ODISSÉIA E A TEOLOGIA HOMÉRICA
(por Ândrea
Cristina Pimentel Palazzolo)
Resumo: Este artigo pretende comentar a Odisséia de
Homero sobre a perspectiva da Teologia Homérica abordando mais precisamente a
questão Moral e do “Maravilhoso”, baseado em Bernard Knox. Afinal, será que os Deuses da Odisséia
respeitam os códigos de conduta humana? Será que continuam decidindo sobre o
destino dos mortais?
Ao contrário da
Ilíada, a Odisseia é um épico de base totalmente doméstica. À exceção das
viagens, estamos com os pés no chão, seja nas copiosas e frequentes refeições
no palácio ou na domesticidade rural da cabana de Eumeu. No entanto, o
poema baseia-se firmemente no que poderíamos chamar de “ tempo heroico”, uma
época em que os homens eram mais fortes, mais corajosos e mais eloquentes do
que hoje, e as mulheres mais bonitas, mais poderosas e inteligentes do que têm
sido desde então, e os deuses, tão
próximos da vida humana e tão envolvidos com os indivíduos, seja na afeição ou
na raiva, que intervinham em sua vida e lhes apareciam em pessoa.
A questão da
Moral e do “Maravilhoso”(intervenção Divina):
A tendência dos
críticos modernos de enfatizar o aspecto singular do heroísmo da Odisseia, às
custas e muitas vezes com a exclusão de aspectos reconhecidamente aquilianos da
vingança heroica que finalizam o épico, equipara-se a uma tendência a perceber novos desenvolvimentos no Olimpo, na natureza
e na ação dos deuses, especialmente Zeus.
O que aconteceu, segundo Alfred Heubeck, foi nada
menos que uma “ transformação ética”: “ Com discernimento e sabedoria, Zeus
agora controla o destino do mundo de acordo com princípios morais, o que, por
si só gera e preserva a ordem. Falta pouco ao pai dos deuses para tornar-se o
verdadeiro soberano do mundo” ( I, p.23).
Independentemente
do fato de que se possa duvidar se Zeus em algum momento supriu esse pouco que
faltava, é difícil encontrar provas
dessa transformação ética na Odisseia. Na reunião no Olimpo com a qual o
poema se inicia, Zeus discute o caso de Egisto, que, desconsiderando um aviso
transmitido por Hermes, seduziu Clitemnestra e, com a ajuda desta, assassinou
Agamêmnon.
“ Vede bem”, diz Zeus, como os mortais acusam os
deuses!
De nós (dizem) provêm as desgraças, quando são eles,
pela sua loucura, que sofrem mais do que deviam! (I.32-4)
Não há, como
aponta o próprio Heubeck, “ nada de novo
nesse discurso moralizante”. Zeus admite que grande parte do sofrimento da
humanidade é responsabilidade dos deuses; sua queixa é que os homens aumentam
esse sofrimento com suas próprias iniciativas imprudentes.
O conselho no
Olimpo apresenta-nos uma situação muito familiar desde a Ilíada: deuses opondo-se fortemente uns aos outros
com respeito ao destino dos mortais.
Os modelos de
diplomacia olímpica da Ilíada reaparecem na Odisseia. Ulisses, ao cegar
Polifemo, filho de Posêidon, provocou a ira vingativa do deus que governa as ondas.
Quando o herói
encontra Atena na praia de Ítaca pergunta-lhe, bruscamente, por que esta o
abandonou em suas andanças:
nunca mais te
vi, ó filha de Zeus, nem na minha nau te senti/ embarcar, para que afastasse,
para longe o sofrimento (XIII.318-9).
A resposta da
deusa, curta, obviamente constrangida, dividida entre os efusivos elogios ao
herói e a retirada da neblina para mostrar a Ulisses que ele de fato está em
casa, é um reconhecimento da concessão a uma força superior.
Mas não quis lutar contra Posêidon, irmão de meu pai
(XIII.341),
diz ela.
E mesmo essa
desculpa é evasiva: ela não faz nenhuma tentativa de explicar por que não ajudou
Ulisses antes que este incorresse na fúria de Posêidon. Só depois de obter a
concordância de Zeus ela toma as medidas que conduzem Ulisses de volta a casa.
