sexta-feira, 2 de maio de 2014

KIERKEGAARD


Os estádios da existência na filosofia de Kierkegaard
 (por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)


 Resumo:
Este artigo tem como objetivo abordar os estádios da existência na filosofia de Kierkegaard. Primeiro fala-se do filósofo Soren Kierkegaard, logo depois, trata-se dos estádios estético, ético e religioso, respectivamente. Em um estádio inicial, que ele chama de “estético”, o homem buscaria o prazer e a satisfação dos sentidos. Desiludido, ele buscaria a segurança das leis e dos valores estabelecidos, passando para o estádio “ético”. Porém, percebendo mais uma vez sua desilusão, chegaria a hora de romper com os compromissos sociais e entregar-se à relação direta com Deus, no estádio “ religioso”.

I – Introdução

Sören Kierkegaard (1813-1855) filósofo, escritor e teólogo dinamarquês, nascido em Copenhague, é considerado precursor do existencialismo, tendo influenciado Heidegger, Sartre e Kafka, além de Thomas Mann e Ibsen. Considerado o mais profundo intérprete da psicologia e da vida religiosa desde Santo Agostinho, ao apontar o desespero e a angústia inerentes a todos nós, legou-nos uma profunda análise da consciência humana. Dentre suas obras destacamos: Ou Isto ou Aquilo, Diário de um Sedutor, O Desespero Humano e Temor e Tremor.

Kierkegaard viveu só 42 anos, quase sempre na sua cidade de Copenhague.Tal como Sócrates, era um pensador urbano, e apreciava mais o convívio com as pessoas do que o trato com a natureza, apesar de ter sensibilidade para ela e até ter cogitado propor que o Parlamento contasse com um deputado da natureza.

Criado dentro de uma rígida formação religiosa, Kierkegaard dirigiu-se, inicialmente, à teologia. Porém, sua busca por uma fé pura logo se chocou com a Igreja dinamarquesa, uma instituição estatal na qual os pastores eram funcionários quase burocráticos.

Toda a sua vida foi dominada pela luta entre duas tendências radicalmente opostas: de um lado, sua necessidade espiritual de ascese e de pureza, de outro, o apelo às necessidades da carne e aos prazeres mundanos. Isso o levou à ruptura de seu noivado com Regina Olsen, em 1841, acontecimento que influenciaria toda a sua obra posterior. A marca desse impasse entre o corporal e o espiritual transparece em sua obra de forma radical, já que Kierkegaard alternava obras de cunho religioso ( até mesmo  sermões) com ensaios literários e filosóficos.

Boa parte dessas obras foram publicadas com pseudônimos ( Johannes Climacus, Victor Eremita, Anticlimacus...) aos quais Kierkegaard, como brilhante escritor, conseguia conferir personalidades próprias. Para ele, o grande tema da problematização é a relação entre o homem e Deus. Essa relação é individual e pessoal, já que a fé seria algo interno.

Kierkegaard questiona o sistema dos hegelianos e utiliza a maiêutica socrática de modo realmente original. Sua maneira de levar a sério os fenômenos negativos, como tédio, angústia e desespero, sua constante busca do sentido da vida e de qual papel sua existência individual deveria desempenhar (sua vocação nesta existência), mais o seu esforço por impedir as fugas da existência representadas pelo romantismo alienado e pelo idealismo sem compromisso com a realidade moral fazem deste escritor especulativo o que se poderia  chamar um filósofo da existência, herdeiro de Sócrates, Agostinho e Pascal.

Antecipou, de fato, em muitos pontos, o pensamento de Heidegger, embora sua presença esteja mais explicitada em Jaspers. Impossível não perceber sua presença em Sartre      (até no uso da literatura e do teatro, ou na panfletagem nas ruas nos últimos tempos), mas também foi marcante para Adorno, com sua defesa do não  idêntico, e para o próprio Wittgenstein.


Na  literatura, é companheiro de Dostoievski, Kafka e Camus e, no século XX, é muito aproveitado, pelo suíço Max Frisch, que explora muitos de seus temas. Na teologia, sua marca em Karl Barth é bastante conhecida, mas vale a pena descobri-la também no coração do pensamento de Paul Tillich ( orientador, aliás, da tese de Adorno sobre Kierkegaard).

