terça-feira, 8 de março de 2016

PLATÃO - FEDRO

PLATÃO - FEDRO / (trecho 278b-278e)
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)




Resumo: Este artigo pretende analisar e comentar o trecho 278b-278e, do Diálogo Fedro, de Platão, tradução Jorge Paleikat (modificada). Primeiro faz-se uma apertada síntese sobre o diálogo, para então focarmos na analise, ou seja, contexto, argumentação, conceitos, metáforas e também o comentário do trecho em questão. Trecho este que cito abaixo.




“ Sócrates: - Bem, já nos divertimos suficientemente com discursos. Vai ter com Lísias e diz-lhe que descemos à fonte e ao santuário das ninfas ,  e  ali ouvimos discursos em que éramos encarregados desta tarefa: falar a Lísias e a qualquer outro homem que redija discurso; falar a Homero e a qualquer outro autor de poesias que se destinam ou não a ser cantadas: e, em terceiro lugar, falar a Sólon e a todos os que escreveram sobre assuntos políticos, dando-lhes o nome de leis .  Devemos   dizer- lhes  o   seguinte:    se eles compuseram esses   escritos   sabendo  o  que  é verdadeiro  (eidos hei to alethes )  ,  se conseguem socorrer (boethein) estes escritos quando se trata do assunto em questão, se enfim, são capazes pelas palavras de mostrar eles mesmos como é pouco o que escreveram,então não podem ter nenhuma das denominações usuais  ,  mas devem  ser chamados  segundo  os  objetos  aos quais se dedicam.

Fedro: - E que nome é esse que tu lhes queres dar?

Sócrates: - Chamá-los de sábios (sophos), Fedro ,  me  parece  excessivo  e  somente cabe a um deus. Mas chamá-lo de filósofo (philosophos) ou de algo  semelhante caberia melhor e seria mais apropriado.

Fedro: - Mas aquele, em compensação, que não possui nada de mais valioso  que seus escritos, que passa muito tempo a revê-los, tirando uma coisa aqui e acrescentando outra acolá, a esse homem podes chamar, com justiça  ,  de poeta ou fazedor de discursos ou de escrevente de textos de lei, não é?”

Platão, Fedro, 278b - 278e, tradução Jorge Paleikat (modificada).


I - Introdução:  síntese sobre o dialogo Fedro

Fedro é um diálogo escrito por Platão ( filósofo grego de Atenas) no séc. IV a.C.. Todo o diálogo é sustentado em 1ª pessoa por Sócrates o tema central da obra é sobre a justeza dos amores e da justiça dos discursos. Sócrates e Fedro conversam caminhando às margens do Ilissos, de todos os diálogos de Platão, esse é o único cujo ambiente é descrito com precisão, e um dos raros em que uma personagem ( Fedro) é objeto de verdadeira caracterização psicológica.

O ponto de partida do dialogo é um discurso de Lísias, a quem o jovem Fedro  devota desmedida admiração. A esse discurso, Sócrates opõe um arrazoado sobre o mesmo tema, a saber: valerá mais conceder favores a quem nos ama ou a quem não nos ama?  Como, em seu discurso, Lísias escolhe a segunda resposta, Sócrates vai defender a primeira.

Mas Sócrates não poderia satisfazer-se em somar um discurso a outro discurso. Sua reflexão sobre o amor passará, portanto, por uma analise da alma humana. Aqui se encontra a célebre imagem da atrelagem alada: a alma é comparável ao conjunto formado pelo cocheiro e seus dois cavalos, um dócil e outro bravio. Essa imagem leva Platão a uma alegoria do conhecimento, da vida virtuosa, da própria filosofia. Platão explica por que nem todas as almas têm o mesmo destino: algumas, mais que outras, têm a capacidade de elevar-se para a região das essências eternas. Mas todas sentem aqui na terra o eco abafado da beleza ideal. Assim como O banquete, cujo prolongamento indispensável constitui, Fedro articula uma reflexão sobre o amor e a filosofia com a Ideia de belo.

O diálogo termina com uma crítica a escrita à qual Sócrates opõe a palavra viva.


II - Análise: contexto, argumentação, conceitos, metáforas e comentário do trecho 278b-278e do Fedro de Platão.

No trecho do dialogo em analise constatamos uma crítica de Platão, através de Sócrates, a escrita.  Comecemos então:

Na luz de uma manhã de verão, fora dos muros de Atenas, Sócrates e seu jovem amigo Fedro, caminham, descalços, seguindo o riacho.  Na trama do diálogo Eros e Logos se encontram estreitamente ligados por um mesmo movimento de busca. Sócrates quebrando a monotonia das longas narrativas faz jorrar os apartes para retomar a estrada cheia de obstáculos, mas que conduz a verdade. Sócrates arrasta Fedro embora pretendesse conduzi-lo. Este diálogo descreve os encantos da palavra e do amor. Espera-se que o diálogo termine com a exaltação da atividade literária, mas pelo contrário  a conclusão do  Fedro contém aquilo que foi chamado condenação da escrita.É o que constatamos no trecho abaixo:

“ Sócrates: - Bem, já nos divertimos suficientemente com discursos. Vai ter com  Lísias e diz-lhe que descemos à fonte e ao santuário das ninfas , e  ali ouvimos discursos em que éramos encarregados desta tarefa: falar a Lísias e  a  qualquer outro homem que redija discurso; falar a Homero e a  qualquer outro autor de poesias que se destinam ou não a ser cantadas: e, em terceiro lugar , falar a Sólon e a todos os que escreveram sobre assuntos  políticos , dando-lhes  o  nome  de  leis.  Devemos  dizer-lhes  o  seguinte:  se  eles compuseram  esses  escritos sabendo o   que é verdadeiro  (eidos  hei  to  alethes), se conseguem socorrer ( boethein) estes escritos quando se trata do assunto em questão,  se enfim, são capazes pelas palavras de mostrar eles  mesmos   como  é  pouco o que escreveram,  então   não podem  ter nenhuma das denominações usuais, mas devem ser chamados segundo os objetos aos quais se dedicam. ( 278b)"

