Os estádios da existência na
filosofia de Kierkegaard
(por
Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)
Este artigo tem como objetivo abordar os
estádios da existência na filosofia de Kierkegaard. Primeiro fala-se do
filósofo Soren Kierkegaard, logo depois, trata-se dos estádios estético, ético
e religioso, respectivamente. Em um estádio inicial, que ele
chama de “estético”, o homem buscaria o prazer e a satisfação dos sentidos.
Desiludido, ele buscaria a segurança das leis e dos valores estabelecidos,
passando para o estádio “ético”. Porém, percebendo mais uma vez sua desilusão,
chegaria a hora de romper com os compromissos sociais e entregar-se à relação
direta com Deus, no estádio “ religioso”.
I – Introdução
Sören Kierkegaard (1813-1855) filósofo, escritor e
teólogo dinamarquês, nascido em Copenhague, é considerado precursor do
existencialismo, tendo influenciado Heidegger, Sartre e Kafka, além de Thomas
Mann e Ibsen. Considerado o mais profundo intérprete da psicologia e da vida
religiosa desde Santo Agostinho, ao apontar o desespero e a angústia inerentes
a todos nós, legou-nos uma profunda análise da consciência humana. Dentre suas
obras destacamos: Ou Isto ou Aquilo, Diário de um Sedutor, O Desespero Humano e
Temor e Tremor.
Kierkegaard viveu só 42 anos, quase sempre na sua
cidade de Copenhague.Tal como Sócrates, era um pensador urbano, e apreciava
mais o convívio com as pessoas do que o trato com a natureza, apesar de ter
sensibilidade para ela e até ter cogitado propor que o Parlamento contasse com
um deputado da natureza.
Criado dentro de uma rígida formação religiosa,
Kierkegaard dirigiu-se, inicialmente, à teologia. Porém, sua busca por uma fé
pura logo se chocou com a Igreja dinamarquesa, uma instituição estatal na qual
os pastores eram funcionários quase burocráticos.
Toda a sua vida foi dominada pela luta entre duas
tendências radicalmente opostas: de um lado, sua necessidade espiritual de
ascese e de pureza, de outro, o apelo às necessidades da carne e aos prazeres
mundanos. Isso o levou à ruptura de seu noivado com Regina Olsen, em 1841,
acontecimento que influenciaria toda a sua obra posterior. A marca desse
impasse entre o corporal e o espiritual transparece em sua obra de forma
radical, já que Kierkegaard alternava obras de cunho religioso ( até mesmo sermões) com ensaios literários e
filosóficos.
Boa parte dessas obras foram publicadas com
pseudônimos ( Johannes Climacus, Victor Eremita, Anticlimacus...) aos quais
Kierkegaard, como brilhante escritor, conseguia conferir personalidades
próprias. Para ele, o grande tema da problematização é a relação entre o homem
e Deus. Essa relação é individual e pessoal, já que a fé seria algo interno.
Kierkegaard questiona o sistema dos hegelianos e
utiliza a maiêutica socrática de modo realmente original. Sua maneira de levar
a sério os fenômenos negativos, como tédio, angústia e desespero, sua constante
busca do sentido da vida e de qual papel sua existência individual deveria
desempenhar (sua vocação nesta existência), mais o seu esforço por impedir as
fugas da existência representadas pelo romantismo alienado e pelo idealismo sem
compromisso com a realidade moral fazem deste escritor especulativo o que se
poderia chamar um filósofo da
existência, herdeiro de Sócrates, Agostinho e Pascal.
Antecipou, de fato, em muitos pontos, o pensamento
de Heidegger, embora sua presença esteja mais explicitada em Jaspers.
Impossível não perceber sua presença em Sartre (até no uso da literatura e do teatro, ou
na panfletagem nas ruas nos últimos tempos), mas também foi marcante para
Adorno, com sua defesa do não idêntico,
e para o próprio Wittgenstein.
Na
literatura, é companheiro de Dostoievski, Kafka e Camus e, no século XX,
é muito aproveitado, pelo suíço Max Frisch, que explora muitos de seus temas.
Na teologia, sua marca em Karl Barth é bastante conhecida, mas vale a pena
descobri-la também no coração do pensamento de Paul Tillich ( orientador,
aliás, da tese de Adorno sobre Kierkegaard).
Tendo escrito sempre em sua língua natal, a fortuna
de sua obra dependeu das traduções, nem sempre fiéis. Na Alemanha, penetrou
através de pastores em conflito com suas igrejas; na França foi lido como o
grande esteta sedutor, de literatura de salão, até Tisseau traduzi-lo todo. No
Japão, sua obra chegou junto com a de Heidegger, desde os anos 1930, e teve um
papel de formação das consciências, inclusive apoiando mártires cristãos. Nos
Estados Unidos, onde há pouco Howard e Edna Hong completaram a tradução de suas
obras para o inglês, consegue aproximar magistralmente os temas da filosofia
com os da religião.
