O MÉTODO
DA METAFÍSICA - Parte II
(Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)
RESUMO: Este artigo é uma continuação do artigo anterior,
ou seja, trata-se de um resumo do Método da
Metafísica de
Aristóteles, neste são abordados: a demonstração
elenktica e a teologia ‘dialética’. Encontrado no
livro de Enrico Berti , " As Razões de Aristóteles”.
A demonstração elenktica
Entre as
propriedades por si do ser enquanto ser , mencionadas no livro IV, não estavam
apenas as categorias e os opostos, mas também os
dois “axiomas"comuns a todas as ciências, o princípio de não-contradição e o
do terceiro excluído.
Visto que valem, justamente, para todos os seres, a investigação sobre eles não
cabe a nenhuma ciência particular, nem sequer à física, mas apenas
à “filosofia primeira”, à metafísica, e consiste em estabelecer “se são verdadeiros
ou não”(IV 3, 1005 a
30).
A propósito dos
princípios em
questão, o método da filosofia não será mais, como logo
veremos, a análise semântica mas a
discussão dialética, pela qual se verificarão não apenas as
condições da verdade, mas também as condições do valor das
palavras, ou seja, da própria análise semântica.
Aristóteles
principia com a investigação sobre o princípio de não-contradição e,
preliminarmente a ela, faz uma consideração de caráter metodológico,
que logo esclarece o procedimento que ele se propõe a adotar. O princípio em questão,
como se sabe, não pode ser demonstrado no sentido próprio do
termo, porque é a condição de todas as
demonstrações, segundo o que foi explicado nos Segundos analíticos.
Estamos diante
de um procedimento singular, que é denominado “demonstração”e, no entanto, é distinguido
do “demonstrar"puro e simples, isto é, da demonstração
de tipo matemático,
que, como sabemos, pressupõe os princípios. Pelo contrário, o “demonstrar elenkticamente” deixa, por assim
dizer, que esse erro lógico seja
cometido por quem pretende contradizer o princípio: quando essa pessoa comete o erro,
basta ressaltar isso, e com isso se o terá refutado. Contudo, a refutação de quem nega
equivalerá à demonstração do
princípio,
porque mostrará que
é impossível negá-lo, que é impossível que as
coisas sejam diferentemente de como ele diz, o que dá lugar àquela
necessidade caracterizada das conclusões de toda
demonstração.
Vejamos quais as
condições para que isto ocorra. Antes de tudo, que haja quem contradiga o princípio; em seguida
que quem contradiga fale, isto é, que se instaure uma situação de
tipo dialético; enfim, que diga alguma coisa.
É supérfluo
salientar ainda uma vez o caráter dialético da
situação: fala-se, com efeito, em “pedir"e “conceder"alguma
coisa, que são os papéis respectivamente daquele que pergunta
para refutar uma tese, e daquele que responde para defendê-la.
É necessário pedir a quem
contradiz somente que “signifique alguma coisa”, que diga uma única palavra
contanto que dotada de significado.
Se quem
contradiz concede isto, ou seja, diz uma única palavra e admite que ela tenha um significado. “haverá alguma coisa de
definido”, ele
significará aquela
coisa e não outra, admitindo com isso que aquela coisa e não outra, quer dizer,
admitirá a
oposição entre ser e não ser certa coisa, expressa pela oposição entre afirmação e negação, em
que consiste o princípio de
não-contradição.
É este um
exemplo de como também a dialética
pode produzir autêntica ciência, um exemplo de uso científico da dialética.
Contudo, Aristóteles
não se limita a enunciar a fórmula geral
desta demonstração, mas a desdobra articuladamente, tomando em exame as
posições concretas de quantos negavam, direta ( alguns sofistas) ou
indiretamente ( alguns filósofos pré-socráticos, ou “físicos”), o princípio de não
contradição, e refutando-as uma a uma com argumentações inclusive de tipo “pragmático”, isto é, que
consistem em salientar uma diferença entre a tese sustentada pelos que negam o
princípio e o
seu comportamento prático.
Aristóteles
realiza operação análoga a propósito do princípio do terceiro
excluído, no
qual, no entanto, a situação já é diferente, porque permite pressupor o princípio de não
contradição, não mais em questão , e portanto refutar os que negam o princípio do terceiro
excluído,
reduzindo à contradição a sua tese.
