domingo, 2 de março de 2014

RENÉ DESCARTES

MEDITAÇÕES SOBRE FILOSOFIA PRIMEIRA        
PRIMEIRA MEDITAÇÃO
SOBRE AS COISAS QUE PODEM SER POSTAS EM DÚVIDA
 (por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)

I - Introdução:

            O século XVII se caracterizou por uma série de descobertas científicas que desafiavam as concepções que perduravam por aproximadamente dois mil anos, e que gozavam da autoridade de Aristóteles, da Igreja e das universidades de um modo geral, resultantes da tese de que o universo, cujo centro seria a Terra, exibiria uma hierarquia interna e uma teleologia. Os experimentos de Galileu refutavam a concepção de que os objetos da região sublunar se moviam em linha reta em direção ao que seriam seus lugares naturais; a Teoria Copernicana de que a Terra não é o centro estático do universo, mas ao contrário se move em torno do Sol, refutava o cosmo medieval; a Primeira Lei de Newton, segundo a qual um corpo permanece em seu estado (de movimento ou repouso) a menos que alguma força aja sobre ele, explicava o movimento dos corpos sem referência ao que seria seu propósito ou finalidade.

      
      Dentre as muitas tendências anti-aristotélicas da época a filosofia mecanicista foi a que atraiu cientistas e pensadores como Descartes por exemplo. O que os atraía era sua aparente compatibilidade com os desenvolvimentos recentes na astronomia, na ciência mecânica e na fisiologia. Em oposição às formas substanciais e qualidades obscuras de Aristóteles, tinha-se uma explicação matemática e um universo homogêneo cujas partes eram governadas pelas mesmas leis da natureza.

II - Sobre as Meditações

            Seis são as Meditações, seis são as jornadas onde a reflexão se desenvolve e progride. Segundo uma “ordem das razões”, ordem analítica da descoberta.
           
            Nelas, Descartes pretende erigir as bases para uma nova ciência, recomeçando dos primeiros fundamentos.

            /1/ Faz alguns anos já dei-me conta de que admitira desde a infância muitas coisa falsas por verdadeiras e de quão duvidoso era o que depois sobre elas construí. Era preciso, portanto que, uma vez na vida, fossem postas abaixo todas as coisas, todas as opiniões em que até então confiara, recomeçando dos primeiros fundamentos, se desejasse estabelecer em algum momento algo firme e permanente nas ciências. Mas, como tal se me afigurasse uma vasta tarefa, esperava alcançar uma idade que fosse bastante madura, que nenhuma outra se lhe seguisse mais apta a executá-la. Por isso, adiei por tanto tempo que, de agora em diante, seria culpado, se consumisse em deliberar o tempo que me resta para agir. (1ª Meditação)
           
            A questão das Meditações é a da justificação da verdade, ou da objetividade do que aparece como evidente. Buscar a justificação da verdade não é mais situar-se num discurso metodológico descritivo, mas sim num discurso metafísico. Aqui Descartes vai querer explicar que a evidência é o critério de verdade.
           
            Descartes assume nas Meditações a ideia de que a filosofia está de algum modo comprometida com a verdade.
           
            Seu discurso é constituído de proposições concatenadas numa cadeia cujos elos seguem rigorosamente a ordem das razões, isto é, proposições justificadas racionalmente.
                       
            Sendo assim, não se afirma num único lugar tudo o que pode ser dito sobre um tema, pois dessa forma não se poderia fornecer justificativas apropriadas, já que há razões que só podem ser extraídas mais tarde.
           
            Como consequência da pretensão de seguir a ordem das razões, a dúvida cartesiana aparece como uma necessidade, pois é através dela que se torna possível não aceitar o que não for justificado.
           
            A dúvida é, portanto, o instrumento para se chegar ao que se pode conhecer: a matéria como pura extensão, cujo conhecimento é mecanicista; a distinção entre alma, substância imaterial e livre, e corpo, o que deixa a alma fora da explicação mecanicista; e a existência de Deus, substância imaterial, infinita, criadora de todas as coisas e que garante a verdade da evidência.

III - Primeira Meditação :  A Dúvida

            Sobre as coisas que podem ser postas em dúvida
Sinopse:
            Expõem-se na Primeira Meditação as causas por que podemos duvidar de todas as coisas, principalmente das materiais, ao menos enquanto os fundamentos das ciências não forem diversos dos que temos agora. E, mesmo que a utilidade de uma dúvida tamanha não apareça de imediato, é ela, no entanto, muito grande por deixar-nos livres de todos os preconceitos, por aplainar um caminho em que a mente facilmente se desprenda dos sentidos e por fazer, enfim, que já não possamos duvidar das coisas que, em seguida, se descubram verdadeiras. (pag.13)

            A Primeira Meditação é composta de 13 parágrafos.
           