Assim, percebe-se uma crítica platônica da escrita. Inevitável é concluir a contradição filosófica-literária em que Platão se auto coloca. Constatamos, também, neste enigma as tentativas de interpretá-lo. Segundo, Mario Vegetti, a existência das obras escritas de Platão já demonstram sua ambiguidade. Contradição interpretada por uma corrente filosófica (neoplatonismo até Escola de Tübingen), como indicio de uma doutrina não escrita de Platão, esotérica. Já a mesma contradição foi interpretada pelo comentador Wolfgang Wieland, como a manifestação da consciência dos limites do texto escrito. Tal crítica, é pelo fato que existem limites internos à comunicabilidade.  Segundo Wieland, não há verdadeira contradição em chamar “atenção num texto para tudo aquilo que enquanto tal, um texto não pode produzir”.

A argumentação neo-kantiana de Weiland é altamente fiel à reflexão platônica a respeito dos limites da linguagem. Sendo que, uma interpretação apressada, portanto equivocada, muitas vezes postula a existência de um ser indizível, que somente uma contemplação de tipo místico poderia alcançar. A leitura de Weiland evita essa armadilha.

Passemos, então, para a questão que Sócrates ( Platão) chama a atenção sobre a denominação daqueles que são capazes de "superar" os limites da escrita, novamente, voltemos ao trecho em questão e avancemos mais um pouco:  

“ Sócrates: - Bem, já nos divertimos suficientemente com discursos. Vai ter com Lísias e diz-lhe que descemos à fonte e ao santuário das ninfas, e ali ouvimos discursos em que éramos encarregados desta tarefa: falar a Lísias e  a  qualquer  outro  homem que redija discurso ;  falar a Homero   e   a qualquer outro autor de poesias que se destinam ou não a ser cantadas: e, em terceiro lugar, falar a Sólon e a todos os que escreveram sobre assuntos políticos, dando-lhes o nome de leis.Devemos dizer-lhes o seguinte: se eles compuseram esses  escritos sabendo  o  que  é   verdadeiro   ( eidos hei to alethes), se conseguem socorrer ( boethein) estes escritos quando se trata do assunto em questão,  se enfim, são capazes pelas palavras de  mostrar eles mesmos como é  pouco  o  que  escreveram ,  então  não  podem   ter nenhuma das denominações usuais, mas devem ser chamados segundo os objetos aos quais se dedicam.

Fedro: - E que nome é esse que tu lhes queres dar?

Sócrates: - Chamá-los de sábios (sophos), Fedro, me parece excessivo e  somente cabe a um deus. Mas chamá-lo de filósofo (philosophos) ou de algo semelhante caberia melhor e seria mais apropriado.

Constatamos que Sócrates cita os fazedores de discursos, poesias e leis, mencionando os nomes mais ilustres, tais como Homero, Lísias e Sólon, porém ressalva que, só seriam filósofos, ou seja, os amigos da sabedoria, aqueles que realmente sabem o que é verdadeiro, ( eidos hei alethes), e tem a consciência do limite da escrita,  porém sabem supera-la através das palavras, esses seriam os filósofos (philosophos), pois a denominação de sábios, sophos, caberia apenas a um deus. O comentador Wieland que coloca a questão da limitação da escrita e, no entanto, da competência do logos em Platão,  uma questão na qual vários comentadores já tinham situado a origem  da teoria das Ideias, esses seres extra-linguísticos que garantem a possibilidade de uma compreensão linguistica.Platão considera que nem todos sabem o que é verdadeiro: alguns, mais que outros, têm a capacidade de elevar-se para a região das essências eternas, estes são os filósofos, sabem o que é verdadeiro, mas todos sentem aqui na terra o eco abafado da beleza ideal.

Por fim foquemos no trecho final:
        
“Fedro: -  Mas aquele ,  em compensação, que não possui nada  de mais valioso que seus escritos, que passa muito tempo a revê-los, tirando uma coisa aqui e acrescentando outra acolá, a esse homem podes chamar, com justiça, de poeta ou fazedor de discursos ou de escrevente de textos de lei, não é? ( 278e )”

Assim, para  Sócrates (Platão) os que não possuem nada de mais valioso que seus escritos, e passam o tempo revendo seus escritos, devem ser chamados apenas de poetas, fazedores de discursos e escrevente de lei, pois não conhecem o que é verdadeiro.

Isto posto, constatamos que, Platão concede um tom especial, elevado, em seu diálogo para o filósofo, que pode ser um poeta, um fazedor de discurso ou de leis, mas desde que esses tenham composto seus escritos ciente do que é verdadeiro, e só o filósofo sabe o que é verdadeiro. Portanto, é mister que se conclua que, o filósofo conhece o limite da escrita, mas sabe superá-la pelas palavras.

o discurso verdadeiro não pode ser a réplica da verdade na insuficiência de nossa linguagem, mas remete muito mais a este elã da linguagem em direção àquilo que a ultrapassa e, simultaneamente, a funda.



Referências

1) GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas sobre linguagem, memória e história. R.J.:Ed.Imago, 2005.

2) HUISMAN, Denis. Dicionário dos Filósofos. Trad. Ivone C. Benedetti e outros. S.P., Martins Fontes, 2004.

