domingo, 17 de abril de 2016

FOUCAULT E A BUSCA DA VERDADE


Inquérito e Prova em Foucault
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)

 

Resumo: Este artigo é uma apertada síntese da Conferência 3 do livro A Verdade e as formas jurídicas de Michel Foucault. Nele os temas tratados serão a prova e o inquérito, com seus traços principais. Constataremos que o sistema de provas tendeu a desaparecer quase que por completo, e o inquérito ressurgiu em dimensões extraordinárias, e permanece até os nossos dias.
 
 

 

Foucault nos conta que, a prova é, na Grécia antiga, o procedimento judicial mais arcaico, sobre o qual veio a prevalecer depois ( a partir do séc. V a.C. aproximadamente) a prática do inquérito. Pela prova  a verdade é judiciariamente estabelecida sem recurso a testemunhas ou a sentenças. Os adversários se afrontavam para saber quem estava errado e quem estava certo. Um lançava ao outro o desafio: “És capaz de jurar diante dos deuses que não fizeste o que eu afirmo?” Diante deste desafio que para eles era uma prova, se o guerreiro renunciasse à prova, renunciasse  a jurar,  renunciasse o desafio, reconhecia assim que cometeu a irregularidade. Em um procedimento como este, declara Foucault ,  confiasse o encargo de decidir não a quem disse a verdade, mas quem tem razão. Na hipótese de ter aceitado o desafio e jurado, a responsabilidade do que iria acontecer seria transposta aos desuses e seria Zeus, punindo o falso juramento, se fosse o caso, que teria com seu raio manifestado a verdade.

 

O pensador observa que, no inquérito, ao contrário, a verdade é determinada por quem “viu e enuncia”, ou seja, é baseada em testemunhos que têm, inclusive, o direito de opor-se ao poder dos governantes. Foucault usa como exemplo a estória de Édipo-Rei, afinal quem matou o rei Laio? Aparece um personagem fundamental, uma testemunha, o pastor, embora sendo um homem sem importância, um escravo, o pastor viu e pode contestar e abater o rei ou o tirano. Segundo Foucault, foi a prática do inquérito que constituiu modelo para formações culturais daquela época: filosofia, retórica, conhecimentos empíricos, baseado que são em testemunhos ( historiadores, botânicos, geógrafos, eta.).

 

Acrescenta Foucault que, na Idade Média, os dois modelos reaparecem. Inicialmente (por volta dos séc. V a XII), prevalece a prova, cujos traços principais, para o pensador são: tratava-se sempre de uma ação  “de estrutura binária”, isto é, em que indivíduos, grupos ou famílias eram diretamente postos em disputa, sem intervenção de qualquer terceiro elemento que representasse a autoridade ou a coletividade ; a verdade se confundia com a vitória do mais forte, o direito constituindo-se num prolongamento ritualizado da guerra. Ressalta que numa sociedade do tipo medieval a circulação de bens era assegurada pela herança, pelos testamentos e mais ainda pelos meios bélicos ( a rapina, a ocupação de um castelo, de uma terra, etc), ficando em segundo plano o comércio.

 

O pensador relata que, a partir dos fins do séc. XII e no decurso do séc.XIII o sistema da prova tende a desaparecer, cedendo lugar ao ressurgimento do inquérito, agora em "dimensões extraordinárias”, já que "seu destino será praticamente coextensivo ao próprio destino da cultura européia ou ocidental”[1]”e de certo modo, para a história do mundo inteiro. Usado inicialmente nas esferas eclesiásticas e nas gestões administrativas, o inquérito é introduzido no âmbito das práticas jurídicas e dali se generalizará como modelo de produção da verdade e de outras práticas. Eis, no âmbito jurídico, os traços principais: a resolução das questões de litígio não se dá diretamente entre os oponentes, mas se impõe “de fora”e “do alto" por um poder simultaneamente judiciário e politico; aparece a figura do “procurador" do rei , representante do soberano, responsável por “dublar"a vítima, uma vez que o próprio rei é lesado porque são descumpridas suas leis; surge a noção de crime como infração, porque um dano não configura mais questão apenas entre indivíduos, grupos ou famílias, mas “também uma ofensa de um indivíduo ao Estado, ao soberano como representante do Estado”; por isso mesmo é da competência do soberano o direito de impor penas e exigir reparações ( frequentemente na forma de “confiscos"que enriquecerão as monarquias)[2]. Para isso é necessário  a inquirição de testemunhas, a busca da reconstituição dos fatos, enfim, a prática do inquérito, como instrumento capaz de substituir o flagrante delito, reatualizando o crime, quando o criminoso não é surpreendido na atualidade de sua falta.

