ANÁLISE DO LIVRO I DA POLÍTICA DE ARISTÓTELES
( por Ândrea Cristina
Pimentel Palazzolo)
2.1 Koinonia (comunidade)
e polis (cidade)
Neste livro, segundo Francis Wolff[1],
Aristóteles vai tratar da fundamentação da polis (cidade) e, para isso ele usará o caminho analítico, ou seja, analisando a polis, como ele mesmo
propõe, até os elementos mais simples, 1252 a Livro I Cap.I §20:
É que, tal como nas
outras ciências temos de analisar um composto até aos seus elementos mais
simples (que são as mais pequenas partes do todo) assim também examinaremos as
partes componentes de uma cidade, vendo melhor como as diversas formas de
autoridade diferem entre si, compreendendo de modo positivo cada uma das
funções mencionadas.[2]
Para Francis Wolff, os fundamentos de toda filosofia de
Aristóteles são os capítulos 1 e 2 do Livro I da
Política, e tais capítulos estão, de certa forma, já
contidos no primeiro parágrafo
do capítulo 1 com as seguintes premissas: “A cidade é um certo tipo de comunidade”; “Toda comunidade é
constituída em vista de um
certo bem”; “De todas as comunidades, a cidade é
a mais soberana e aquela que inclui
todas as outras”. E a conclusão, que é
a tese dominante da Política,
“a cidade tem por
finalidade o soberano bem”[3]. Eis o referido parágrafo, de onde se extrai
tais premissas e a conclusão:
Observamos que toda a cidade é uma certa forma de comunidade[4] e que toda a
comunidade é constituída em vista de
algum bem. É que, em todas as
suas ações, todos os
homens visam o que pensam ser o bem. É, então, manifesto que, na medida em que
todas as comunidades visam algum bem, a comunidade mais elevada de todas e que
engloba todas as outras visará
o maior de todos os bens. Esta comunidade é chamada “cidade”, aquela que toma a forma de comunidade
de cidadãos” (I, 1, 1252 a
1-7)[5].
Com essa tese, de que a
cidade tem por finalidade o soberano bem, Aristóteles se diferencia dos demais, pois ao invés de justificar com razões gerais comuns, por exemplo, os
homens vivem em cidades porque necessitam uns dos outros ou a cidade não passa de uma grande família, atribui a cada tipo de comunidade
uma razão de ser própria e a cidade a finalidade mais
elevada, os homens vivem em cidades para atingir o maior dos bens[6].
2.1.1 A koinonia (comunidade) é o gênero e a polis (cidade) uma de suas
formas.
Mas o que é
que Aristóteles chama de Comunidade? Ele não define com precisão, mas numa interpretação
sistemática e comparando
diferentes textos da Política, principalmente da Ética
a Nicômaco, pode-se concluir que uma comunidade é um agrupamento de homens unidos por uma
finalidade comum, portanto, ligados por uma relação afetiva chamada philia
(amizade) segundo relações de justiça. Aristóteles dá diversos exemplos, aqui e ali, de comunidade, além daquelas que estão
na sequência na Política (as comunidades familiares ou políticas), tais como os membros de uma confraria religiosa, de
uma associação de comensais, parceiros de um mercado qualquer,
companheiros de travessia, ou companheiros de armas, etc[7].
Constata-se que é
sempre em torno de uma finalidade comum
que se forma uma comunidade (“Ét. Nic., VIII, 11, 1160 a 8 e ss.) , seja pela ambição do ganho para os navegadores, pela
vitória para os
companheiros de armas, o convívio das relações sociais entre membros de um clube de comensais, ou …
a felicidade para os membros de
uma mesma comunidade política.
Decorre daí
que, Aristóteles chama de “philia”
( amizade) essa ligação com vistas a uma finalidade
comum. Cita no Livro IV, capítulo 11, 1295 b 23:“
A comunidade é
afetiva (philikon)”.[8]
Não
é sem motivo que
Aristóteles estuda com
precisão, na “Ética” ( VIII, 11 e IX, 12), as relações entre os tipos de comunidade e os
tipos de amizade, acrescentando que além da relação afetiva deve haver um sentimento de
co-pertencimento a um “ nós “, que se opõe a todos os outros tipos, provisoriamente ou definitivamente, de
inimizade.
