lança mão de uma ficção que
lhe permite prolongar a dúvida a fim de que o problema do conhecimento venha a
ser inteiramente formulado, para que se possa resolvê-lo a partir de uma visão
total de todos os seus termos. A ficção aqui, tem um propósito: ela é
instrumental e participa do caráter metódico de uma dúvida que é provisória.
Assim nada é mais certo, salvo que:
ainda que não saiamos desse estado, ficaremos com a certeza de que não estamos
sendo enganados, pois pelos menos estamos conscientes da incerteza de todos os
conhecimentos.
IV
– Conclusão
Esses argumentos, acima citados, são cruciais
na economia das Meditações, na medida em que é respondendo a cada um deles que
Descartes introduz ao mesmo tempo seu próprio sistema filosófico e seu modelo
explicativo de conhecimento.
Com isso a argumentação da Primeira
meditação está completa. Como diz Descarte:
Sou
obrigado a confessar que, de todas as opiniões que recebi outrora em minha
crença como verdadeiras, não há nenhuma da qual não possa duvidar atualmente...
por razões...
Com
a dúvida exercida nessa extensão e nessa profundidade, o problema do
conhecimento fica completamente formulado. Isso permitirá que a solução que lhe
for dada seja também completa e encontrada no nível do fundamento do processo
de conhecer.
A
Primeira Meditação tem como peculiaridade o fato de não se tratar aí de
“estabelecer verdade alguma, mas apenas de me desfazer desses antigos
prejuízos” (Sétima Resposta).
Bibliografias:
1) Descartes,
Meditações sobre Filosofia Primeira, tradução Fausto Castilho, texto em Latim e
em Português, edições CEMODECOM, IFCH-UNICAMP;
2) Descartes,
Meditações , Os Pensadores, vol. XV, editor Victor Civita, fevereiro de 1973,
1ª edição;
3) Rocha Ethel
Menezes, Descartes, Os Filósofos Clássicos da Filosofia, vol. I, org. Rossano
Pecoraro, editora Vozes;
4) Leopoldo e
Silva Franklin ,Descartes a metafísica da modernidade, coleção logos, 5ª
edição,editora moderna;
5) Châtelet
François, Direção de, História da Filosofia vol.2, por Jean-Marie Beyssade,
Descartes, publicações Dom Quixote, Lisboa, 1995;
6) Huisman
Denis, Dicionário de Obras Filosóficas, Martins Fontes.
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