 

Foucault então observa que, recolher testemunhos, reconstituir situações, reunir dados são procedimentos que se estenderão para outras práticas e, sobretudo, para a constituição da verdade na ordem do saber. Assim, nesse quadro, desenvolver-se-ão, principalmente, as ciências empíricas ou da natureza, em domínios “como o da geografia, da astronomia, do conhecimento de climas, etc.”, ou ainda da medicina, da botânica e da zoologia[3].

 

Conclui Foucault que, enquanto o sistema da prova desaparece quase por completo, dele restando talvez a tortura( e mesmo esta “ já mesclada com a preocupação de obter a confissão, prova de verificação”[4]), o modelo do inquérito, ao contrário, permanece e se estende até nossos dias, constituindo ainda hoje a base do sistema jurídico de nossa sociedade.

 

Nenhuma história feita em termos de progresso da razão, de refinamento do conhecimento, pode dar conta da aquisição, da racionalidade do inquérito. Seu aparecimento é um fenômeno político complexo. É a análise das transformações políticas da sociedade medieval que explica como, por que e em que momento aparece este tipo de estabelecimento da verdade a partir de procedimentos jurídicos completamente diferentes.(…) Somente a análise dos jogos de força política, das relações de poder, pode explicar o surgimento do inquérito [5]. (M. Foucault)

 

 

 

Referências:

 

1) FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução: Eduardo Jardim e Roberto Machado. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2013.

2) MUCHAIL, Salma Tannus. Foucault Simplesmente. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
3) REVEL, Judith. Dicionário Foucault. Tradução: Anderson Alexandre da Silva. Rio de Janeiro: Forense Universitária


[1] Ibid., 42-43
[2] Ibid.,51-52.
[3] Ibid., 59.
[4] Ibid.,59.
[5] Ibid.,75.

terça-feira, 8 de março de 2016

PLATÃO - FEDRO

PLATÃO - FEDRO / (trecho 278b-278e)
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)




Resumo: Este artigo pretende analisar e comentar o trecho 278b-278e, do Diálogo Fedro, de Platão, tradução Jorge Paleikat (modificada). Primeiro faz-se uma apertada síntese sobre o diálogo, para então focarmos na analise, ou seja, contexto, argumentação, conceitos, metáforas e também o comentário do trecho em questão. Trecho este que cito abaixo.




“ Sócrates: - Bem, já nos divertimos suficientemente com discursos. Vai ter com Lísias e diz-lhe que descemos à fonte e ao santuário das ninfas ,  e  ali ouvimos discursos em que éramos encarregados desta tarefa: falar a Lísias e a qualquer outro homem que redija discurso; falar a Homero e a qualquer outro autor de poesias que se destinam ou não a ser cantadas: e, em terceiro lugar, falar a Sólon e a todos os que escreveram sobre assuntos políticos, dando-lhes o nome de leis .  Devemos   dizer- lhes  o   seguinte:    se eles compuseram esses   escritos   sabendo  o  que  é verdadeiro  (eidos hei to alethes )  ,  se conseguem socorrer (boethein) estes escritos quando se trata do assunto em questão, se enfim, são capazes pelas palavras de mostrar eles mesmos como é pouco o que escreveram,então não podem ter nenhuma das denominações usuais  ,  mas devem  ser chamados  segundo  os  objetos  aos quais se dedicam.

Fedro: - E que nome é esse que tu lhes queres dar?

Sócrates: - Chamá-los de sábios (sophos), Fedro ,  me  parece  excessivo  e  somente cabe a um deus. Mas chamá-lo de filósofo (philosophos) ou de algo  semelhante caberia melhor e seria mais apropriado.

Fedro: - Mas aquele, em compensação, que não possui nada de mais valioso  que seus escritos, que passa muito tempo a revê-los, tirando uma coisa aqui e acrescentando outra acolá, a esse homem podes chamar, com justiça  ,  de poeta ou fazedor de discursos ou de escrevente de textos de lei, não é?”