Neste momento surge a questão
da justiça, dado o fato de
haver várias pessoas e algo comum entre elas. Com efeito, afirma Aristóteles na “Ética a Nicômaco, livro VII, capítulo 9, 1241 b 15: “Toda colocação em comum funda-se na justiça”[9].
A justiça é a virtude da comunidade, aquela que
regula as relações entre seus membros, graças a qual uma comunidade existe e pode
continuar existindo.[10]
Quanto
à pólis, ao longo do livro
encontramos referindo-se a cidade definições como a de
uma comunidade dos
lares e dos vilarejos, ou como um tipo de regime entre os
cidadãos, ou voltada
para a felicidade
do conjunto. Constata-se, então que há
três caracteres
diferenciadores da pólis com relação as outras comunidades. Portanto, há pelo menos
três maneiras de definir a cidade, pelas suas causas:
a)
por sua causa material, ou seja, uma comunidade de lares e de vilarejos,
b)
formal: uma comunidade de habitantes vivendo sob a mesma constituição
c)
final: uma comunidade em vista do bem soberano[11].
Mas
poderia perguntar-se e a “causa motriz”? Ocorre que Aristóteles dá lugar a um
autor anônimo da cidade, fundador ou legislador, como sua “causa motriz”, a que
permite à tendência natural de efetivar-se.
Aristóteles faz alusão em 1253 a 29-31 da Política[12]: “É decerto natural a tendência que
existe em todos os homens para formar uma comunidade deste gênero, mas quem
primeiro a estabeleceu foi causa de grandes benefícios [...][13]”
Com
relação a essa afirmação de que toda comunidade visa um certo bem, é uma
proposição analítica, isto é, uma proposição que é deduzida da própria ideia de
comunidade, uma comunidade sendo caracterizada pela finalidade comum visada por
seus membros agrupados. Sem direcionamento comum, não há comunidade. Quanto à
outra afirmação do estagirita, de que a comunidade política é aquela que é
soberana entre todas e inclui todas as outras, é de se observar que a
comunidade política é definida em relação a todas as outras, ao mesmo tempo
qualitativamente mais alta e extensivamente mais englobante.Essa dupla
superioridade da comunidade política corresponde à superioridade da própria
vida política no seio das atividades humanas e, paralelamente, põe a disciplina
encarregada de realizar esse bem supremo no mais elevado grau das disciplinas práticas:[14]
Uma vez que a política serve-se das outras
ciências práticas, e que além disso ela legifera sobre tudo aquilo que é
preciso fazer, e aquilo de que é preciso se abster, a finalidade desta ciência
englobará as finalidades das outras ciências” de onde resulta que a finalidade
da política será o bem propriamente humano (Ét. Nic., I, 1, 1094 b 4-6)[15].
Dito
de outra forma, segundo Francis Wolff, há uma relação de analogia entre a série
das comunidades hierarquicamente ordenadas e a série hierarquizada dos
“bens"que elas visam: se a comunidade 1 visa o bem 1; se a comunidade 2 é
superior (qualitativamente) à comunidade 1; e se a comunidade 2 visa o bem 2,
enquanto o bem 2 é superior (qualitativamente) ao bem 1; de tal maneira que a
comunidade última (superior a todas as outras) visa o bem último (superior a
todos os outros). Este bem identifica-se à felicidade, e fica
estabelecido no Capítulo 2 da Política.
Mas a cidade não é apenas posta como “soberana entre todas”; é também
aquela que “inclui todas as outras”. Esta relação de extensão significa que a
cidade é a maior das comunidades[16].