Particularmente interessante, entre os argumentos em defesa do princípio do terceiro
excluído,
são aqueles contidos no último capítulo do livro IV, no qual Aristóteles
especifica duas negações entre si
contrárias
deste mesmo princípio e
refuta ambas, reduzindo-as à
contradição, mas com isso termina por demonstrar
a tese contraditória
em relação a ambas as teses refutadas. Vejamo-las de perto, porque
configuram uma situação exatamente idêntica àquela
que reaparecerá na
doutrina Kantiana da razão.
Uma primeira
formulação das duas negações em questão, que são
também negações do princípio de não contradição, é aquela
pela qual elas se configuram respectivamente como a tese de que “todas as
proposições são falsas”. Aristóteles
denomina-as “enunciações de sentido único e a
respeito de todas as coisas”, ou seja, poderíamos dizer, teorias unilaterais, totalizantes, “fortes”, no pior
sentido do termo. Elas negam o princípio de não-contradição e do
terceiro excluído,
porque negam a própria oposição entre verdadeiro e falso,
ou seja, admitem que duas posições entre si contraditórias
podem ser ambas verdadeiras ( negação do princípio de não-contradição) ou
ambas falsas ( negação do princípio do terceiro excluído).
A essas duas teses Aristóteles
apresenta duas refutações, uma baseada na exigência de
dar um significado às palavras “verdadeiro"e
“falso”, a qual
mostra que isso é possível apenas com a condição de estabelecer entre elas
uma oposição e, por isso, de renunciar às “enunciações de sentido único”; a outra
baseada na observação de que tais enunciações se autodestroem. Vejamos esta última, a mais
famosa:
"quem , com
efeito , diz
que são verdadeiros
todos os discursos ,
torna verdadeiro também o discurso
oposto ao seu, e por isso não-verdadeiro o seu ( visto que o
discurso oposto diz
que seu discurso
não é verdadeiro
) , enquanto quem diz
que são todos falsos diz ele
mesmo que também o seu próprio ( é falso)
. E
há algumas exceções ,
alguns dizendo que apenas o discurso
oposto ao seu não é verdadeiro,
outros dizendo que apenas o seu não
é falso ;
apesar de tudo, segue-se a eles dever postular infinitos discursos verdadeiros e falsos , visto que o discurso que diz que o
discurso verdadeiro é verdadeiro
é, ele mesmo, verdadeiro, e assim ao infinito ( 8, 1012 b 15-22)."
É esta
a famosa refutação do ceticismo absoluto, e respectivamente do absoluto
dogmatismo, que Heidegger declarou simplista, decorrente unicamente da
necessidade de “segurança”, pelo fato de que pressupõe um conceito “proposicional"de
verdade, antes de perguntar-se o que é a verdade e o
que significa seu “dar-se”. Essa observação atinge, se muito,
Husserl, do qual o próprio Heidegger
cita logo depois as Investigações
lógicas, certamente não Aristóteles, o
qual, como Heidegger bem o sabe, explorou a fundo o que é a
verdade.
Que a
supramencionada refutação, pois, seja tudo menos formalista, é provado
por sua imediatamente sucessiva aplicação a duas teses de enorme densidade
metafísica,
aquela que afirma “tudo está em repouso”, ou seja, o eleatismo, e aquela que
afirma “tudo está em movimento”, ou seja, o heraclitismo.
Aristóteles é perfeitamente
consciente, e, com efeito, prossegue ( e conclui o livro dedicado à defesa
do princípio do
terceiro excluído) com
esta afirmação:
“ mas também não é possível que as
coisas em certo momento estejam todas em repouso ou todas em movimento, pois há alguma coisa
que sempre move as coisas movidas,
e isso é o primeiro motor imóvel (
1012 b 29-31)."
A impossibilidade
de que as coisas estejam ora todas em repouso e ora todas em movimento segue-se
da refutação das hipóteses
precedentes: ela é, com efeito, por assim dizer, a soma de duas
impossibilidades. Contudo, sua consequência é que
alguma coisa é sempre imóvel ( o
ato puro, isto é, Deus) e alguma coisa é sempre
movimento ( o céu,
isto é, o universo em seu complexo, que, segundo Aristóteles, é eterno e
gira incessantemente sobre si mesmo), ou seja, uma metafísica da
transcendência.