            Descartes inicia a  meditação desenvolvendo sua estratégia de minar a confiança acerca, não de cada conteúdo específico do que tradicionalmente se toma como conhecimento, mas sim dos princípios que guiam a tradição. Trata-se de investigar se há razões para se desconfiar do que tradicionalmente é considerado como fonte de conhecimento: os sentidos, a imaginação e a razão. Havendo ao menos uma razão para dúvida, suspende-se a crença neles como fontes legítimas de conhecimento.
           
            O andamento inclui a extensão e a intensificação progressiva da dúvida.

            A dúvida assim posta em ação distinguir-se-á da dúvida vulgar pelo fato de ser engendrada não por experiência, mas por uma decisão.

            Os §§ 1-3: estabelece-se o Princípio da Dúvida Hiperbólica ou Excessiva, isto é sistemática e generalizada, a dúvida começa por opor às opiniões, que naturalmente ou por hábito cominam a nossa crença, um feixe de razões contrárias que, conquanto não provem a falsidade das primeiras, lhes alteram a inteira certeza. E o filósofo, para quem é tão razoável desconfiar do verossímil quanto do falso, acaba por rejeitar na totalidade aquilo que não seja absolutamente indubitável .
           
            /2/ É, portanto, em boa hora que, a mente desligada de todas as preocupações, no sossego seguro deste retiro solitário, dedicar-me-ei por fim a derrubar séria, livre e genericamente minhas antigas opiniões.
            Ora, para isso não será necessário mostrar que todas elas são falsas, - o que talvez nunca pudesse conseguir, -  mas porque a razão já me persuade de que é preciso coibir o assentimento, de modo não menos cuidadoso, tanto às coisas que não são de todo certas e fora de dúvida, quanto às que são manifestamente falsas, bastará que encontre, em cada uma, alguma razão de duvidar para que as rejeite todas.
            E, para fazê-lo, não será preciso também que as percorra uma por uma, tarefa infindável, mas porque, se os fundamentos se afundam, desaba por si mesmo tudo o que foi edificado sobre eles, atacarei de imediato os próprios princípios em que se apoiava tudo aquilo em que outrora acreditei.
 
            Descartes constata que, é preciso desfazer-se de todas as antigas opiniões, consideradas duvidosas. Não por desespero cético, mas como meio de buscar a verdade, que, não há dúvida, será encontrada.

            Os §§3-13:  trata da Dúvida Radical, de argumentos que estendem e radicalizam a dúvida,  ela não começa por atingir diretamente as opiniões, mas as fontes do conhecimento, elevando-se dos sentidos ao entendimento como de uma fonte particularidades imediatamente dadas a uma outra fonte mais simples e mais absoluta.
           
            Assim, o § 3 refere-se ao argumento dos erros dos sentidos.
           
            Já os §§4-9 abordam o argumento do sonho.
           
            E os §§9-13 tratam do argumento que estende a dúvida ao valor objetivo das essências matemáticas, em duas etapas: o Deus enganador e o Gênio Maligno.
           
            O argumento dos Erros dos sentidos e o do sonho, são conhecidos também como a dúvida natural e a do Deus enganador e do Gênio Maligno a da dúvida metafísica.
           
            Todas as etapas da dúvida natural estão relacionadas com a recusa do fundamento sensível do conhecimento, isto é, a não aceitação de que a percepção sensível possa garantir, mesmo em parte, o conhecimento.

            A dúvida metafísica é a que deve atingir representações que em princípio, são claras e distintas: pelo menos assim aparecem ao exame espontâneo da razão, e é por isso que a matemática sempre foi o conhecimento que proporcionou mais certeza. Para substituir as razões naturais da dúvida, que aqui não existem, Descartes vai supor uma razão de duvidar, ou seja, a dúvida metafísica é artificial. Essa suposição consiste na argumentação do Deus enganador ou do Gênio Maligno.

            Tratemos pois do primeiro argumento: o §3 refere-se a Dúvida Epistêmica dos Dados Sensoriais,  os erros dos sentidos:

            /3/ Com efeito, tudo o que admiti até agora como o que há de mais verdadeiro, eu o recebi dos sentidos ou pelos sentidos. Ora, notei que os sentidos às vezes enganam e é prudente nunca confiar completamente nos que, seja uma vez, nos enganaram.