No Brasil, vem sendo cada vez mais lido, à medida
que surgem traduções mais fiéis aos seus textos originais. Entre nós, seu
método irônico e sua comunicação indireta despertaram grande interesse, de modo
que as formas de seu discurso (o “como se diz”) importam tanto quanto o
conteúdo das obras com pseudônimos, das assinadas por ele e também dos volumes
dos diários (“o que ele disse”). Para a ironia, a questão é saber “ o que o
autor queria dizer”.
II – Os Estádios da existência
Para Kierkegaard o homem nasce com corpo e alma e,
aos poucos, durante sua existência, através de suas escolhas, vai construindo o
Espírito. “A verdade é a subjetividade”, não se escapa desta que é, para o
indivíduo, sua própria medida e significação.
Às etapas que constituem o caminhar ao
transcendente, Kierkegaard denominou de “Stadium” e estes são o estético, o
ético e o religioso. São etapas autônomas e descontínuas, pois a passagem de um
estádio a outro se dá através de uma brusca ruptura ou de um salto.
O tema
existencial dos estádios encontra e transpõe para o concreto a distinção
clássica entre gênero ou ordens de conhecimento: os três gêneros de Spinoza, as
três ordens de Pascal ou ainda a opinião, o saber e a fé em Kant. Kierkegaard
distingue assim três estádios existenciais: o estádio estético em que o homem
se abandona à imediatidade, o estádio ético em que se submete a lei moral ( o
geral, como se diz), e o estádio religioso em que o homem, abraçando a
eternidade, se deixa dirigir pelo amor, para além do bem e do mal. A vida, para
poder chegar à plenitude, comanda a paixão de existir como amor e
autoafirmação. Este ato é originário, é o ato de querer tornar-se a si mesmo. A
opção original do eu é um amor a si mesmo, é de verdade o primeiro amor.
Todavia, o homem pode se amar mal. (Farago France. Compreender Kierkegaard)
III – Estádio Estético
No estádio estético, que é o mundo da matéria, o
homem que se encontra nele vive para o
“aqui e agora”. É neste estádio que nos deparamos com a mesquinhez e o
narcisismo, onde nada é estritamente impossível.
O que interessa ao homem deste estádio é o Don
Juanesco jogo da sedução, da manipulação onde os meios justificam-se pelos
fins. O sujeito apropria-se do entorno e faz de sua existência uma
representação exclusivamente individual, não considera a instância de deveres
éticos ou das obrigações sociais, esgota-se na exterioridade representada. O
esteta vive na esfera das possibilidades e a expressão desse sujeito é sua rica,
variada e vasta mobilidade de sentimentos.
No “O Diário de um Sedutor” encontramos o
personagem Johannes, um ardiloso jovem que goza, acima de tudo, da
possibilidade da conquista mais que do próprio objeto da conquista. Ele faz da
inocente Cordélia sua vítima e a vê como uma “presa” a ser meticulosamente
arrebatada e ardilosamente descartada. Por se tratar de um personagem
extremamente inteligente e consciente, possuidor de uma visão de mundo, se coloca acima de tudo e de todos, uma das
facetas de sua personalidade é a ironia.
Porém, a insaciável e perpétua busca por novidades
conduz ao desespero. Na vida do homem do estágio estético, submerge
inevitavelmente a melancolia – que é fruto de uma personalidade que permanece
na imediatidade, absolutamente desprovida de uma reflexão ética.
O estádio estético deixa a pessoa em um beco sem
saída, condena-a ao desespero, pois o esteta, que tudo sacrifica à busca do
prazer imediato, vive de fato na dor, ou melhor, o esteta perdeu “aquilo que o
homem possui de mais profundo e mais sagrado, o poder unificador da
personalidade.”
O “dandy”, e sabe-se que Kierkegaard experimentou esse jogo, é o homem dos extremos, que esconde o seu mal-estar vital sob uma aparência estudada, uma compostura vazia. Trata-se de um homem insensível, desorientado, que esconde o desespero numa fuga incessante, uma negação assassina. O esteta que tudo sacrifica à busca do prazer imediato, vive de fato na dor. Querendo viver no instante, no sentido puramente empírico do termo, apoderando-se das presas que cada ocasião lhe pode proporcionar, é preso pela fugacidade que nega a captura, condenado “ipso facto” a se lembrar de novo de si.