2.1.2
Origem da polis: casal, oikos (família) e kome (aldeia)
Neste
capítulo Aristóteles propõe estudar as partes constitutivas da cidade em sua
gênese. Assim ele declara:
Neste, como noutros domínios, obteremos
a melhor apreciação das coisas se olharmos para o seu processo natural,[17]
desde o princípio. Em primeiro lugar, aqueles que não podem existir sem o outro
devem formar um par. É o caso da fêmea e do macho para procriar (e isto nada
tem a ver com uma escolha, já que, como nos animais e nas plantas, a
necessidade de progenitura é, em si, um fato natural); é ainda o caso daquele
que, por natureza, manda e daquele que obedece, para segurança de ambos. É que
quem pode usar o seu intelecto para prever, é, por natureza, governante e
senhor, enquanto quem tem força física para trabalhar, é o governado e escravo
por natureza. Assim, senhor e escravo convergem nos interesses (I, 2, 1252 a
24-34)[18].
Existem,
então, dois institutos primordiais que levam os seres humanos a se associarem
mutuamente: a reprodução, que une um homem e uma mulher; e a autopreservação,
que une o senhor e o escravo, ou seja, o econômico, no sentido original da
palavra, e o corpo vigoroso em termos de uma ajuda mútua. Desse modo, temos um
primeiro estádio que é a família, que representa a associação estabelecida pela
natureza para a satisfação das necessidades cotidianas.
A
seguir, em 1252 b 15-27[19],
Aristóteles trata de um segundo estádio, a aldeia, que é a união de várias
famílias para o fornecimento de algo além das necessidades cotidianas. É de
observar-se que Aristóteles não especifica estas novas necessidades, mas
podemos conjecturar que no seu pensamento a aldeia torna possível uma divisão
maior do trabalho, e, desde então, a
satisfação de necessidades mais variadas, bem como uma proteção mais completa
para o homem. Acrescenta ele que a aldeia é formada naturalmente pela união de
famílias de origem comum.
Em
seguida, em 1252 b 28 – 1253 a 2[20], há
um terceiro estádio que é a pólis
constituida pela união de muitas aldeias, numa comunidade completa, que
atinge o máximo de auto-suficiência; formada para salvaguardar a vida, existe
para permitir também a eu zen (vida boa)[21] .
Segundo Sir Davida Ross[22],
reside, aqui, a diferença específica relativamente à polis. Esta nasceu pela
mesma razão da aldeia, a salvaguarda da vida, porém, nela realiza-se um outro
desejo: o desejo de uma boa vida.
A
eu zen (vida boa) inclui, para Aristóteles, duas coisas: a atividade
moral e intelectual. A cidade oferece um campo mais adequado a uma variedade
maior de relações nas quais as virtudes devem ser exercidas. Este fato fornece
maior alcance à atividade intelectual, sendo possível uma divisão mais completa
do trabalho intelectual, e cada pessoa torna-se mais estimulada, para o contato
com outra pessoa tendo em vista o geral.
Acrescenta
Aristóteles que: Se as primeiras formas de sociedade são naturais, assim também
é a cidade, pois ela é o fim delas e a natureza de uma coisa é o seu fim. O que
cada coisa é quando totalmente desenvolvida, designamos de sua natureza [...]
Consequentemente,
é evidente que a cidade é uma criação da natureza, e o homem, por natureza é um
animal político… Aquele que é incapaz de viver em sociedade, ou que não tem
esta necessidade pois é auto-suficiente, deve ser uma besta ou um deus” (I, 2,
1252 b 30-34 1253 a 1-6)[23].
Para
Solange Vergnières, o Homem não é o único ser sociável, porém é o único que
pode conseguir a forma mais nobre da vida, ou seja, a vida política. Assim ela
afirma:
A cidade é, por seu gênero, comunidade
(koinonia) natural; nela se exprime, como em toda comunidade natural, o
ïmpulso (horme) que empurra os homens uns em direção aos outros e que
caracteriza sua sociabilidade natural. O homem não é a única espécie sociável.