Tendo escrito sempre em sua língua natal, a fortuna de sua obra dependeu das traduções, nem sempre fiéis. Na Alemanha, penetrou através de pastores em conflito com suas igrejas; na França foi lido como o grande esteta sedutor, de literatura de salão, até Tisseau traduzi-lo todo. No Japão, sua obra chegou junto com a de Heidegger, desde os anos 1930, e teve um papel de formação das consciências, inclusive apoiando mártires cristãos. Nos Estados Unidos, onde há pouco Howard e Edna Hong completaram a tradução de suas obras para o inglês, consegue aproximar magistralmente os temas da filosofia com os da religião.

No Brasil, vem sendo cada vez mais lido, à medida que surgem traduções mais fiéis aos seus textos originais. Entre nós, seu método irônico e sua comunicação indireta despertaram grande interesse, de modo que as formas de seu discurso (o “como se diz”) importam tanto quanto o conteúdo das obras com pseudônimos, das assinadas por ele e também dos volumes dos diários (“o que ele disse”). Para a ironia, a questão é saber “ o que o autor queria dizer”.

II – Os Estádios da existência

Para Kierkegaard o homem nasce com corpo e alma e, aos poucos, durante sua existência, através de suas escolhas, vai construindo o Espírito. “A verdade é a subjetividade”, não se escapa desta que é, para o indivíduo, sua própria medida e significação.

Às etapas que constituem o caminhar ao transcendente, Kierkegaard denominou de “Stadium” e estes são o estético, o ético e o religioso. São etapas autônomas e descontínuas, pois a passagem de um estádio a outro se dá através de uma brusca ruptura ou de um salto.

O tema existencial dos estádios encontra e transpõe para o concreto a distinção clássica entre gênero ou ordens de conhecimento: os três gêneros de Spinoza, as três ordens de Pascal ou ainda a opinião, o saber e a fé em Kant. Kierkegaard distingue assim três estádios existenciais: o estádio estético em que o homem se abandona à imediatidade, o estádio ético em que se submete a lei moral ( o geral, como se diz), e o estádio religioso em que o homem, abraçando a eternidade, se deixa dirigir pelo amor, para além do bem e do mal. A vida, para poder chegar à plenitude, comanda a paixão de existir como amor e autoafirmação. Este ato é originário, é o ato de querer tornar-se a si mesmo. A opção original do eu é um amor a si mesmo, é de verdade o primeiro amor. Todavia, o homem pode se amar mal. (Farago France. Compreender Kierkegaard)

III – Estádio Estético

No estádio estético, que é o mundo da matéria, o homem que se encontra nele vive  para o “aqui e agora”. É neste estádio que nos deparamos com a mesquinhez e o narcisismo, onde nada é estritamente impossível.

O que interessa ao homem deste estádio é o Don Juanesco jogo da sedução, da manipulação onde os meios justificam-se pelos fins. O sujeito apropria-se do entorno e faz de sua existência uma representação exclusivamente individual, não considera a instância de deveres éticos ou das obrigações sociais, esgota-se na exterioridade representada. O esteta vive na esfera das possibilidades e a expressão desse sujeito é sua rica, variada e vasta mobilidade de sentimentos.

No “O Diário de um Sedutor” encontramos o personagem Johannes, um ardiloso jovem que goza, acima de tudo, da possibilidade da conquista mais que do próprio objeto da conquista. Ele faz da inocente Cordélia sua vítima e a vê como uma “presa” a ser meticulosamente arrebatada e ardilosamente descartada. Por se tratar de um personagem extremamente inteligente e consciente, possuidor de uma visão de mundo,  se coloca acima de tudo e de todos, uma das facetas de sua personalidade é a ironia.


Porém, a insaciável e perpétua busca por novidades conduz ao desespero. Na vida do homem do estágio estético, submerge inevitavelmente a melancolia – que é fruto de uma personalidade que permanece na imediatidade, absolutamente desprovida de uma reflexão ética.


O estádio estético deixa a pessoa em um beco sem saída, condena-a ao desespero, pois o esteta, que tudo sacrifica à busca do prazer imediato, vive de fato na dor, ou melhor, o esteta perdeu “aquilo que o homem possui de mais profundo e mais sagrado, o poder unificador da personalidade.”

O “dandy”,  e sabe-se que Kierkegaard experimentou esse jogo, é o homem dos extremos, que esconde o seu mal-estar vital sob uma aparência estudada, uma compostura vazia. Trata-se de um homem insensível, desorientado, que esconde o desespero numa fuga incessante, uma negação assassina. O esteta que tudo sacrifica à busca do prazer imediato, vive de fato na dor. Querendo viver no instante, no sentido puramente empírico do termo, apoderando-se das presas que cada ocasião lhe pode proporcionar, é preso pela fugacidade que nega a captura, condenado “ipso facto”  a se lembrar de novo de si.