Platão, Fedro, 278b - 278e, tradução Jorge Paleikat (modificada).


I - Introdução:  síntese sobre o dialogo Fedro

Fedro é um diálogo escrito por Platão ( filósofo grego de Atenas) no séc. IV a.C.. Todo o diálogo é sustentado em 1ª pessoa por Sócrates o tema central da obra é sobre a justeza dos amores e da justiça dos discursos. Sócrates e Fedro conversam caminhando às margens do Ilissos, de todos os diálogos de Platão, esse é o único cujo ambiente é descrito com precisão, e um dos raros em que uma personagem ( Fedro) é objeto de verdadeira caracterização psicológica.

O ponto de partida do dialogo é um discurso de Lísias, a quem o jovem Fedro  devota desmedida admiração. A esse discurso, Sócrates opõe um arrazoado sobre o mesmo tema, a saber: valerá mais conceder favores a quem nos ama ou a quem não nos ama?  Como, em seu discurso, Lísias escolhe a segunda resposta, Sócrates vai defender a primeira.

Mas Sócrates não poderia satisfazer-se em somar um discurso a outro discurso. Sua reflexão sobre o amor passará, portanto, por uma analise da alma humana. Aqui se encontra a célebre imagem da atrelagem alada: a alma é comparável ao conjunto formado pelo cocheiro e seus dois cavalos, um dócil e outro bravio. Essa imagem leva Platão a uma alegoria do conhecimento, da vida virtuosa, da própria filosofia. Platão explica por que nem todas as almas têm o mesmo destino: algumas, mais que outras, têm a capacidade de elevar-se para a região das essências eternas. Mas todas sentem aqui na terra o eco abafado da beleza ideal. Assim como O banquete, cujo prolongamento indispensável constitui, Fedro articula uma reflexão sobre o amor e a filosofia com a Ideia de belo.

O diálogo termina com uma crítica a escrita à qual Sócrates opõe a palavra viva.


II - Análise: contexto, argumentação, conceitos, metáforas e comentário do trecho 278b-278e do Fedro de Platão.

No trecho do dialogo em analise constatamos uma crítica de Platão, através de Sócrates, a escrita.  Comecemos então:

Na luz de uma manhã de verão, fora dos muros de Atenas, Sócrates e seu jovem amigo Fedro, caminham, descalços, seguindo o riacho.  Na trama do diálogo Eros e Logos se encontram estreitamente ligados por um mesmo movimento de busca. Sócrates quebrando a monotonia das longas narrativas faz jorrar os apartes para retomar a estrada cheia de obstáculos, mas que conduz a verdade. Sócrates arrasta Fedro embora pretendesse conduzi-lo. Este diálogo descreve os encantos da palavra e do amor. Espera-se que o diálogo termine com a exaltação da atividade literária, mas pelo contrário  a conclusão do  Fedro contém aquilo que foi chamado condenação da escrita.É o que constatamos no trecho abaixo:

“ Sócrates: - Bem, já nos divertimos suficientemente com discursos. Vai ter com  Lísias e diz-lhe que descemos à fonte e ao santuário das ninfas , e  ali ouvimos discursos em que éramos encarregados desta tarefa: falar a Lísias e  a  qualquer outro homem que redija discurso; falar a Homero e a  qualquer outro autor de poesias que se destinam ou não a ser cantadas: e, em terceiro lugar , falar a Sólon e a todos os que escreveram sobre assuntos  políticos , dando-lhes  o  nome  de  leis.  Devemos  dizer-lhes  o  seguinte:  se  eles compuseram  esses  escritos sabendo o   que é verdadeiro  (eidos  hei  to  alethes), se conseguem socorrer ( boethein) estes escritos quando se trata do assunto em questão,  se enfim, são capazes pelas palavras de mostrar eles  mesmos   como  é  pouco o que escreveram,  então   não podem  ter nenhuma das denominações usuais, mas devem ser chamados segundo os objetos aos quais se dedicam. ( 278b)"