3) LALANDE, André. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. Trad. Fátima Sá Correia e outros. S.P., Martins Fontes, 1999.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

MERLEAU-PONTY


MERLEAU-PONTY: SITUAÇÃO DE CRISE ENTRE FILOSOFIA E CIÊNCIA E RETORNO AOS FENÔMENOS
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)

Resumo: Este artigo pretende abordar a situação de crise entre filosofia e ciência e o retorno aos fenômenos em Merleau-Ponty.  Primeiro aborda-se, em apertada síntese, a vida do filósofo, logo após explana-se  o panorama intelectual da época, para então focar-se na crise entre filosofia e ciência e o retorno aos fenômenos sob a perspectiva merleau-pontiana.

 

 1. INTRODUÇÃO


No dia 04 de março de 1908 em Rochefort-sur-Mer, França, nasceu Maurice Merleau-Ponty. Considerado o maior  fenomenólogo francês. Dizem que não tinha o hábito de discutir filosofia fora de seu escritório, mas sim sobre fatos da vida, interrogava os amigos sobre a vida habitual, lembranças…Para ele nada era em vão, todas as coisas, no fundo, tinham um motivo.

Merleau-Ponty ficou conhecido pelos dois primeiros livros escritos em formato de tese: a tese complementar cujo título é A estrutura do comportamento, finalizada em 1938, e a “tese de Estado”, que lhe proporcionou o título de doutor em filosofia: A fenomenologia da percepção (julho de 1945). Juntamente com Jean-Paul Sartre, funda e dirige, durante algum tempo a revista Os tempos modernos, criada logo após a Liberação. Data da mesma época as duas coletâneas de artigos Humanismo e terror e Sentido e não-sentido. Tais escrito são marcados por problemas que perpassavam sua época. Na arte, percebe-se o apreço do filósofo pelo romance existencialista, pelo cinema, pelo teatro e pela pintura moderna.

Em 1952 foi eleito para a cátedra  de filosofia no Collége de France. Os resumos dos cursos ministrados aí foram publicados com o título Resumos de cursos (1952-1960). Neste período também se afasta da direção da revista Os tempos modernos, também a amizade com Sartre se abala irremediavelmente devido a publicação, em 1955, de As aventuras da dialética. Publica, ainda, outra coletânea de textos chamada Signo (1960), sendo O olho e o espírito seu último texto publicado em vida.

Claude Lefort foi o responsável pela publicação dos livros inacabados e póstumos, A prosa do mundo e O visível e o invisível. Merleau-Ponty morre, aos 53 anos de maneira súbita, a 3 de maio de 1961 vítima de parada cardíaca. Sabe-se que no momento de sua morte ele trabalhava com um livro de Descartes.

 
2. PANORAMA INTELECTUAL DA ÉPOCA

Merleau-Ponty iniciou seus trabalhos de filosofia numa época profundamente dominada por um pensamento do tipo cartesiano e Kantiano, que equivale a uma filosofia da consciência desencarnada. O ensino nas universidades tendiam para um idealismo do tipo neokantiano. Através desta tradição, a filosofia que chegava aos alunos era aquela da reflexão ou do retorno sobre si. Toda atividade humana deveria ser considerada como atividade do espírito, ou seja, operar um retorno ao sujeito que constrói a imagem das coisas, voltar-se em direção ao espírito ou ao sujeito que contrói a ciência e a percepção do mundo. O trabalho do filósofo deveria ser interpretado como a tomada de consciência desta espiritualidade, cabendo à ciência fornecer o cânon através do qual o mundo é interpretado.

Os filósofos da época não se preocupavam em explorar o mundo concreto que permaneciam à margem das ciências. Como se todas as atividades humanas fossem, no limite, simples esboços do conhecimento científico, enquanto a filosofia não passava do conhecimento da atividade espiritual operando na ciência. É contra este tipo de pensamento que Merleau-Ponty e toda uma geração de pensadores toma frente, Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, dentre outros. Não se trata de afirmar que Merleau-Ponty não estivesse convencido da existência da representação científica do mundo, mas para ele tal representação deve ser recoloca em seu lugar. A este propósito Merleau-Ponty nos diz que “o vigor da razão está ligado ao reconhecimento de um sentido filosófico que, é verdade, justifica a expressão científica do mundo, mas em sua ordem, em seu lugar no todo do mundo  humano”[1] . Assim sendo, a representação científica do mundo não é a única nem a mais importante: o mundo vivido não deve ser considerado como menos real que tais representações, e estas devem ser situadas em relação ao mundo, o qual deve ser descrito por ele mesmo. Ao fazê-lo, o filósofo descobre que todas as distinções estabelecidas pela tradição são abstratas e obscuras. Desde então, o papel da filosofia torna-se o de “encontrar o liame com o mundo que precede o pensamento propriamente dito. […] De maneira geral, a filosofia reencontra esta ‘ espessura’ e esta relação com os problemas concretos que ela perdeu ao se fazer simples reflexão sobre a ciência”[2] . 

 
Este novo modo de pensar é fruto de uma situação muito peculiar. Pode-se dizer que a guerra forçou os intelectuais a compreender o mundo em que viviam, e que as categorias empregadas para tal trabalho eram totalmente inadequadas. A guerra operou uma espécie de conversão do pensamento em direção ao mundo. A descoberta da sociedade real carregada com o peso da história suscitou uma mutação filosófica decisiva: a nova geração de filósofos precisou se dar conta de que a consciência se manifesta em ações, e que ela determina o exterior e vice-versa. Momento de uma aquisição muito grande para a ordem da reflexão filosófica: “a liberdade não está aquém do mundo, mas em contato com ele”[3] .