Na “História dos animais”, Aristóteles opõe dois tipos de espécies, as espécies
gregárias (agelaia) que vivem em rebanhos e as espécies solitárias (monadika);
o homem faz parte das duas espécies: a maioria dos homens são domesticados e
vivem em grupos: alguns, contudo, permanecem selvagens, vivem como solitários.
As duas espécies comportam nova divisão: algumas são suscetíveis de vida
sociável (politika), enquanto as outras vivem de maneira esparsa (sporadika);
as abelhas, as formigas, os homens são do primeiro tipo. O que distingue a
sociabilidade do simples germanismo é a participação numa obra comum: pode-se
então falar de verdadeira comunidade. A espécie humana, enfim, possui uma
prerrogativa suplementar: só ela é capaz de aceder à forma mais perfeita e mais
elevada da vida social, a vida política (politizou, no seu sentido eminente)[24].
Aristóteles
presta um bom serviço ao pensamento político ao insistir no fato de a cidade
não existir meramente por convenção, mas possuir as suas raízes na natureza
humana; de o natural ser encontrado, no seu verdadeiro sentido, não nas origens
da vida humana em conjunto, mas no fim intrínseco para o qual ela tende; de a
vida civilizada não ser uma decadência relativamente à vida de um selvagem
hipoteticamente nobre; de a cidade não ser uma restrição artificial de
liberdade, mas um meio de assegurá-la.[25]
Quanto
ao homem ser um animal naturalmente político, no sentido acima exposto, comenta
Marilena Chauí: “O homem é um animal político (zóon poliktikon) por
natureza, ou seja, é da natureza humana buscar a vida em comunidade e,
portanto, a política não é por convenção (nómos), mas por natureza (physei).”[26]
Assim,
Aristóteles fala claramente na Política afirmando que, o homem mais do que a
abelha ou um animal gregário, é por natureza um ser vivo político. Destacando o
dom da palavra que só o homem possui, e desta forma pode expressar o justo e o
injusto sendo a comunidade destes sentimentos que produz a família e a polis[27].
David
Ross comenta que, com essa tese, considera que Aristóteles ataca implicitamente
dois pontos de vista que tinham grande eco na Grécia:
a) o ponto de vista de alguns sofistas,
segundo o qual a lei e a cidade representam meros produtos de convenção,
entraves à liberdade do indivíduo, que lhes são impostos pelos seus senhores ou
aceites por si apenas como uma salvaguarda contra a injustiça;
b) o ponto de vista dos Cínicos,
segundo o qual o homem com phronesis basta-se a si próprio e deve ser
cidadão, não de nenhum país, mas apenas do mundo, um ponto de vista que foi
encorajado pela desilusão existente na Grécia após a derrota na batalha da
Queronéia.[28]
Ao
descrever a cidade como natural, o filósofo não pretende significar ser ela
independente da volição humana. É pela
natureza e volição que ela foi formado e é mantida e moldada. Mas afirma ser natural no sentido em que se
enraíza na natureza das coisas e não nos caprichos dos homens.
No
seu zelo pela cidade não marginaliza, como Platão, a família, conhecida
historicamente, pois a cidade é uma comunidade de comunidades. A família possui
a sua própria função no esquema da vida política.
2.2
A economia e suas partes
Depois
de ter demonstrado que a cidade deriva da família. Aristóteles passa a
considerar as diferentes partes da economia doméstica e as duas únicas que
serão longamente discutidas são a relação entre senhor e escravo e a aquisição
de riqueza. Ele vai tratar, primeiramente, da administração da casa, uma vez
que toda cidade é composta por várias famílias. Propõe, então, analisar as três relações básicas do oikós:
senhor e escravo, marido e mulher e pai e filhos, e como ela é, como se estrutura. Trata , ainda,
do papel da chamada “arte de adquirir bens (1253b 1-14) [29].