(...)

Deste modo, o sentimento do insensato se acha ligado a um tempo morto, a um tempo  incapaz de gerar futuro e o progresso pessoal, daí o sentimento de dês-realização: “ Tu és como um moribundo, morres todos os dias, não no sentido ordinário da palavra, mas a vida para ti perdeu a realidade” (OCIV, p177)

(...)

A angústia é o estado que fere o homem que pretende permanecer no estádio estético da existência.  (Farago France. Compreender Kierkegaard).

IV- Estádio Ético

No estádio ético que é alcançado a partir de um salto, o homem busca se auto afirmar como sujeito, caminha para a realização dos deveres expressos por seus julgamentos de conduta ético-moral.  Caracteriza-se pelo espírito de seriedade.

O homem do ético realiza a síntese do estético e do ético, eliminando aquilo que na vida puramente estética era diversidade, dispersão, acaso e inconstância, isto é, incompatível com a unidade verdadeiramente coerente de um projeto de vida, Felicidade com piedade [Cum pietate felicitas].

O personagem que retrata essa transformação é o do juiz Guilherme. Segundo Reichmann “A personalidade quer tomar consciência de si mesma em sua validez eterna. Se isto não suceder o movimento permanece contido e, se a personalidade é reprimida, então surge a melancolia. Muito se pode fazer para mergulhá-la no esquecimento. Pode-se trabalhar, distrair-se, mas a melancolia permanece. Na melancolia existe algo de inexplicável. Quem tem sofrimentos e preocupações conhece sua causa. Quando se pergunta a um melancólico qual a razão de sua melancolia, o que o oprime, responderá que não sabe, que não pode explicá-lo. Nisto consiste o infinito da melancolia. Desde em que se a conhece, a melancolia deixa de existir, enquanto que o sofrimento do aflito não cessa pelo fato de conhecer a causa da aflição. A melancolia é um pecado de não querer profunda e sinceramente”.

Afirma Kierkegaard que será por meio de suas escolhas que este homem vivenciará sua história, sendo esta parte indissociável das opções que fizer. No esteta, o mundo é terreno das sensações agradáveis; no estágio ético, o homem está consagrado às leis morais. Segundo esta teoria, desde sua origem, o homem encontra-se na “não verdade” e, não podendo ser sua própria referência, necessita de um mediador externo ao “eu”.

A ética, por ser a lei do geral, favorece a tendência que habita em cada um a se perder na turba, ameaça perverter tudo, inclusive a sua moral. Ela não seria capaz, por exemplo, de proporcionar uma solução para os casos que comportam algo de excepcional. Há, portanto, casos em que a ética é totalmente impotente, e casos até em que é absolutamente impossível achar uma regra de comportamento.  Eis por que Kierkegaard  proclama a necessidade algumas vezes de uma “ suspensão teleológica da ética” para aquele que queira ir até o extremo da afirmação de si mesmo em Deus. A vida então se desenrola além do bem e do mal. A generalidade deve ceder o lugar à singularidade única e responsável. (Farago France. Compreender Kierkegaard)

V – Estádio Religioso

A única esperança para o desespero humano está na compreensão da própria existência, que é finita. E tal compreensão só se alcança pela fé. Todas estas alternativas possíveis representam um risco e, como Kierkegaard quer que o homem se veja impulsionado pelo infinito, sua decisão tem de optar entre o Todo ou o Nada.

No estádio religioso supõe-se a intervenção de um elemento exterior, descortina-se uma nova e paradoxal realidade, trata-se da fé, da crença numa instância superior, num “Deus”. Convém ressaltar que, mesmo religioso, Kierkegaard foi um crítico mordaz das instituições religiosas, apontando-as como monopólio organizado, que tratam de administrar o que pertence ao domínio privado da alma individual: a fé.

Esse estádio é pessoal, subjetivo. Pode ser ou não vivenciado com fervor por um rude e anônimo camponês, como também pelo mais elevado intelectual.

 Este salto, que é dado mediante a relação direta entre o homem e Deus, está retratado no mito judaico-cristão de Abraão, a quem seu Deus pede o sacrifício do filho Isaac. Trata-se de uma questão puramente de fé.