Assim, percebe-se uma crítica platônica da escrita. Inevitável é concluir a contradição filosófica-literária em que Platão se auto coloca. Constatamos, também, neste enigma as tentativas de interpretá-lo. Segundo, Mario Vegetti, a existência das obras escritas de Platão já demonstram sua ambiguidade. Contradição interpretada por uma corrente filosófica (neoplatonismo até Escola de Tübingen), como indicio de uma doutrina não escrita de Platão, esotérica. Já a mesma contradição foi interpretada pelo comentador Wolfgang Wieland, como a manifestação da consciência dos limites do texto escrito. Tal crítica, é pelo fato que existem limites internos à comunicabilidade.  Segundo Wieland, não há verdadeira contradição em chamar “atenção num texto para tudo aquilo que enquanto tal, um texto não pode produzir”.

A argumentação neo-kantiana de Weiland é altamente fiel à reflexão platônica a respeito dos limites da linguagem. Sendo que, uma interpretação apressada, portanto equivocada, muitas vezes postula a existência de um ser indizível, que somente uma contemplação de tipo místico poderia alcançar. A leitura de Weiland evita essa armadilha.

Passemos, então, para a questão que Sócrates ( Platão) chama a atenção sobre a denominação daqueles que são capazes de "superar" os limites da escrita, novamente, voltemos ao trecho em questão e avancemos mais um pouco:  

“ Sócrates: - Bem, já nos divertimos suficientemente com discursos. Vai ter com Lísias e diz-lhe que descemos à fonte e ao santuário das ninfas, e ali ouvimos discursos em que éramos encarregados desta tarefa: falar a Lísias e  a  qualquer  outro  homem que redija discurso ;  falar a Homero   e   a qualquer outro autor de poesias que se destinam ou não a ser cantadas: e, em terceiro lugar, falar a Sólon e a todos os que escreveram sobre assuntos políticos, dando-lhes o nome de leis.Devemos dizer-lhes o seguinte: se eles compuseram esses  escritos sabendo  o  que  é   verdadeiro   ( eidos hei to alethes), se conseguem socorrer ( boethein) estes escritos quando se trata do assunto em questão,  se enfim, são capazes pelas palavras de  mostrar eles mesmos como é  pouco  o  que  escreveram ,  então  não  podem   ter nenhuma das denominações usuais, mas devem ser chamados segundo os objetos aos quais se dedicam.

Fedro: - E que nome é esse que tu lhes queres dar?

Sócrates: - Chamá-los de sábios (sophos), Fedro, me parece excessivo e  somente cabe a um deus. Mas chamá-lo de filósofo (philosophos) ou de algo semelhante caberia melhor e seria mais apropriado.

Constatamos que Sócrates cita os fazedores de discursos, poesias e leis, mencionando os nomes mais ilustres, tais como Homero, Lísias e Sólon, porém ressalva que, só seriam filósofos, ou seja, os amigos da sabedoria, aqueles que realmente sabem o que é verdadeiro, ( eidos hei alethes), e tem a consciência do limite da escrita,  porém sabem supera-la através das palavras, esses seriam os filósofos (philosophos), pois a denominação de sábios, sophos, caberia apenas a um deus. O comentador Wieland que coloca a questão da limitação da escrita e, no entanto, da competência do logos em Platão,  uma questão na qual vários comentadores já tinham situado a origem  da teoria das Ideias, esses seres extra-linguísticos que garantem a possibilidade de uma compreensão linguistica.Platão considera que nem todos sabem o que é verdadeiro: alguns, mais que outros, têm a capacidade de elevar-se para a região das essências eternas, estes são os filósofos, sabem o que é verdadeiro, mas todos sentem aqui na terra o eco abafado da beleza ideal.

Por fim foquemos no trecho final:
        
“Fedro: -  Mas aquele ,  em compensação, que não possui nada  de mais valioso que seus escritos, que passa muito tempo a revê-los, tirando uma coisa aqui e acrescentando outra acolá, a esse homem podes chamar, com justiça, de poeta ou fazedor de discursos ou de escrevente de textos de lei, não é? ( 278e )”

Assim, para  Sócrates (Platão) os que não possuem nada de mais valioso que seus escritos, e passam o tempo revendo seus escritos, devem ser chamados apenas de poetas, fazedores de discursos e escrevente de lei, pois não conhecem o que é verdadeiro.