Para
Aristóteles o escravo não possui qualquer faculdade deliberativa; a mulher tem,
mas é desprovida de autoridade; a criança também tem, só que, nela, esta é
ainda imatura. Em consequência, o poder exercido pelo senhor sobre o escravo deverá
ser despótico; o do marido sobre a mulher, constitucional; e o do pai sobre os
filhos, monárquico. Assim, a família contém, por antecipação, três tipos
fundamentais de governo. [30]
Nos
Capítulos seguintes de 8 a 11, constitui a principal contribuição de
Aristóteles para a economia e relaciona-se com o problema de saber em que
medida a aquisição de riqueza está ligada à economia doméstica. Aristóteles
responde a esta questão distinguindo dois modos de aquisição de riqueza (1256a
1-1259a 38).[31]
Primeiro,
tem-se o modo natural que consiste em juntar aqueles produtos da natureza
necessários aos propósitos da vida. Aqui, distingue-se três espécies
principais: a) o pastoreio, b) a caça ( subdividida em pirataria e assalto,
pesca e caça propriamente dita) e c) a lavoura.
A este modo é fixado um limite natural pelas necessidades do homem a
respeito da comida e do vestuário. Este modo constitui uma parte da economia
doméstica e da política, ou mais propriamente, uma pré-condição delas. A tarefa
do senhor da casa e do homem de estado consiste na utilização daquilo que foi
assim acumulado. A troca é intermediária entre este último modo e o segundo
modo de aquisição de riqueza. Aristóteles coloca aqui a distinção, mais tarde
famosa, entre o valor de uso das coisas e o seu valor de troca. Diz ele que
podemos, ou usar um sapato, ou trocá-lo. Em ambos os casos, usamo-lo em “si
mesmo”, mas é o primeiro caso que constitui o seu “uso próprio”, quer dizer, o
uso que pode ser feito dele e de nada mais. Até um certo ponto, a troca é
natural, a saber, na medida em que consiste numa aquisição daquilo que é
efetivamente necessário para os propósitos da vida. Segundo tem-se o modo não
natural de aquisição de riqueza manifesta-se quando os bens começam a ser
trocados, não por outros bens, mas por dinheiro. As características intrínsecas
ao dinheiro apontadas por Aristóteles são: a) o ser mais portátil que os bens;
b) o possuir uma utilidade própria para além da comodidade na troca. Isto é
válido para a moeda metálica, não sendo de admirar que tenha previsto a
utilização de papel-moeda. O que é mais surpreendente é que considera todos os
modos de aquisição de riqueza por outros tipos de comércios diferentes da troca
não natural. Sem dúvida, a sua objeção possui uma base moral. Condena a
perseguição ilimitada de riqueza para além da necessária aos propósitos da
vida.[32]
Sir.
David Ross aqui faz uma crítica a Aristóteles, diz ele que o estagirita:
[...] não observa que a perseguição da
riqueza por si própria pode produzir-se, mesmo no primeiro modo de aquisição,
quando os bens são acumulados e a troca ainda não intervém, bem como a troca
não exclui menos o proveito possível de obter no comércio de bens por dinheiro.