 

3. SITUAÇÃO DE CRISE ENTRE FILOSOFIA E CIÊNCIA E RETORNO AOS FENÔMENOS

 
Desde sua juventude,  Merleau-Ponty combate a ideologia do “pequeno racionalista” (data dos idos de 1900), que é a explicação do ser pela ciência. Ao deixar-se guiar por este mote, o pequeno racionalista pensa não ceder a nenhuma mitologia, pois fala em nome da própria razão. Para essa ideologia, haveria uma “imensa Ciência já feita nas coisas”, que a ciência efetiva terminaria, cedo ou tarde, por descortinar, e não nos deixaria “mais nada por perguntar”, já que a ciência teria poder de alcançar o próprio Ser, as leis mesmas segundo as quais o mundo é feito. A ciência da natureza, para o pequeno racionalista, era pura e simplesmente a medida do Ser.

Falava-se então, “com entusiasmo ou com angústia”, da criação da vida em laboratório  e   da   fórmula que nos desvelaria o mundo inteiro   como   um grande Processo ( S, 185), entre outros “mitos” [4] .

Merleau-Ponty contrapõe a esta tendência interpretativa o “grande racionalismo”do século XVII, momento privilegiado, rico de uma “ontologia viva”. O grande racionalista, embora tivesse criado a ciência da natureza, não a tornou medida do ser, nunca esteve em questão para os pensadores deste século tomar os resultados da ciência como o cânon da ontologia; na verdade, eles admitiam que a filosofia se projetasse sobre a ciência “sem ser sua rival”: o objeto da ciência era considerado apenas um “grau do Ser” e se justificava “em seu lugar”. Eles situavam a ciência como um “sistema intencional no campo total de nossas relações com o Ser”. O grande racionalista soube manter a tensão entre o exterior e o interior, sem reduzir um ao outro, conseguiu pensar um acordo entre ambos sem cair em uma “ontologia cientificista”( ou em um idealismo transcendental) - e ele o conseguiu à medida que o acordo entre o exterior e o interior se fez “pela mediação de um infinito positivo, ou infinitamente infinito”(S, 187). Para Merleau-Ponty, a solução proposta por este século a estas questões não é mais aceitável, mas trata-se, para ele, de retomar mais radicalmente sua tarefa[5]
 
 
A razão conceitualmente tratada transforma-se quando passa a andar junto com a desrazão. Isto significa que a razão que agora interessa ao filósofo não é desencarnada e não flutua fora do mundo concreto. Trata-se de “formar uma nova ideia de razão”, razão alargada “capaz de compreender o que em nós e nos outros precede e excede a razão”[6] . Para isto, exige-se o abandono do solo de universalidade que caracteriza o “universal de sobrevoo de um método estritamente objetivo”. Merleau-Ponty não abandona a pesquisa da universalidade, mas procura “uma segunda via em direção ao universal”,  “universal lateral”ou concreto[7] .

 
Merleau-Ponty entende que a solução para a crise entre filosofia e ciência consiste em afastar a situação de exclusão e incompreensão recíproca entre ambas. Para Merleau-Ponty, não seria correto interpretar a consciência como possuindo uma liberdade absoluta, momento em que nada estaria  fora do sujeito pensante, já que seria ele quem dá sentido a tudo - predomínio da atividade do sujeito incondicional, intemporal e absolutamente livre. Mas também não seria correto determinar completamente o homem excluindo toda liberdade - redução do sujeito a um objeto completamente determinado e condicionado. Há, todavia, momentos importantes nestas duas abordagens: do lado da filosofia é preciso chamar a atenção para o fato de que o homem não é nem produto do meio, nem da história; além disto, para que haja o saber é preciso haver um sujeito pensante. Já a ciência ensina que o pensamento tomado nele mesmo não diz quase nada sobre a realidade humana. Por um lado, encontramos um saber empírico rico, mas cego, e, por outro, a consciência filosófica que conhece a liberdade como peculiaridade humana, mas não sabe de onde vem e diante da qual os acontecimentos não têm sentido.

 
A antinomia em questão nasce graças à usura das categorias tradicionais para compreender a experiência, são elas que devem ser revisadas para por fim à crise. Merleau-Ponty recua a uma “terceira dimensão”, “meio comum” entre filosofia e ciência: atividade e passividade deixam de ser contraditórias[8]. Merleau-Ponty reconhece, em relação à consciência tal como interpretada pela filosofia tradicional, uma "maneira de ser muito particular, o ser intencional, que consiste em visar todas as coisas e não permanecer em nenhuma”[9] . Quanto à ciência, ela nos ensina que não há como passar por cima de “nossas amarras corporais e sociais, nossa inserção no mundo”; se o fizéssemos, “renunciaríamos a pensar a condição humana”[10] . Uma vez revelada a ambiguidade da experiência - o modo de ser intencional da consciência e o fato de que ela esteja  sempre em situação - cabe ao filósofo “compreender as duas coisas ao mesmo tempo”[11] . Só assim a antinomia desaparece, afinal, a relação entre sujeito e o objeto não é uma relação de conhecimento, mas uma relação de ser “segundo a qual paradoxalmente o sujeito é seu corpo e sua situação, e, de alguma forma, sua permuta”[12] .

 
Resumia-se isto na época em um lema que se tornou bastante conhecido: vers le concret ( em direção ao concreto). O concreto ganha frente em relação ao abstrato e passa a ser aquilo que o filósofo persegue; é preciso ter consciência do objeto no mundo, na experiência natural e histórica. O que salta aos olhos é a recusa da filosofia em exercer o domínio e o controle de si mesma, de outrem e do mundo em geral. Mais: as cisões operadas pelo pensamento de sobrevoo são claramente recusadas em nome da experiência. Nesse sentido, o que interessa é a relação de ser no nível do vivido e não no nível do conhecido. A filosofia  e a ciência tradicionais deixaram escorrer por entre os dedos o mundo dos fenômenos, elas deixaram de apreender a relação original existente entre o sujeito da percepção e o mundo percebido, e isto porque atribuem a esta relação uma significação vinda do exterior e não uma significação imanente ao sensível.