(...)
Deste modo, o
sentimento do insensato se acha ligado a um tempo morto, a um tempo incapaz de gerar futuro e o progresso
pessoal, daí o sentimento de dês-realização: “ Tu és como um moribundo, morres
todos os dias, não no sentido ordinário da palavra, mas a vida para ti perdeu a
realidade” (OCIV, p177)
(...)
A angústia é o estado
que fere o homem que pretende permanecer no estádio estético da existência. (Farago France. Compreender Kierkegaard).
IV- Estádio Ético
No estádio ético que é alcançado a partir de um
salto, o homem busca se auto afirmar como sujeito, caminha para a realização
dos deveres expressos por seus julgamentos de conduta ético-moral. Caracteriza-se pelo espírito de seriedade.
O homem do ético realiza a síntese do estético e do
ético, eliminando aquilo que na vida puramente estética era diversidade,
dispersão, acaso e inconstância, isto é, incompatível com a unidade
verdadeiramente coerente de um projeto de vida, Felicidade com piedade [Cum
pietate felicitas].
O personagem que retrata essa transformação é o do
juiz Guilherme. Segundo Reichmann “A personalidade quer tomar consciência de si
mesma em sua validez eterna. Se isto não suceder o movimento permanece contido
e, se a personalidade é reprimida, então surge a melancolia. Muito se pode
fazer para mergulhá-la no esquecimento. Pode-se trabalhar, distrair-se, mas a
melancolia permanece. Na melancolia existe algo de inexplicável. Quem tem
sofrimentos e preocupações conhece sua causa. Quando se pergunta a um melancólico
qual a razão de sua melancolia, o que o oprime, responderá que não sabe, que
não pode explicá-lo. Nisto consiste o infinito da melancolia. Desde em que se a
conhece, a melancolia deixa de existir, enquanto que o sofrimento do aflito não
cessa pelo fato de conhecer a causa da aflição. A melancolia é um pecado de não
querer profunda e sinceramente”.
Afirma Kierkegaard que será por meio de suas escolhas que este homem vivenciará sua história, sendo esta parte indissociável das opções que fizer. No esteta, o mundo é terreno das sensações agradáveis; no estágio ético, o homem está consagrado às leis morais. Segundo esta teoria, desde sua origem, o homem encontra-se na “não verdade” e, não podendo ser sua própria referência, necessita de um mediador externo ao “eu”.
A ética, por ser a lei do geral, favorece a tendência que habita em cada um a se perder na turba, ameaça perverter tudo, inclusive a sua moral. Ela não seria capaz, por exemplo, de proporcionar uma solução para os casos que comportam algo de excepcional. Há, portanto, casos em que a ética é totalmente impotente, e casos até em que é absolutamente impossível achar uma regra de comportamento. Eis por que Kierkegaard proclama a necessidade algumas vezes de uma “ suspensão teleológica da ética” para aquele que queira ir até o extremo da afirmação de si mesmo em Deus. A vida então se desenrola além do bem e do mal. A generalidade deve ceder o lugar à singularidade única e responsável. (Farago France. Compreender Kierkegaard)
V – Estádio Religioso
A única esperança para o desespero humano está na
compreensão da própria existência, que é finita. E tal compreensão só se
alcança pela fé. Todas estas alternativas possíveis representam um risco e,
como Kierkegaard quer que o homem se veja impulsionado pelo infinito, sua
decisão tem de optar entre o Todo ou o Nada.
No estádio religioso supõe-se a intervenção de um
elemento exterior, descortina-se uma nova e paradoxal realidade, trata-se da
fé, da crença numa instância superior, num “Deus”. Convém ressaltar que, mesmo
religioso, Kierkegaard foi um crítico mordaz das instituições religiosas,
apontando-as como monopólio organizado, que tratam de administrar o que
pertence ao domínio privado da alma individual: a fé.
Esse estádio é pessoal, subjetivo. Pode ser ou não vivenciado com fervor por um rude e anônimo camponês, como também pelo mais elevado intelectual.
Este salto,
que é dado mediante a relação direta entre o homem e Deus, está retratado no
mito judaico-cristão de Abraão, a quem seu Deus pede o sacrifício do filho
Isaac. Trata-se de uma questão puramente de fé.