            Descartes questiona a possibilidade de, através dos sentidos, conhecermos as qualidades sensíveis dos objetos singulares. Diz Descartes que se algumas vezes os sentidos nos enganam podem sempre nos enganar, argumenta assim a razão da dúvida. Como de fato verificamos que algumas vezes os sentidos nos enganam quanto às qualidades das coisas singulares (se são grandes, pequenas, redondas ou quadradas, etc.) então devemos suspender a crença nos sentidos como fontes legítimas de conhecimento destas.
           
            Constata-se a recusa do fundamento sensível do conhecimento, isto é, a não aceitação de que a percepção sensível  possa garantir, mesmo em parte, o conhecimento.

             Uma vez verificado que tudo que sei vem direta ou indiretamente pelos sentidos, o exercício deliberado da dúvida deverá começar pela recusa dessa origem de minhas certezas. Como recuso o fundamento sensível do conhecimento, não preciso examinar as certezas uma a uma, pois a derrubada do fundamento, faz com que caia com ele tudo o que sobre ele tiver sido edificado. Não me contento, portanto, com a enumeração dos erros eventuais dos sentidos, aqueles que posso mais ou menos facilmente reconhecer como erros, mas admitirei que tudo o que se relaciona com o conhecimento sensível é falso, estendendo e radicalizando a dúvida até os elementos da sensação.( pag.36 e 37, Leopoldo e Silva Franklin, Descartes a metafísica da modernidade, 5ª edição, Editora Moderna.)

            O segundo argumento é  a hipótese do sonho.

            /5/ Ainda bem! Como se eu não fosse um homem, acostumado a dormir à noite e sentir nos sonos todas essas mesmas coisas e, até menos verossímeis, que eles em sua vigília! Em verdade, com que frequência o sono noturno não me persuadiu dessas coisas usuais, isto é, que estava aqui, vestindo esta roupa, sentado junto ao fogo, quando estava, porém nu, deitado entre as cobertas! Agora, no entanto, estou certamente de olhos despertos e vejo este papel e, esta cabeça que movimento não está dormindo e é, de propósito, ciente disso, que estendo e sinto esta mão, coisas que não ocorreriam de modo tão distinto a quem dormisse. Mas, pensando nisto cuidadosamente, como não recordar que fui iludido nos sonos por pensamentos semelhantes, em outras ocasiões! E, quando penso mais atentamente, vejo do modo mais manifesto que a vigília nunca pode ser distinguida do sono por indícios certos, fico estupefato e esse mesmo estupor quase me confirma na opinião de que estou dormindo.
           
            Neste argumento Descartes lança mão da impossibilidade de distinguir o sono da vigília. Nos sonhos percebemos os objetos sensíveis, mas estes não existem, e como não se distingue a vigília do sono por indícios certos, mina-se a crença de que os sentidos sejam fonte de conhecimento mesma das coisas particulares.

            /6/ Sonhemos, portanto, e que aquelas coisas particulares – que abrimos os olhos, mexemos a cabeça, estendemos a mão e semelhantes – não são verdadeiras e talvez não tenhamos também estas mãos, nem este corpo todo.  (...)
           
            Os argumentos dos sentidos enganadores e do sonho arruínam o conhecimento que meus sentidos me dão do exterior, assim como a certeza que tenho de sua existência.

             E visto que a imaginação é a faculdade de concretizar em imagens o que é dado pelos sentidos, ao suspender a crença nos sentidos como fonte legítima de conhecimento Descartes questiona também a imaginação.

            Quanto ao limite do segundo argumento:

            “ O segundo argumento encontra, pois, o seu limite: ele não me permite pôr em dúvida os componentes de minhas percepções, a saber, as “ naturezas simples”, indecomponíveis ( figura, quantidade, espaço, tempo), que são o objeto da matemática. Tais elementos “ escapam, contrariamente aos objetos sensíveis, a todas as razões naturais de duvidar”, sublinha Guéroult, apoiando-se no texto da 5ª Meditação: “ A natureza de meu espírito é tal que eu não me poderia impedir de julgá-las verdadeiras enquanto as concebo clara e distintamente.” Daí a necessidade de decorrer ao 3º argumento que abalará esta certeza “ natural”. (pag.95, 1ª Meditação, Descartes, Meditações, Os Pensadores, 1ª edição, 1973)

            O terceiro argumento: a essas razões naturais para duvidar soma-se o terceiro argumento a hipótese de um Deus enganador, que põe em perigo o edifício das verdades racionais (matemáticas). Mesmo o conhecimento mais geral que não depende diretamente dos sentidos é questionado: a existência não de coisas particulares, mas de um mundo externo e as matemáticas.

            Pode haver um Deus que sistematicamente engane todas as vezes que se tem ideias claras e distintas e, assim, mesmo quanto às idéias mais evidentes pode-se estar enganado. Suponho, pois, que Deus tem o poder de me enganar e que, portanto, me leva a crer na verdade das representações matemáticas fazendo com que elas me apareçam como claras e distintas, quando em realidade não o são.