 
Surge daí o “primado da percepção” na  filosofia merleau-pontiana. O filósofo quer recuar a uma camada originária da experiência graças à qual o próprio mundo da ciência é constituído. Trata-se de um retorno aos fenômenos que nos ensina o seu próprio funcionamento e que funda de uma vez por todas, o ponto de vista que faz com que as descrições da percepção sejam verdadeiras. Este retorno aos fenômenos requer uma inversão dos pontos de vistas tradicionais, os quais perdem o “logos em estado nascente”, pois se atém ao resultado do processo percebido - o objeto constituído - e não traçam sua gênese. Na Introdução à Fenomenologia da Percepção - “Os prejuízos clássicos e o retorno aos fenômenos”- Merleau-Ponty abre um campo fenomenal que justifica o sentido do retorno ao vivido aquém do mundo objetivo: tal retorno é compreendido como  “o primeiro ato filosófico” [13]. Este procedimento revela, justamente, a concepção merleau-pontiana da redução fenomenológica, pondo em relevo uma significação aderente ao mundo.

Merleau-Ponty, de início, começa realizando uma fenomenologia da percepção, mas isso é apenas o começo, para uma “maneira nova de ver o ser"[14] , ele seguirá em frente em direção a “verdade explícita”, a qual é encontrada no nível da linguagem, do conceito, da cultura.                         

 

REFERÊNCIAS

 
Chauí, M., Experiência do Pensamento. Ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. S.P., Martins Fontes, 2002.

Carmo, Paulo Sérgio, Merleau-Ponty Uma Introdução. S.P., Educ, 2011.

Huisman, Denis. Dicionário dos Filósofos. Trad. Ivone C. Benedetti e outros. S.P., Martins Fontes, 2004.

Huisman, Denis. Dicionário de Obras Filosóficas. Trad. Ivone Castilho Benedetti.S.P.. Martins Fontes,2002.

Lalande, André. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. Trad. Fátima Sá Correia e outros. S.P., Martins Fontes, 1999.

Merleau-Ponty, M., Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos Alberto R. Moura. S.P., Martins Fontes, 1994.

Merleau-Ponty, M., Signos. Trad. Maria E. Pereira. S.P.: Martins Fontes, 1991, p.249.

Merleau-Ponty, M., Coleção “Os Pensadores”. Trad. M. Chauí e outros. S.P., Abril Cultural, 1. ed.,1975.

Merleau-Ponty, M., Ciências do Homem e Fenomenologia. Trad. Salma Tannus Muchail.S.P., Saraiva,1973.

Moutinho, L. Damon Santos. Razão e experiência. Ensaio sobre Merleau-Ponty. S.P., Unesp/Fapesp,2006.



[1] Merleau-Ponty, M., Signos. Trad.Maria E. Pereira. S.P.: Martins Fontes, 1991, p. 249.
[2] Merleau-Ponty, M., Parcours deux-1951-1961.Lagrasse : Verdier, 2000, p.66.
[3] Merleau-Ponty, M., Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1966, p.261.
[4] Moutinho Luiz Damon Santos. Razão e experiência. Ensaio sobre Merleau-Ponty. S.P. UNESP/Fapesp,2006, p. 28.
[5] Merleau-Ponty, M., Signos. Trad. Maria E. Pereira. S.P.: Martins Fontes, 1991, pp. 185-191.
[6] Merleau-Ponty, M., Signos. Trad. Maria E. Pereira. S.P.: Martins Fontes, 1991, p.150.
[7] Merleau-Ponty, M., Signos. Trad. Maria E. Pereira. S.P.: Martins Fontes, 1991, p. 150.
[8] Merleau-Ponty, M., Fenomenologia da percepção. Trad. bras. Carlos Alberto R. Moura. S.P., Martins Fontes, 1994, p.13.
[9] Merleau-Ponty, M., Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1966, p.124.
[10] Merleau-Ponty, M., Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1966, p.125.
[11] Merleau-Ponty, M., Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1966, p.126.
[12] Merleau-Ponty, M., Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1966, p.125.
[13] Merleau-Ponty, M., Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos Alberto R. de Moura. S.P.: Martins Fontes, 1994, p.89.
[14] Merleau-Ponty, 1959, Colóquio sobre o termo “Estrutura”, apud Chauí, M. Experiência do pensamento. Ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty, p. 197.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

NIETZSCHE

A FILOSOFIA DE NIETZSCHE
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo) 




RESUMO: Este artigo pretende abordar alguns temas que sobressaem na filosofia de Nietzsche, são eles: vontade de poder, teoria das forças, eterno retorno, dionisíaco e perspectivismo. Impossível é resumir toda riqueza e potência do pensamento nietzschiano. 


1. Introdução

 Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900), nascido em Röcken (Prússia/Baixa Saxônia), filho de pastores protestantes. 
Dedicou-se inicialmente à filologia, sendo professor dessa disciplina na Universidade da Basiléia. 
Influenciado pela filosofia de Schopenhauer e pela música de Richard Wagner, escreve sua primeira obra filosófica: A origem da tragédia no espírito da música, na qual estão esboçados os temas que o acompanharão ao longo de sua carreira. 
Sua filosofia é provocadora, põe em questão nossa maneira de pensar, sentir e agir. Pluralista propõe não uma, mas múltiplas provocações. Contestador, polêmico, crítico, incomodativo, desconfortante. 
Seus escritos acabaram-se por sentir nas mais diversas áreas: na literatura, nas artes plásticas, na música, na psicanálise, nas chamadas ciências humanas, seus textos deixaram marcas indeléveis em nossa cultura. 
Conhecido sobretudo por filosofar a golpes de martelo, desafia normas e destrói ídolos. Nietzsche, um dos pensadores mais controvertidos, continua no centro do debate filosófico. 
Insiste em apresentar-se como um filólogo, dirá ele: Perdoem este velho filólogo, que não resiste à maldade de pôr o dedo sobre artes de interpretação ruins. 
Não hesita em recorrer a diferentes meios para atrair seus leitores, para provocá-los, deseja que leiam seus textos: lentamente, profundamente, olhando para trás e para diante, com segundas intenções, com as portas abertas, com dedos e olhos delicados… 
Pensa que o filólogo não deve se restringir a atuar como um especialista, mas deve ter em certa medida alma de artista. 