Em Temor e Tremor, Kierkegaard  utilizando-se do pseudônimo de Johannes de Silentio, serviu-se do episódio do sacrifício de Isaac para ilustrar o estádio religioso. Johannes mostra que pode ocorrer o caso de se escancarar um profundo abismo entre a finitude e a infinitude, e acontecer então que os movimentos de subida rumo ao infinito e de regresso ao finito se contradigam um ao outro, e esse é o caso de Abraão, que obedece à ordem de Deus para sacrificar-lhe Isaac, o filho de sua velhice e também o filho da promessa. Abraão transcende a unidade de sua vida em uma resignação infinita. A unidade harmoniosa é o da estética e da ética, que caracteriza a vida de Abraão na felicidade de uma paternidade tardia. É necessário a força da fé que mantém contra toda probabilidade que Deus dará a Abraão a volta do filho, a finitude é, o centro em cujo redor tudo se ordena, e a fé não faz o movimento para a infinitude, mas o da volta para a finitude. É certo que a ordem de Deus é absolutamente incompreensível e contrária a toda a ética aos olhos humanos, mas Abraão creu, creu contra toda evidência que seu filho lhe seria devolvido, mesmo nesta vida, ele passou pela prova. É o relato de uma prova, seguido de uma história de bênção, é também o relato de uma ascensão. O sacrifício de Abraão é uma experiência-limite extrema de relação com Deus, onde Abraão surge como figura exemplar da fé, expressa através de duas noções aparentemente contraditórias: o temor e a confiança que coexistem, que se articular, é certo que durante todo o tempo de caminhada teve fé, acreditou que Deus não lhe queria exigir Isaac, enquanto, estava disposto a sacrificá-lo, caso necessário. Subiu a montanha e, no instante em que a faca brilhava, creu que Deus não exigiria Isaac, contra toda a expectativa e todo o bom-senso, Abraão creu, acreditou que seu filho lhe seria devolvido e recebeu Isaac com maior alegria, a fé é a certeza de uma esperança, a fé exprime a certeza de que receberá um dom, o próprio dom daquilo que ele oferece e que já recebera, e Abraão recebera a fé do próprio Deus, pois Amar a Deus com a fé é refletir-se em Deus, e Abraão interpelado por Deus, responde incondicionalmente ao chamado respondendo: Eis-me aqui. Abraão sabe que do encontro com Deus nasce a vida. O significado desse drama vem do fato de que Deus, pela intervenção de seu mensageiro, corrige a interpretação primeira que Abraão fizera de sua ordem. Ele surge então como um Deus que pede a vida, e não a morte, mas uma vida capaz de superação, de mortificação da tentação de tomar posse daquilo que Deus dá sem o restituir ao que o deu.”( Farago ,France. Compreender Kierkegaard)

A fé exige o sacrifício de Isaac, ou seja, um salto no escuro, a disposição sincera de abdicar daquilo que consideramos mais precioso. Paradoxalmente “é preciso puxar a faca para que se possa ter Isaac de volta”. Isso é fé.

Abraão transpõe, pelo seu ato totalmente singular, o estádio ético, que é da ordem do geral, realizando aquilo que Kierkegaard denomina “a suspensão teleológica da ética”, ou melhor, nos momentos decisivos, as situações-limite onde a existência toca o essencial, ficam suspensas todas as mediações. A certeza de Kierkegaard é que, na ordem do espírito, a Deus tudo é possível.

Somente no estádio religioso realiza a presença da eternidade no tempo, a plenitude da encarnação, nesse estádio perde-se as miragens do gozo, a prisão da lei abre suas grades em proveito da gratuidade do amor e a pessoa realiza em plenitude a aliança entre o tempo e a eternidade, assim o estádio religioso corresponde à vocação cristã propriamente dita.

Há uma alegria indescritível, inexplicável, que nos ilumina tão de súbito, de maneira tão despida de motivo como a explosão do Apóstolo: “Alegrai-vos, repito, alegrai-vos”. Não esta ou aquela alegria particular, mas o grito que transborda da alma, com a língua e a boca e do fundo do coração (...) que alça vôo para as alturas eternas(...). Sinto-me tão alegre, tão rico, tão indescritivelmente rico.  (Farago France. Compreender Kierkegaard)

Referências:

1) FARAGO, France. Compreender Kierkegaard. Rio de Janeiro: Vozes, 2006;

2) SHOPKE, Regina. Dicionário Filosófico. Martins Fontes;

3) Pecoraro Rossano (org.),  Os Filósofos Clássicos da Filosofia. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 2009, v. II.
4) SAMPAIO, S.S. Ironia, Repetição, Silêncio: O Estilo do Pensador Subjetivo. Revista Intercâmbio, volume XV. São Paulo: Lael/PUC-SP, ISSN 1806-275X, 2006.

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