“ Em Temor
e Tremor, Kierkegaard utilizando-se do
pseudônimo de Johannes de Silentio, serviu-se do episódio do sacrifício de
Isaac para ilustrar o estádio religioso. Johannes mostra que pode ocorrer o
caso de se escancarar um profundo abismo entre a finitude e a infinitude, e
acontecer então que os movimentos de subida rumo ao infinito e de regresso ao
finito se contradigam um ao outro, e esse é o caso de Abraão, que obedece à
ordem de Deus para sacrificar-lhe Isaac, o filho de sua velhice e também o
filho da promessa. Abraão transcende a unidade de sua vida em uma resignação
infinita. A unidade harmoniosa é o da estética e da ética, que caracteriza a
vida de Abraão na felicidade de uma paternidade tardia. É necessário a força da
fé que mantém contra toda probabilidade que Deus dará a Abraão a volta do
filho, a finitude é, o centro em cujo redor tudo se ordena, e a fé não faz o
movimento para a infinitude, mas o da volta para a finitude. É certo que a
ordem de Deus é absolutamente incompreensível e contrária a toda a ética aos
olhos humanos, mas Abraão creu, creu contra toda evidência que seu filho lhe
seria devolvido, mesmo nesta vida, ele passou pela prova. É o relato de uma prova,
seguido de uma história de bênção, é também o relato de uma ascensão. O
sacrifício de Abraão é uma experiência-limite extrema de relação com Deus, onde
Abraão surge como figura exemplar da fé, expressa através de duas noções
aparentemente contraditórias: o temor e a confiança que coexistem, que se
articular, é certo que durante todo o tempo de caminhada teve fé, acreditou que
Deus não lhe queria exigir Isaac, enquanto, estava disposto a sacrificá-lo,
caso necessário. Subiu a montanha e, no instante em que a faca brilhava, creu
que Deus não exigiria Isaac, contra toda a expectativa e todo o bom-senso,
Abraão creu, acreditou que seu filho lhe seria devolvido e recebeu Isaac com
maior alegria, a fé é a certeza de uma esperança, a fé exprime a certeza de que
receberá um dom, o próprio dom daquilo que ele oferece e que já recebera, e
Abraão recebera a fé do próprio Deus, pois Amar a Deus com a fé é refletir-se
em Deus, e Abraão interpelado por Deus, responde incondicionalmente ao chamado
respondendo: Eis-me aqui. Abraão sabe que do encontro com Deus nasce a vida. O
significado desse drama vem do fato de que Deus, pela intervenção de seu
mensageiro, corrige a interpretação primeira que Abraão fizera de sua ordem.
Ele surge então como um Deus que pede a vida, e não a morte, mas uma vida capaz
de superação, de mortificação da tentação de tomar posse daquilo que Deus dá
sem o restituir ao que o deu.”( Farago ,France. Compreender Kierkegaard)
A fé exige o sacrifício de Isaac, ou seja, um salto no escuro, a disposição sincera de abdicar daquilo que consideramos mais precioso. Paradoxalmente “é preciso puxar a faca para que se possa ter Isaac de volta”. Isso é fé.
Abraão transpõe, pelo seu ato totalmente
singular, o estádio ético, que é da ordem do geral, realizando aquilo que
Kierkegaard denomina “a suspensão teleológica da ética”, ou melhor, nos
momentos decisivos, as situações-limite onde a existência toca o essencial,
ficam suspensas todas as mediações. A certeza de Kierkegaard é que, na ordem do
espírito, a Deus tudo é possível.
Somente no estádio religioso realiza a presença da eternidade no tempo, a plenitude da encarnação, nesse estádio perde-se as miragens do gozo, a prisão da lei abre suas grades em proveito da gratuidade do amor e a pessoa realiza em plenitude a aliança entre o tempo e a eternidade, assim o estádio religioso corresponde à vocação cristã propriamente dita.
Há uma
alegria indescritível, inexplicável, que nos ilumina tão de súbito, de maneira
tão despida de motivo como a explosão do Apóstolo: “Alegrai-vos, repito,
alegrai-vos”. Não esta ou aquela alegria particular, mas o grito que transborda
da alma, com a língua e a boca e do fundo do coração (...) que alça vôo para as
alturas eternas(...). Sinto-me tão alegre, tão rico, tão indescritivelmente
rico. (Farago France. Compreender
Kierkegaard)
Referências:
1) FARAGO,
France. Compreender Kierkegaard.
Rio de Janeiro: Vozes, 2006;
2) SHOPKE,
Regina. Dicionário Filosófico. Martins Fontes;
3) Pecoraro Rossano
(org.), Os Filósofos Clássicos da
Filosofia. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 2009, v. II.
4) SAMPAIO, S.S. Ironia, Repetição, Silêncio: O
Estilo do Pensador Subjetivo. Revista Intercâmbio, volume XV. São Paulo:
Lael/PUC-SP, ISSN 1806-275X, 2006.
Nenhum comentário:
Postar um comentário