2. Vontade de poder 

 Nietzsche apresenta, pela primeira vez, em "Assim falou Zarathustra”, sua concepção de vontade de poder, é com ela que passa a identificar a vida. Concebe a vontade de poder como vontade orgânica; ela é própria de todo ser vivo, não só do homem, e mais: exerce-se nos órgãos, tecidos e células, nos numerosos seres vivos microscópicos que constituem o organismo. 
Atuando em cada elemento, encontra empecilhos nos que o rodeiam, mas tenta submeter os que a ela se opõem e colocá-los a seu serviço. 
É por encontrar resistência que ela se exerce. 
A luta desencadeia-se de tal forma que não há pausa ou fim possíveis; mais ainda, ela propicia que se estabeleça hierarquias, jamais definitivas . 
 (…) A pulsão de aproximar-se e a pulsão de repelir algo são a ligação tanto no mundo inorgânico quanto no orgânico. (…). A vontade de poder em cada combinação de força, defendendo-se contra o mais forte, abatendo-se sobre o mais fraco, é mais exata. N.B.Os processos [Prozesse] como “essência” [Wesen].


3. Teoria das forças 

 Em escritos posteriores a Assim falou Zarathustra, Nietzsche elabora sua teoria das forças, tal teoria consiste em que a força só existe no plural, não é em si, mas em relação a, não é algo, mas um agir sobre. 
A força simplesmente é um efetivar-se. Atua sobre outras, resiste a outras, é um querer-vir-a-ser-mais-forte. 
Luta-se por mais poder. Insaciável luta de forças, não há trégua, nem termo. Continua-se a exercer a vontade de poder. 
A cada momento, as forças relacionam-se de modo diferente e a vontade de poder vencendo resistências, supera a si e, nessa auto-superação, faz surgir novas formas. 
Toda força motora é vontade de poder, não existe fora dela nenhuma força física, dinâmica ou psíquica. 
A vontade de poder é a qualidade dada a toda força, aos quanta dinâmicos, ela é um pathos: Não um ser, não um vir-a-ser, mas um pathos, é o fato mais elementar, do qual resulta um vir-a-ser, um efetivar-se… 
Isso não significa que constitua um ente metafísico ou um princípio transcendente. Qualidade de todo acontecer, diz respeito ao efetivar-se da força. 
É fenômeno universal. Esse mundo é a vontade de poder - e nada além disso! 


4. Eterno Retorno 

 Na sequência de sua visão do mundo, Nietzsche cria a doutrina do eterno retorno, que aparece relacionada com à teoria das forças e ao conceito de vontade de poder . 
Admitindo que a soma das forças permanece constante no mundo, Nietzsche afirma que , embora múltiplas , elas são finitas. 
Num tempo infinito, só haveria, então, duas possibilidades: ou o mundo atingiria um estado de equilíbrio durável ou os estados por que passasse se repetiriam . 
Assim, dadas as suas concepções acerca do mundo, o filósofo não pode aceitar que ele chegue a um estado final. 
Se o mundo tivesse algum objetivo, já o teria atingido; se tivesse alguma finalidade, já a teria realizado . 
Mundo finito, mas eterno, é o que basta para a doutrina do eterno retorno, ou seja, finitas são as forças, finito é o número de combinações entre elas, porém eterno é o tempo. 
Daí segue-se que, tudo já existiu e tudo tornará a existir. Se o número dos estados por que passa o mundo é finito e se o tempo é infinito, todos os estados que hão de ocorrer já ocorreram no passado. 
Para Nietzsche o mundo é um processo e não uma estrutura estável, é um vir-a-ser contínuo, a cada mudança segue-se outra, a cada estado atingido sucede-se outro. 
 O mundo subsiste ; não é nada que vem a ser, nada que perece. Ou antes: vem a ser, perece, mas nunca começou a vir a ser e "nunca cessou de perecer- conserva-se em ambos… Vive de si próprio: seus excrementos são seu alimento” A doutrina do eterno retorno também põe o ser humano diante de um desafio, o de viver esta vida, tal como ela é, ainda uma vez, e inúmeras vezes; o de dizer sim ao mundo, tal como é “sem desconto, exceção e seleção” . 


5. Dionisíaco 

 Apaixonado por aquilo que ele próprio define como “espírito trágico”, também chamado por Nietzsche de dionisíaco, seria a síntese do apolíneo e do dionisíaco, tanto no campo da arte como no campo da filosofia. 
O apolíneo e o dionisíaco são apresentados como duas forças ou os impulsos fundamentais da natureza, cuja síntese fez nascer o espírito trágico grego. 
Nietzsche retoma com plenitude o pensamento dos primeiros gregos, que segundo ele, seriam os únicos que não teriam sofrido a influência decadente da metafísica socrático-platônica. 
Com a palavra “dionisíaco” exprimi-se: um ímpeto de unidade, um açambarcar de pessoa, quotidiano, sociedade, realidade, como abismo do esquecimento, o transbordar apaixonado e doloroso em estados mais escuros, mais plenos, mais esvoaçantes: um arrebatado dizer sim ao caráter total da vida, como àquilo que é igual em toda mudança, igualmente poderoso, igualmente bem aventurado; o grande compartilhamento da alegria e a grande compaixão panteísta, que santificam e abençoam inclusive as mais terríveis e mais problemáticas propriedades da vida a partir de uma eterna vontade de engendramento, de fertilidade, de eternidade: como sentimento de unidade da necessidade do criar e do aniquilar… 
Nietzsche se diz, também, em vários momentos de sua obra “um discípulo do filósofo Dionísio”. 
Quer afirmar este mundo tal como ele é: esse meu mundo dionisíaco do eternamente-criar-a-si-próprio e do eternamente destruir-se-a-si-próprio, esse mundo secreto da dupla volúpia, esse meu ‘para além do bem e do mal’ . 