Não vê, igualmente, que a classe comercial, por si condenada, desempenha um
frutuoso serviço público, e apenas obtém os seus benefícios por essa
razão. O seu ponto de vista consiste,
demasiadamente, numa reflexão acerca dos preconceitos do grego comum contra o
comércio como tratando-se de uma ocupação não liberal.[33]
Mais
adiante, Aristóteles considera que, de todos os modos de aquisição de riqueza
não naturais, a pior espécie consiste na usura, pois o dinheiro, ele mesmo uma
invenção não natural, é usado aqui, não para seu propósito original, a troca,
mas para um fim ainda menos natural. Vejamos o parágrafo onde Aristóteles trata
o tema:
A arte de adquirir bens, conforme
dissemos, tem duas formas, uma mercantil e a outra doméstica. Esta última é
necessária e recomendável, enquanto a primeira é censurável devido a não estar
de acordo com a natureza, por ser praticada por uns a expensas de outros. Com
muito mais razão se detesta a prática de cobrar juros, porque nela o ganho
resulta do dinheiro propriamente dito e não da finalidade para a qual o
dinheiro foi instituído. Ora o dinheiro foi instituído para a troca, enquanto o
juro multiplica a quantidade do próprio dinheiro. É essa a origem do termo
juro: os seres assemelham-se aos seus progenitores e o juro é dinheiro nascido
do dinheiro. Assim, de entre todos os modos de adquirir bens, este é o mais
contrário à natureza (I, 10, 1258 a 40-41, 1258 b 1-8).[34]
Sir
David Ross faz o seguinte comentário:
Também aqui, cega-o um preconceito
moral justificável contra a usura perversa dos serviços econômicos levada a
cabo pelos prestamistas de capital. Sem dúvida, está a pensar, não no
empréstimo que torna a indústria possível, mas naquele lucro resultante dum
aproveitamento do homem pobre que é levado, pelas necessidades de momento, a
pedir um empréstimo em termos que o transformam, de fato, num escravo do
prestamista.[35]
Aristóteles
conclui esse livro I nos capítulos 12 e 13, tratando das várias espécies de
regras, próprias à família. (1259a 40- 1260b 20).[36] Para
Aristóteles, família é algo mais do que uma organização de finalidade
econômica; ela permite a orientação, pelo chefe da família, das almas
imperfeitas, que são as mulheres e as crianças; almas imperfeitas, mas não
almas de escravos. Não se trata, portanto, de poder absoluto; o marido dirige a
mulher, como um magistrado a seus administrados; e o pai a seus filhos, como um
rei a seus súditos (I,5) (E. Bréhier)[37].
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[2] ARISTÓTELES. Política. 1.ed. em português feita a partir do grego.
Lisboa: Vega, Gabinete de Edições, 1998, p.49.
[4] Segundo Antônio Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes
em: ARISTÓTELES. Política. 1.ed. em português feita a partir do grego.
Lisboa: Vega, Gabinete de Edições, 1998, p.594
: “A polis é o espaço onde decorre a mais excelente experiência humana da vida
em comunidade. A partilha símbólica e existencial da mesma língua, costumes,
cultos e estatutos cívicos, sob o mesmo regime (politeia) e em vista de um
interesse comum (sympheron), formam a comunidade política (koinonia politike).
A comunidade política decorre da conjunção de dois fatores constitutivos: um
funcional e um orgânico. O primeiro resulta dos laços jurídicos (dikaion)
entre os indivíduos abrangidos pela mesma ordem constitucional; o segundo
deriva dos laços de amizade (philia) fundada em critérios de natureza
étnica e genética. A ideia de ethnos, que poderíamos traduzir por
“povo”, no sentido de “congregação de indivíduos de condição comum”, liga-se
intimamente à ideia de genos, que poderíamos traduzir perifrasticamente
por “reunião de indivíduos vinculados por nascimento a um antepassado comum”
(mais anacronicamente por “raça”). Um genos corporiza-se em oikos
(família ou casa) quando a uma associação de indivíduos vinculados por laços
maritais e paternais se juntam indivíduos ligados por vínculos servis. Um
conjunto de casas ou famílias por seu turno forma uma kome (aldeia), um
conjunto de aldeias forma uma phratria (aldeamento), um conjunto de
aldeamento constitui uma phile, isto é, uma tribo. Quando várias tribos se associam num quadro estável
e coerente de crenças e costumes em vista de interesses comuns de
sobrevivência, temos lançadas as bases da polis. Família (oikos)
aldeia (kome) e a cidade (polis), são por assim dizer os três
níveis concêntricos que travejam a vida humana em comunidade (koinonia).
Acima da cidade, as experiências mais visíveis de sinoicismo (em termos
literais, synoikia, isto é, “partilha de uma casa comum”) apenas
resultaram ao nível geo-estratégico das alianças militares, como a que culminou
em 337 a.C. com a instituição da Liga Helênica com sede em Corinto, sob
inspiração de Filipe II da Macedônia, após a vitória de Queroneia (338). Os
poderes que então foram delegados ( em assembleia e por decisão multilateral)
nessa Liga pelas várias cidades confederadas, haviam de se concentrar um pouco
mais tarde nas mãos de Alexandrea Magno, por decisão unânime de um congresso
novamente convocado em Corinto.