Isto posto, constatamos que, Platão concede um tom especial, elevado, em seu diálogo para o filósofo, que pode ser um poeta, um fazedor de discurso ou de leis, mas desde que esses tenham composto seus escritos ciente do que é verdadeiro, e só o filósofo sabe o que é verdadeiro. Portanto, é mister que se conclua que, o filósofo conhece o limite da escrita, mas sabe superá-la pelas palavras.

o discurso verdadeiro não pode ser a réplica da verdade na insuficiência de nossa linguagem, mas remete muito mais a este elã da linguagem em direção àquilo que a ultrapassa e, simultaneamente, a funda.



Referências

1) GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas sobre linguagem, memória e história. R.J.:Ed.Imago, 2005.

2) HUISMAN, Denis. Dicionário dos Filósofos. Trad. Ivone C. Benedetti e outros. S.P., Martins Fontes, 2004.

3) LALANDE, André. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. Trad. Fátima Sá Correia e outros. S.P., Martins Fontes, 1999.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

MERLEAU-PONTY


MERLEAU-PONTY: SITUAÇÃO DE CRISE ENTRE FILOSOFIA E CIÊNCIA E RETORNO AOS FENÔMENOS
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)

Resumo: Este artigo pretende abordar a situação de crise entre filosofia e ciência e o retorno aos fenômenos em Merleau-Ponty.  Primeiro aborda-se, em apertada síntese, a vida do filósofo, logo após explana-se  o panorama intelectual da época, para então focar-se na crise entre filosofia e ciência e o retorno aos fenômenos sob a perspectiva merleau-pontiana.

 

 1. INTRODUÇÃO


No dia 04 de março de 1908 em Rochefort-sur-Mer, França, nasceu Maurice Merleau-Ponty. Considerado o maior  fenomenólogo francês. Dizem que não tinha o hábito de discutir filosofia fora de seu escritório, mas sim sobre fatos da vida, interrogava os amigos sobre a vida habitual, lembranças…Para ele nada era em vão, todas as coisas, no fundo, tinham um motivo.

Merleau-Ponty ficou conhecido pelos dois primeiros livros escritos em formato de tese: a tese complementar cujo título é A estrutura do comportamento, finalizada em 1938, e a “tese de Estado”, que lhe proporcionou o título de doutor em filosofia: A fenomenologia da percepção (julho de 1945). Juntamente com Jean-Paul Sartre, funda e dirige, durante algum tempo a revista Os tempos modernos, criada logo após a Liberação. Data da mesma época as duas coletâneas de artigos Humanismo e terror e Sentido e não-sentido. Tais escrito são marcados por problemas que perpassavam sua época. Na arte, percebe-se o apreço do filósofo pelo romance existencialista, pelo cinema, pelo teatro e pela pintura moderna.

Em 1952 foi eleito para a cátedra  de filosofia no Collége de France. Os resumos dos cursos ministrados aí foram publicados com o título Resumos de cursos (1952-1960). Neste período também se afasta da direção da revista Os tempos modernos, também a amizade com Sartre se abala irremediavelmente devido a publicação, em 1955, de As aventuras da dialética. Publica, ainda, outra coletânea de textos chamada Signo (1960), sendo O olho e o espírito seu último texto publicado em vida.

Claude Lefort foi o responsável pela publicação dos livros inacabados e póstumos, A prosa do mundo e O visível e o invisível. Merleau-Ponty morre, aos 53 anos de maneira súbita, a 3 de maio de 1961 vítima de parada cardíaca. Sabe-se que no momento de sua morte ele trabalhava com um livro de Descartes.

 
2. PANORAMA INTELECTUAL DA ÉPOCA

Merleau-Ponty iniciou seus trabalhos de filosofia numa época profundamente dominada por um pensamento do tipo cartesiano e Kantiano, que equivale a uma filosofia da consciência desencarnada. O ensino nas universidades tendiam para um idealismo do tipo neokantiano. Através desta tradição, a filosofia que chegava aos alunos era aquela da reflexão ou do retorno sobre si. Toda atividade humana deveria ser considerada como atividade do espírito, ou seja, operar um retorno ao sujeito que constrói a imagem das coisas, voltar-se em direção ao espírito ou ao sujeito que contrói a ciência e a percepção do mundo. O trabalho do filósofo deveria ser interpretado como a tomada de consciência desta espiritualidade, cabendo à ciência fornecer o cânon através do qual o mundo é interpretado.