6. Perspectivismo 

 Uma das características que sobressai no pensamento nietzschiano é o seu perspectivismo, com isso impedem-se a busca na sua filosofia de um conceito fundamental, que constituiria o seu eixo ou serviria como fio condutor para o seu desenrolar.
 
"Penso que hoje estamos longe, pelo menos, da ridícula imodéstia de decretar a partir de nosso ângulo que só se deveria ter perspectivas a partir desse ângulo. 
O mundo, ao contrário, tornou- se para nós ‘infinito' uma vez mais: na medida em que não podemos recusar que ele encerra infinitas interpretações".

O perspectivismo parece estar também relacionado ao experimentalismo, são vários os textos em que Nietzsche convida o leitor à experimentação. 
Em Além do bem e do mal , ele se refere aos filósofos que estão por vir como os experimentadores, os que têm o dever “das cem tentativas, das cem tentaçōes da vida”. 
Em seus escritos, a intenção de fazer experimentos com o pensar encontra tradução em perseguir uma ideia em seus múltiplos aspectos, abordar uma questão a partir de vários ângulos de visão, tratar de um tema assumindo diversos pontos de vista, enfim, refletir sobre uma problemática adotando diferentes perspectivas. 


6.1 Conhecimento e interpretação 

 Sobre o conhecimento questiona: que pode ser simplesmente o conhecimento? - ‘interpretação’, não ‘ explicação’ . 
Assim para Nietzsche o conhecimento humano é, antes de mais nada, interpretação. 
São nossas necessidades que interpretam o mundo , nossos instintos e seus prós e contras. 
Cada instinto é uma espécie de busca de dominação, cada um possui a sua perspectiva que quer impor como norma a todos os outros instintos . 
 Entende o filósofo que não só o homem interpreta, mas as diferentes formas de vida também o fazem. A vontade de poder interpreta ; quando um órgão se forma , trata-se de uma interpretação […] O processo orgânico pressupõe um perpétuo interpretar . 
E mais, engana-se, quem supõe que apenas o vivente interpreta; no limite, toda existência é interpretativa. 
As interpretações expressão forças que se relacionam de certa maneira. 
Não se deve perguntar: quem pois interpreta ? , ao contrário, o próprio interpretar , enquanto forma de vontade de poder, tem existência ( contudo, não como um ‘ser’, mas como um processo, um vir-a-ser) enquanto um afeto .  
Nietzsche entende o interpretar no contexto de sua visão de mundo. Na medida em que as configurações de forças se sucedem, surgem sempre outras perspectivas e, portanto, outras interpretações. 
É preciso levar em conta: o perspectivismo necessário mediante o qual cada centro de forças - e não unicamente o homem - constrói a partir de si mesmo todo o resto do mundo, isto é, mede segundo sua força, tateia, dá forma …
O pensador considera que, sendo o mundo um conjunto de relações, o homem poderia apreendê-lo, adotando perspectivas em sintonia com as espécies de relações que o constituem. 
Ele poderia assim chegar a uma interpretação mais compatível com esse mundo em permanente mudança. 
Nunca lhe seria dado, porém, transcender a condição humana. o que permite ter em seu poder seu pró e seu contra e combiná-los de diferentes formas, de modo que se saiba tornar utilizável para o conhecimento a diversidade mesma das perspectivas de ordem afetiva . 
Mas, neste momento surge a questão de saber como o filósofo distingui entre as boas e as más interpretações? 
Para Nietzsche é preciso dispor de um critério, para avaliar as avaliações, para interpretar as interpretações. 
E este critério, para ele, é a vida. A vida é o único critério que impõe por si mesmo. 
É preciso estender os dedos , completamente, nessa direção , e fazer o ensaio de captar essa assombrosa finesse - de que o valor da vida não pode ser avaliado. Por um vivente não, porque este é parte interessada, e até mesmo objeto de litígio, e não juiz; por um morto não, por uma outra razão . 
O filólogo, que concebe o mundo como um texto a ser decifrado, parece interessar-se em interpretar as interpretações. 
Então o filólogo se converte em filósofo genealogista. 
A noção de valor se acha intimamente ligada à de vida, no quadro do procedimento genealógico. 
Tanto é assim que, no prefácio à Genealogia da moral, Nietzsche expõe desta forma o problema de que pretende tratar: sob que condições inventou-se o homem aqueles juízos de valor, bom e mau? E que valor têm eles mesmos? Obstruíram ou favoreceram até agora o prosperar da humanidade? São um signo de estado de indigência, de empobrecimento, de degeneração da vida? Ou, inversamente, denuncia-se neles a plenitude, a força, a vontade de vida, seu ânimo, sua confiança, seu futuro? Moral, política, religião, ciência, arte, filosofia, qualquer apreciação de qualquer ordem deve ser submetida a um exame, deve passar pelo crivo da vida. 
E a vida é vontade de poder. Se a vida é vontade de poder, isto não significa necessariamente que a vontade de poder se restrinja à vida. 
Afinal, segundo Nietzsche: Esse mundo é a vontade de poder - e nada além disso! 
Por um lado, o texto a ser decifrado que é o mundo se converte, segundo a interpretação de Nietzsche, num feixe de interpretações; por outro, são essas mesmas interpretações que se apresentam através de sua própria interpretação. 
Quando falamos de valores, falamos sob a inspiração, sob a ótica da vida: a vida mesmo nos coage a instituir valores; a vida mesma valora através de nós, quando instituímos valores… 
Nietzsche vê o mundo como um texto a ser decifrado e com sua técnica interpretativa, singular e extraordinária, resgata o texto que é o mundo e pratica sua arte de ler bem, a tal ponto que exprime em seu texto, em sua interpretação. 
Zarathustra se diz: o porta voz da vida, o porta-voz do sofrimento, o porta-voz do círculo .