            Se tenho dificuldades em acreditar, ainda que apenas metodicamente, que Deus possa me enganar, escolho então supor que há um Gênio Maligno que detém tal poder e o exerce quando penso nos seres matemáticos ou efetuo operações que correspondem a essa ciência.

            /12/ Suporei, portanto, que há não um Deus ótimo, fonte soberana da verdade, mas algum gênio maligno, e ao mesmo tempo, sumamente poderoso e manhoso, que põe toda a sua indústria em que me engane: pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas externas nada mais são do que ludíbrios dos sonhos, ciladas que ele estende à minha credulidade. Pensarei que sou mesmo desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue, de sentido algum mas, tenho a falsa opinião de que possuo tudo isso. Manter-me-ei obstinadamente firme nesta meditação, de maneira que, se não estiver em meu poder conhecer algo verdadeiro, estará em mim pelo menos negar meu assentimento aos erros, às coisas falsas. Eis por que tomarei cuidado para não receber em minha crença nenhuma falsidade, a fim de que esse enganador, por mais poderoso e por mais astuto que ele seja, nada possa me impor.
           
            A hipótese do Malin Gênie (Gênio Maligno) permite universalizar a dúvida.
                       
            O que interessa é que  em qualquer um desses casos o resultado é o mesmo: sou necessariamente iludido quanto às representações matemáticas, uma vez que não posso recusar como verdadeiro o que aparece como claro e distinto. Através dessa suposição, que é uma ficção, tenho como estender a dúvida à esfera matemática. De outro modo isso não seria possível, pois a matemática, enquanto atividade mais elevada da razão, não pode de fato ser submetida a dúvida, uma vez que o acordo entre a representação matemática e as essências matemáticas é como o acordo da razão consigo mesma.

             Se repararmos no caráter metódico da dúvida, verificaremos que a suposição cartesiana tem a função de uma hipótese de que lançamos mão para melhor formular um problema visando a sua solução. A inspiração matemática do método aparece aqui de maneira nítida. Assim o astrônomo supõe linhas imaginárias para melhor compreender a trajetória dos astros, ou como o geômetra prolonga hipoteticamente linhas de uma figura para melhor trabalhar com ela, assim também o filósofo lança mão de uma ficção que lhe permite prolongar a dúvida a fim de que o problema do conhecimento venha a ser inteiramente formulado, para que se possa resolvê-lo a partir de uma visão total de todos os seus termos. A ficção aqui, tem um propósito: ela é instrumental e participa do caráter metódico de uma dúvida que é provisória.

            Assim nada é mais certo, salvo que: ainda que não saiamos desse estado, ficaremos com a certeza de que não estamos sendo enganados, pois pelos menos estamos conscientes da incerteza de todos os conhecimentos.

            IV – Conclusão

             Esses argumentos, acima citados, são cruciais na economia das Meditações, na medida em que é respondendo a cada um deles que Descartes introduz ao mesmo tempo seu próprio sistema filosófico e seu modelo explicativo de conhecimento.
           
            Com isso a argumentação da Primeira meditação está completa. Como diz Descarte:

            Sou obrigado a confessar que, de todas as opiniões que recebi outrora em minha crença como verdadeiras, não há nenhuma da qual não possa duvidar atualmente... por razões...

            Com a dúvida exercida nessa extensão e nessa profundidade, o problema do conhecimento fica completamente formulado. Isso permitirá que a solução que lhe for dada seja também completa e encontrada no nível do fundamento do processo de conhecer.

            A Primeira Meditação tem como peculiaridade o fato de não se tratar aí de “estabelecer verdade alguma, mas apenas de me desfazer desses antigos prejuízos” (Sétima Resposta).


Bibliografias:
1) Descartes, Meditações sobre Filosofia Primeira, tradução Fausto Castilho, texto em Latim e em Português, edições CEMODECOM, IFCH-UNICAMP;
2) Descartes, Meditações , Os Pensadores, vol. XV, editor Victor Civita, fevereiro de 1973, 1ª edição;
3) Rocha Ethel Menezes, Descartes, Os Filósofos Clássicos da Filosofia, vol. I, org. Rossano Pecoraro, editora Vozes;
4) Leopoldo e Silva Franklin ,Descartes a metafísica da modernidade, coleção logos, 5ª edição,editora moderna;
5) Châtelet François, Direção de, História da Filosofia vol.2, por Jean-Marie Beyssade, Descartes, publicações Dom Quixote, Lisboa, 1995;  

6) Huisman Denis, Dicionário de Obras Filosóficas, Martins Fontes. 

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