Os filósofos da época não se preocupavam em explorar o mundo concreto que permaneciam à margem das ciências. Como se todas as atividades humanas fossem, no limite, simples esboços do conhecimento científico, enquanto a filosofia não passava do conhecimento da atividade espiritual operando na ciência. É contra este tipo de pensamento que Merleau-Ponty e toda uma geração de pensadores toma frente, Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, dentre outros. Não se trata de afirmar que Merleau-Ponty não estivesse convencido da existência da representação científica do mundo, mas para ele tal representação deve ser recoloca em seu lugar. A este propósito Merleau-Ponty nos diz que “o vigor da razão está ligado ao reconhecimento de um sentido filosófico que, é verdade, justifica a expressão científica do mundo, mas em sua ordem, em seu lugar no todo do mundo  humano”[1] . Assim sendo, a representação científica do mundo não é a única nem a mais importante: o mundo vivido não deve ser considerado como menos real que tais representações, e estas devem ser situadas em relação ao mundo, o qual deve ser descrito por ele mesmo. Ao fazê-lo, o filósofo descobre que todas as distinções estabelecidas pela tradição são abstratas e obscuras. Desde então, o papel da filosofia torna-se o de “encontrar o liame com o mundo que precede o pensamento propriamente dito. […] De maneira geral, a filosofia reencontra esta ‘ espessura’ e esta relação com os problemas concretos que ela perdeu ao se fazer simples reflexão sobre a ciência”[2] . 

 
Este novo modo de pensar é fruto de uma situação muito peculiar. Pode-se dizer que a guerra forçou os intelectuais a compreender o mundo em que viviam, e que as categorias empregadas para tal trabalho eram totalmente inadequadas. A guerra operou uma espécie de conversão do pensamento em direção ao mundo. A descoberta da sociedade real carregada com o peso da história suscitou uma mutação filosófica decisiva: a nova geração de filósofos precisou se dar conta de que a consciência se manifesta em ações, e que ela determina o exterior e vice-versa. Momento de uma aquisição muito grande para a ordem da reflexão filosófica: “a liberdade não está aquém do mundo, mas em contato com ele”[3] .

 

3. SITUAÇÃO DE CRISE ENTRE FILOSOFIA E CIÊNCIA E RETORNO AOS FENÔMENOS

 
Desde sua juventude,  Merleau-Ponty combate a ideologia do “pequeno racionalista” (data dos idos de 1900), que é a explicação do ser pela ciência. Ao deixar-se guiar por este mote, o pequeno racionalista pensa não ceder a nenhuma mitologia, pois fala em nome da própria razão. Para essa ideologia, haveria uma “imensa Ciência já feita nas coisas”, que a ciência efetiva terminaria, cedo ou tarde, por descortinar, e não nos deixaria “mais nada por perguntar”, já que a ciência teria poder de alcançar o próprio Ser, as leis mesmas segundo as quais o mundo é feito. A ciência da natureza, para o pequeno racionalista, era pura e simplesmente a medida do Ser.

Falava-se então, “com entusiasmo ou com angústia”, da criação da vida em laboratório  e   da   fórmula que nos desvelaria o mundo inteiro   como   um grande Processo ( S, 185), entre outros “mitos” [4] .

Merleau-Ponty contrapõe a esta tendência interpretativa o “grande racionalismo”do século XVII, momento privilegiado, rico de uma “ontologia viva”. O grande racionalista, embora tivesse criado a ciência da natureza, não a tornou medida do ser, nunca esteve em questão para os pensadores deste século tomar os resultados da ciência como o cânon da ontologia; na verdade, eles admitiam que a filosofia se projetasse sobre a ciência “sem ser sua rival”: o objeto da ciência era considerado apenas um “grau do Ser” e se justificava “em seu lugar”. Eles situavam a ciência como um “sistema intencional no campo total de nossas relações com o Ser”. O grande racionalista soube manter a tensão entre o exterior e o interior, sem reduzir um ao outro, conseguiu pensar um acordo entre ambos sem cair em uma “ontologia cientificista”( ou em um idealismo transcendental) - e ele o conseguiu à medida que o acordo entre o exterior e o interior se fez “pela mediação de um infinito positivo, ou infinitamente infinito”(S, 187). Para Merleau-Ponty, a solução proposta por este século a estas questões não é mais aceitável, mas trata-se, para ele, de retomar mais radicalmente sua tarefa[5]
 