A teologia ‘dialética’
Já no fim do livro
IV da Metafísica,
encontramos uma alusão à parte “teológica”desta ciência, a
que trata de Deus. Ela constitui o desenvolvimento posterior da parte
propriamente “ontológica”, da teoria do
ser enquanto ser, de seus múltiplos significados e de suas propriedades por si, e é exposta
detalhadamente nos últimos
livros da obra, os de número
XII-XIII-XIV. Para dizer a verdade, a ordem na qual tais livros foram
transmitidos não parece corresponder à intenção de Aristóteles. A
ordem lógica autêntica
dos três últimos
livros é, portanto, XIII-XIV-XII.
O motivo da nova
exposição é claro: a
tarefa da filosofia primeira é, efetivamente, procurar os princípios, isto é, o “primeiro"
entre os sentidos do ser, que é a substância, e o primeiro
entre os sentidos da substância, a “substância primeira”, que é a forma,
enquanto causa ( formal, isto é, imanente) das substâncias sensíveis. Se porém,
existe também uma substância imóvel, esta será
“primeira"com mais forte razão, porque anterior às substâncias móveis
tomadas em seu complexo, enquanto causa, como veremos, motora e, por isso,
transcendente. A esse novo significado de “substância primeira” Aristóteles
alude já no livro
IV, no qual distingue tal substância da natureza, e posteriormente sobretudo no livro VI,
no qual indica em seu estudo o motivo pelo qual a ciência do
ser enquanto ser pode ser denominada também “ciência teológica”( isto é,
teologia científica, ou
filosófica, e não teologia mítica, como a dos
poetas, a de Homero e de Hesíodo) e “filosofia primeira”, ciência
suprema ( 1, 1026 a 18-32).
É claro que essa
nova “substância
primeira”não é primeira
em relação às substâncias sensíveis, do ponto
de vista lógico-epistemológico. Ou
melhor, se ela é primeira, o é apenas “por
si”, isto é, por
natureza, vale dizer, na ordem do ser, não “para nós”, isto é, na
ordem do conhecimento, ou antes porque deste último ponto de vista são primeiras as
substâncias
sensíveis,
enquanto “mais próximas às
sensações”. Por
isso o método para investigá-la não poderá ser mais a análise semântica, como o
era na parte "ontológica"da
metafísica,
mas outro método, que agora examinaremos.
O método
proposto por Aristóteles: antes de tudo, discutir as
opiniões alheias, mas com o objetivo de ver o que há de verdadeiro e
de falso nelas, exatamente segundo o “uso filosófico”da dialética ( o
terceiro mencionado nos Tópicos), em particular
da peirástica (
isto é, do exame crítico das
opiniões alheias). A esse exame crítico são inteiramente dedicados os livros XIII
e XIV, dois entre os três livros “teológicos”.
Contudo, na
teologia aristotélica não existe apenas a parte crítica, mas também uma
parte positiva, contida no livro XII, cujo vínculo com o XIII e, especialmente, com o XIV foi
reconhecido por vários estudiosos
desde o século XIX e definitivamente confirmado pelo maior
aristotelista do nosso século, Werner Jaeger. Aqui Aristóteles,
retornando à investigação sobre a
substância,
antes de tudo expõe três possíveis tipos de
substâncias, a
móvel corruptível ( as
substâncias
terrestres), a móvel incorruptível ( as substâncias celestes)
e a imóvel, observando que a existência das
duas primeiras é admitida por todos, porque atestada
pelas sensações, enquanto a da terceira é admitida apenas
por alguns ( os platônicos),
mas, evidentemente por insuficiência dos argumentos adotados por
eles, requer uma investigação posterior.
A existência da
substância imóvel
é demonstrada por Aristóteles no célebre capítulo sexto do
livro XII, no qual ele, antes de tudo, recorda a prioridade da substância sobre as
outras realidades, compreendido o movimento, mas também a
eternidade deste último (
e do tempo), o que o leva a admitir a necessidade de uma substância que faça as
vezes de substrato para o movimento eterno: trata-se do céu, que
gira eternamente sobre si mesmo ( 1071 b 3-11). Neste ponto, na verdade, Aristóteles
observa que é necessário admitir um princípio capaz de
mover o céu, o que não podem fazer as Ideias ou outras substâncias a elas
semelhantes: é clara, aqui, a polêmica
contra os platônicos. Daí ele acrescentar que esse princípio deve ser em
ato, isto é, deve estar efetivamente movendo pois, se fosse
apenas em potência, poderia também não existir, o
que contradiz sua eternidade ( 1071 b 12-17).