Tal como seu alter ego, Nietzsche se quer o porta-voz do mundo.


REFERÊNCIAS

 1) ABBAGNANO, Nicola, Dicionário de Filosofia, editora Martins Fontes – 2012.
 2) HUISMAN, Denis, Dicionários dos Filósofos, editora Martins Fontes, 2004. 
3) HUISMAN, Denis, Dicionário de Obras Filosóficas, trad. Ivone Castilho Benetti, editora Martins Fontes, São Paulo, 2012. 
4) JASPERS, Karl, Introdução a filosofia de Friedrich Nietzsche, S.P., Forense Universitari 2015. 
5) KOSSOVITCH, Leon, Signos e Poderes em Nietzsche, S.P., Azougue Editorial, 2004. 
6) MÜLLER-LAUTER,Wolfgang Nietzsche sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua filosofia, trad. Clademir Araldi, S.P., Unifesp, 2011. 
7) NIETZSCHE,Friedrich, Obras Incompletas, trad.Rubens Torres Filho, 1ªedição, editor: Victor Civita-1974. 
 8) NIETZSCHE, F., A vontade de poder. trad. Marcos Sinézio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes, R.J., Contraponto, 2011. 
9) NIETZSCHE, F., Além do bem e do Mal, trad. Paulo César de Souza, S.P., Companhia de Bolso, 2012. 
10) NIETZSCHE, F., A gaia ciência, trad. Paulo César de Souza, S.P., Cia de Bolso, 2012. 
11) NIETZSCHE, F., Assim falou Zarathustra, trad. Paulo César de Souza, Cia das Letras, 2011. 
12) NIETZSCHE, F., Sabedoria para depois de amanhã, trad.Karina Janini, S.P., Martins Fontes, 2005. 
13)NIETZSCHE, F., O Nasimento da tragédia, trad. J. Guinsgurg, S.P.,Companhia de Bolso, 2010. 
14) NIEMEYER, Christian (org.), Léxico de Nietzsche, S.P., Ed. Loyola, 2014. 
15) MARTON, S., Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos, B.H., Humanitas, 2000.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

MENSAGEM DE FIM DE ANO - Carlos Drummond de Andrade: "Verdade na Poesia"


 
Já vimos o que é a Verdade no mundo da Lógica ( artigo de maio deste ano), mas o que é a verdade mundo da Poesia?   Quem responde a tal pergunta é nosso bardo brasileiro Carlos Drummond de Andrade.
 
Assim, convidamos a uma reflexão sobre o que é a verdade no mundo da poesia.

E a todos um bom natal, um bom ano novo e uma boa escolha!

 
 
 
 


Verdade 
(de Carlos Drummond de Andrade)


A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

 

Bibliografia

ANDRADE,Carlos Drummond. Poesia Completa. Centenário Drummond.  R.J.Ed. Nova Aguilar S.A. 2002.

sábado, 19 de dezembro de 2015

A Constituição e o impeachement

* Como a Constituição Brasileira prevê o impeachement do Presidente da República?

Primeiramente devemos entender que o impeachement é a concretização da condenação por crime de responsabilidade do Presidente. Assim:

Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:

I - a existência da União;

II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação;

III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;

IV - a segurança interna do País;

V - a probidade na administração;

VI - a lei orçamentária;

VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais.

Parágrafo único. Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento.

Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.

§ 1º O Presidente ficará suspenso de suas funções:

I - nas infrações penais comuns, se recebida a denúncia ou queixa-crime pelo Supremo Tribunal Federal;

II - nos crimes de responsabilidade, após a instauração do processo pelo Senado Federal.

§ 2º Se, decorrido o prazo de cento e oitenta dias, o julgamento não estiver concluído, cessará o afastamento do Presidente, sem prejuízo do regular prosseguimento do processo.

§ 3º Enquanto não sobrevier sentença condenatória, nas infrações comuns, o Presidente da República não estará sujeito a prisão.

§ 4º O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.


** Ademais, em ocorrendo o impeachement do Presidente, teremos a vacância do cargo e o preenchimento deste se fará:

Art. 79. Substituirá o Presidente, no caso de impedimento, e suceder-lhe-á, no de vaga, o Vice-Presidente.

Art. 80. Em caso de impedimento do Presidente e do Vice-Presidente, ou vacância dos respectivos cargos, serão sucessivamente chamados ao exercício da Presidência o Presidente da Câmara dos Deputados, o do Senado Federal e o do Supremo Tribunal Federal.

Art. 81. Vagando os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, far-se-á eleição noventa dias depois de aberta a última vaga.

§ 1º Ocorrendo a vacância nos últimos dois anos do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei.

§ 2º Em qualquer dos casos, os eleitos deverão completar o período de seus antecessores.


*** Aguardemos como o guardião da Constituição Federal, leia-se, o Supremo Tribunal Federal - STF, interpretará esses artigos.
Lembremos que o STF possui paradigmas estabelecidos nos precedentes do impeachement de 1992; mas há também o princípio da livre convicção motiva das decisões judiciais!