 
A razão conceitualmente tratada transforma-se quando passa a andar junto com a desrazão. Isto significa que a razão que agora interessa ao filósofo não é desencarnada e não flutua fora do mundo concreto. Trata-se de “formar uma nova ideia de razão”, razão alargada “capaz de compreender o que em nós e nos outros precede e excede a razão”[6] . Para isto, exige-se o abandono do solo de universalidade que caracteriza o “universal de sobrevoo de um método estritamente objetivo”. Merleau-Ponty não abandona a pesquisa da universalidade, mas procura “uma segunda via em direção ao universal”,  “universal lateral”ou concreto[7] .

 
Merleau-Ponty entende que a solução para a crise entre filosofia e ciência consiste em afastar a situação de exclusão e incompreensão recíproca entre ambas. Para Merleau-Ponty, não seria correto interpretar a consciência como possuindo uma liberdade absoluta, momento em que nada estaria  fora do sujeito pensante, já que seria ele quem dá sentido a tudo - predomínio da atividade do sujeito incondicional, intemporal e absolutamente livre. Mas também não seria correto determinar completamente o homem excluindo toda liberdade - redução do sujeito a um objeto completamente determinado e condicionado. Há, todavia, momentos importantes nestas duas abordagens: do lado da filosofia é preciso chamar a atenção para o fato de que o homem não é nem produto do meio, nem da história; além disto, para que haja o saber é preciso haver um sujeito pensante. Já a ciência ensina que o pensamento tomado nele mesmo não diz quase nada sobre a realidade humana. Por um lado, encontramos um saber empírico rico, mas cego, e, por outro, a consciência filosófica que conhece a liberdade como peculiaridade humana, mas não sabe de onde vem e diante da qual os acontecimentos não têm sentido.

 
A antinomia em questão nasce graças à usura das categorias tradicionais para compreender a experiência, são elas que devem ser revisadas para por fim à crise. Merleau-Ponty recua a uma “terceira dimensão”, “meio comum” entre filosofia e ciência: atividade e passividade deixam de ser contraditórias[8]. Merleau-Ponty reconhece, em relação à consciência tal como interpretada pela filosofia tradicional, uma "maneira de ser muito particular, o ser intencional, que consiste em visar todas as coisas e não permanecer em nenhuma”[9] . Quanto à ciência, ela nos ensina que não há como passar por cima de “nossas amarras corporais e sociais, nossa inserção no mundo”; se o fizéssemos, “renunciaríamos a pensar a condição humana”[10] . Uma vez revelada a ambiguidade da experiência - o modo de ser intencional da consciência e o fato de que ela esteja  sempre em situação - cabe ao filósofo “compreender as duas coisas ao mesmo tempo”[11] . Só assim a antinomia desaparece, afinal, a relação entre sujeito e o objeto não é uma relação de conhecimento, mas uma relação de ser “segundo a qual paradoxalmente o sujeito é seu corpo e sua situação, e, de alguma forma, sua permuta”[12] .

 
Resumia-se isto na época em um lema que se tornou bastante conhecido: vers le concret ( em direção ao concreto). O concreto ganha frente em relação ao abstrato e passa a ser aquilo que o filósofo persegue; é preciso ter consciência do objeto no mundo, na experiência natural e histórica. O que salta aos olhos é a recusa da filosofia em exercer o domínio e o controle de si mesma, de outrem e do mundo em geral. Mais: as cisões operadas pelo pensamento de sobrevoo são claramente recusadas em nome da experiência. Nesse sentido, o que interessa é a relação de ser no nível do vivido e não no nível do conhecido. A filosofia  e a ciência tradicionais deixaram escorrer por entre os dedos o mundo dos fenômenos, elas deixaram de apreender a relação original existente entre o sujeito da percepção e o mundo percebido, e isto porque atribuem a esta relação uma significação vinda do exterior e não uma significação imanente ao sensível.