Até este ponto,
contudo, o papel de princípio do
movimento poderia também ser deduzido da alma do mundo, como
sustentava Platão no Timeu e, sobretudo,
na Leis.
Aqui se põe em ação a
refutação de Aristóteles, que é, ainda
uma vez, polêmica contra Platão. A eternidade do movimento do céu exige,
um princípio cuja
substância
seja o ato, isto é , que seja puro ato, porque, se não
fosse assim, graças ao aspecto pelo qual ele é também em potência,
ele poderia não passar a ato e, portanto, não mover. Pode-se dizer, em certo
sentido, que também esta é uma demonstração dialética, um
demonstrar por meio de refutação (“elenkticamente”).
Um caráter ainda mais
marcadamente dialético tem a demonstração posterior do movente imóvel
contida no capítulo
sétimo, no qual Aristóteles expõe quatro possíveis combinações
dos termos “movente” e “movido”, isto é, “movido não-movente”, “movido
movente”, “movente
não-movido”e “não-movente
não-movido”. À quarta
combinação
não corresponde nada de real. Ao contrário, à primeira correspondem às substâncias
terrestres, à segunda corresponde ao céu,
portanto conclui Aristóteles, à terceira
combinação, é puro ato.
Os
desdobramentos posteriores do discurso são conhecidos, e são menos
interessantes do ponto de vista do método, ainda que o sejam do ponto
de vista do conteúdo “teológico”.
No capítulo oitavo, pois, Aristóteles
permite-se também uma crítica da religião tradicional, isto é, da
teologia mítica.
Depois de ter demonstrado que os princípios imóveis são muitos,
precisamente tantos quantas são as esferas celestes que giram eternamente sobre
si mesmas, ele acrescenta uma verdadeira crítica, no sentido literal de discernimento, da
tradição religiosa, visto que parte dela, aquela demonstrável
racionalmente, é acolhida, enquanto outra, a mais mítica e ditada
por objetivos práticos, é deixada
de lado. A muitos ainda impressiona esse “politeísmo"de Aristóteles,
porque se esquecem de que ele era de fato um grego antigo. Contudo, não
obstante tal politeísmo,
Aristóteles não hesita em afirmar, e com bons argumentos, que entre os
muitos motores imóveis há um que é “primeiro”, isto é, o
motor da primeira esfera celeste ( 1074 a 31-38): este, portanto, pode ser
denominado “Deus"com a inicial maiúscula (
acredita-se ou não em sua existência, como se faz com “Zeus”).
É somente desse Deus, desse primeiro
motor imóvel , que Aristóteles diz, em
seguida (cap.9), que é “ pensamento de pensamento”, que é o bem
supremo e transcendente, causa do bem imanente, isto é, da
ordem do universo ( cap.10). Significativo que o livro XII encerre-se com a enésima
discussão contra os outros filósofos. O
método reivindicado é ainda o dialético de desdobrar as aporias, isto é, o
terceiro uso da dialética teorizada nos Tópicos, que
consiste em deduzir as consequências das afirmações opostas,
para ver quais são absurdas e quais, ao contrário aceitáveis.
Também no livro XII
da Metafísica,
portanto, dedicado à exposição positiva de
sua teologia, Aristóteles não
sabe renunciar à discussão e,
com efeito, no breve movimento deste último capítulo consegue opor-se a todas as “ teologias
"dos filósofos a ele precedentes, para criticá-las todas. No
final, igualmente, não sabe renunciar nem sequer a um expediente retórico, e
termina com a famosa citação de Homero: “ É mau que muitos comandem; um só
tenha o posto supremo”
(citação que redimensiona notavelmente o seu “ politeísmo”).
Bibliografia:
BERTI, Enrico,
As Razões de Aristóteles. São Paulo. Edições Loyola, 2002.
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