[5] ARISTÓTELES. Política. 1.ed. em português feita a partir do grego.
Lisboa: Vega, Gabinete de Edições, 1998, p.49.
[10] WOLF, Ursula. A ética a Nicômaco de Aristóteles.
São Paulo: Loyola, 2010, p.93.
[11] WOLFF, Francis. Aristóteles
e a Política. São Paulo: Discurso Editorial, 1999, p.39.
[12] WOLFF, Francis. Aristóteles
e a Política. São Paulo: Discurso Editorial, 1999, p.39.
[13] ARISTÓTELES. Política. 1.ed. em português feita a partir do grego. Lisboa: Vega, Gabinete de Edições, 1998, p.55.
[14] WOLFF, Francis. Aristóteles
e a Política. São Paulo: Discurso Editorial, 1999, p.40.
[15] ARISTÓTELES. Ética
a Nicômaco. Os Pensadores.
v.IV, São Paulo: Victor Civita, 1973, p.249.
[17] ARISTÓTELES. Política. 1.ed. em português feita a partir do grego. Lisboa: Vega, Gabinete de Edições, 1998. Segundo Antônio Campelo Amaral e Carlos de
Carvalho Gomes: A perspectiva aristotélica, segundo a qual a cidade é uma
natureza (physis) visaria certamente Antístenes, um dos autores que
primeiro se insurgiu contra os perigos e perversões da vida em comunidade
política, propondo (tal como mais tarde Rosseau no Emílio) um regresso à
pureza das formas elementares e simples da vida solitária e natural. Segundo
Aristoteles, a polis não resulta de uma soma arbitrária de indivíduos,
mas funda-se na irredutívelel dimensão relacional, solidaria e comunicacional
do ser humano: por isso o homem é um ser vivo político (zoon politikon). (p.594).
[18] ARISTÓTELES. Política. 1.ed. em português feita a partir do grego. Lisboa: Vega, Gabinete de Edições, 1998, p.51.
[19] ARISTÓTELES. Política. 1.ed. em português feita a partir do grego. Lisboa: Vega, Gabinete de Edições, 1998, p.53.
[20] ARISTÓTELES. Política. 1.ed. em português feita a partir do grego. Lisboa: Vega, Gabinete de Edições, 1998, p.53.
[21] ARISTÓTELES. Política. 1.ed. em português feita a partir do grego. Lisboa: Vega, Gabinete de Edições, 1998, p.595. Segundo Antônio Campelo Amaral e Carlos
de Carvalho Gomes, em Notas do Livro I: A expressão vida boa (eu zen)
possui alcance praxeológico. Toda a ação humana se encontra orientada em vista
de fins (skopoí) e finalidades (teleis): é em vista do viver bem que a ação política orienta não
apenas a aspiração individual para a felicidade (eudaimonia), como
também a aspiração comunitária para a auto-suficiência (autarkheia).
[23] ARISTÓTELES. Política. 1.ed. em português feita a partir do grego. Lisboa: Vega, Gabinete de Edições, 1998, p.53-55.
[26] CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia. v.I. 2.ed.São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.463.
[27] ARISTÓTELES. Política. 1.ed. em português feita a partir do grego. Lisboa: Vega, Gabinete de Edições, 1998, p.55.
[29] ARISTÓTELES. Política. 1.ed. em português feita a partir do grego. Lisboa: Vega, Gabinete de Edições, 1998, p.57.
[31] ARISTÓTELES. Política. 1.ed. em português feita a partir do grego. Lisboa: Vega, Gabinete de Edições, 1998, p.71-91.
[34] ARISTÓTELES. Política. 1.ed. em português feita a partir do grego. Lisboa: Vega, Gabinete de Edições, 1998, p.85.
[36] ARISTÓTELES. Política.
1.ed. em português feita a partir do grego. Lisboa: Vega, Gabinete de Edições, 1998, p.91-99.
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