 
Surge daí o “primado da percepção” na  filosofia merleau-pontiana. O filósofo quer recuar a uma camada originária da experiência graças à qual o próprio mundo da ciência é constituído. Trata-se de um retorno aos fenômenos que nos ensina o seu próprio funcionamento e que funda de uma vez por todas, o ponto de vista que faz com que as descrições da percepção sejam verdadeiras. Este retorno aos fenômenos requer uma inversão dos pontos de vistas tradicionais, os quais perdem o “logos em estado nascente”, pois se atém ao resultado do processo percebido - o objeto constituído - e não traçam sua gênese. Na Introdução à Fenomenologia da Percepção - “Os prejuízos clássicos e o retorno aos fenômenos”- Merleau-Ponty abre um campo fenomenal que justifica o sentido do retorno ao vivido aquém do mundo objetivo: tal retorno é compreendido como  “o primeiro ato filosófico” [13]. Este procedimento revela, justamente, a concepção merleau-pontiana da redução fenomenológica, pondo em relevo uma significação aderente ao mundo.

Merleau-Ponty, de início, começa realizando uma fenomenologia da percepção, mas isso é apenas o começo, para uma “maneira nova de ver o ser"[14] , ele seguirá em frente em direção a “verdade explícita”, a qual é encontrada no nível da linguagem, do conceito, da cultura.                         

 

REFERÊNCIAS

 
Chauí, M., Experiência do Pensamento. Ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. S.P., Martins Fontes, 2002.

Carmo, Paulo Sérgio, Merleau-Ponty Uma Introdução. S.P., Educ, 2011.

Huisman, Denis. Dicionário dos Filósofos. Trad. Ivone C. Benedetti e outros. S.P., Martins Fontes, 2004.

Huisman, Denis. Dicionário de Obras Filosóficas. Trad. Ivone Castilho Benedetti.S.P.. Martins Fontes,2002.

Lalande, André. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. Trad. Fátima Sá Correia e outros. S.P., Martins Fontes, 1999.

Merleau-Ponty, M., Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos Alberto R. Moura. S.P., Martins Fontes, 1994.

Merleau-Ponty, M., Signos. Trad. Maria E. Pereira. S.P.: Martins Fontes, 1991, p.249.

Merleau-Ponty, M., Coleção “Os Pensadores”. Trad. M. Chauí e outros. S.P., Abril Cultural, 1. ed.,1975.

Merleau-Ponty, M., Ciências do Homem e Fenomenologia. Trad. Salma Tannus Muchail.S.P., Saraiva,1973.

Moutinho, L. Damon Santos. Razão e experiência. Ensaio sobre Merleau-Ponty. S.P., Unesp/Fapesp,2006.



[1] Merleau-Ponty, M., Signos. Trad.Maria E. Pereira. S.P.: Martins Fontes, 1991, p. 249.
[2] Merleau-Ponty, M., Parcours deux-1951-1961.Lagrasse : Verdier, 2000, p.66.
[3] Merleau-Ponty, M., Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1966, p.261.
[4] Moutinho Luiz Damon Santos. Razão e experiência. Ensaio sobre Merleau-Ponty. S.P. UNESP/Fapesp,2006, p. 28.
[5] Merleau-Ponty, M., Signos. Trad. Maria E. Pereira. S.P.: Martins Fontes, 1991, pp. 185-191.
[6] Merleau-Ponty, M., Signos. Trad. Maria E. Pereira. S.P.: Martins Fontes, 1991, p.150.
[7] Merleau-Ponty, M., Signos. Trad. Maria E. Pereira. S.P.: Martins Fontes, 1991, p. 150.
[8] Merleau-Ponty, M., Fenomenologia da percepção. Trad. bras. Carlos Alberto R. Moura. S.P., Martins Fontes, 1994, p.13.
[9] Merleau-Ponty, M., Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1966, p.124.
[10] Merleau-Ponty, M., Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1966, p.125.
[11] Merleau-Ponty, M., Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1966, p.126.
[12] Merleau-Ponty, M., Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1966, p.125.
[13] Merleau-Ponty, M., Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos Alberto R. de Moura. S.P.: Martins Fontes, 1994, p.89.
[14] Merleau-Ponty, 1959, Colóquio sobre o termo “Estrutura”, apud Chauí, M. Experiência do pensamento. Ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty, p. 197.