Propõe a Zeus que Ulisses seja libertado de seu confinamento de sete anos na
ilha de Calipso, e o faz durante uma reunião no Olimpo da qual Posêidon
encontra-se ausente; ele está longe, nos confins da terra, recebendo uma
homenagem dos etíopes.
Na realidade,
Posêidon é enganado; quando retorna e vê Ulisses aproximando-se da costa de
Esquéria em sua jangada, fica furioso.
Ah, decerto os deuses mudaram de intenção a
respeito/ de Ulisses, enquanto eu estava entre os Etíopes (v.286-7).
Atena não o
desafiaria abertamente; ela age por trás de suas costas.
Posêidon sabe
que, uma vez que chegue a Esquéria, está
destinado / que (Ulisses) escape à servidão da dor que sobre ele se abateu (v.288-9) e que, nesse caso, os feácios o
enviarão para casa em uma nau de rapidez sobrenatural, carregada de tesouros
maiores do que tudo que ele conseguiu em Troia e perdeu no mar. O poder de
Posêidon foi desafiado, sua honra, ofendida, e alguém tem de pagar por isso.
Ulisses está agora fora de seu alcance, mas os feácios são outra questão. Zeus pai, eu nunca mais serei honrado entre
os deuses /imortais , queixa-se ele, visto
que certos mortais não me dão honra alguma:/ os Feácios, que são da minha
própria linhagem (XIII.128-30). Zeus
assegura-lhe que não há perda de respeito por ele no Olimpo, e quanto aos
mortais...
Se algum
dos homens, cedendo à violência e à força, não te honrar, podes sempre praticar
vingança. Faz o que quiseres, o que ao
coração te aprouver. (XIII.143-5)
Posêidon explica
seu objetivo:
(...) Mas agora a bela nau dos Feácios, que regressa
de transportar Ulisses, quero estilhaçar no mar brumoso, para que se abstenham
e desistam de transportar homens; e a sua cidade rodeá-la-ei com uma montanha
enorme e circundante. ( XIII.148-52)
Zeus aprova e
sugere um requinte: transformar a nau e, consequentemente, sua tripulção de 52
jovens – que já antes provaram ser os melhores ( VIII.36) – em rocha enquanto
os feácios assistem sua chegada ao porto. Posêidon apressa-se a executar o
plano e, ao ver isso, o rei Alcino reconhece a realização de uma profecia, que
também anunciou que a cidade seria rodeada por uma grande montanha. Ele conduz
seu povo ao sacrifício e à oração para Posêidon, na esperança de obter sua
misericórdia e prometendo que os feácios nunca mais dariam passagem marítima a
homens que chegassem na sua cidade.
É o fim da
grande tradição feácia de hospitalidade e ajuda ao estrangeiro e viajante.
Essa ação de Zeus lança uma luz perturbadora na
relação entre os ideais humanos e a conduta divina. Se há um critérios moral
permanente no universo da Odisseia, é a assistência, por parte dos ricos e poderosos,
aos estrangeiros, andarilhos e mendigos.
Esse código de hospitalidade é uma moralidade universalmente reconhecida. E seu agente
divino, assim o creem todos os mortais, é o próprio Zeus, Zeus xeinios,
protetor dos estrangeiros e suplicantes. Seu nome e seu atributo são invocados
repetidas vezes por Ulisses, e também por Nausica, o ancião feácio Equeneu,
Alcino e Eumeu.
De todos os
muitos anfitriões avaliados segundo esse padrão
moral, os feácios destacam-se como os mais generosos, não apenas na régia
acolhida que proporcionam a Ulisses, como também na rápida condução do herói a
sua própria pátria, ajuda que oferecem a todos os viajantes que atingem a
costa.
E agora são
punidos pelos deuses precisamente por esse motivo, visto que sua magnanimidade
fez com que Posêidon achasse que sua honra – a delicada sensibilidade à opinião
pública que em Aquiles ocasionou dez mil desgraças aos aqueus e levou Ájax ao
suicídio, alimentando-lhe a rabugice no Hades – havia recebido um golpe
intolerável. Aqueles que o ofenderam tem de ser punidos ainda que a punição
revele a mais completa indiferença ao único
código de conduta moral que prevalece no perigoso universo da Odisseia.
Confrontando com
a ira de Posêidon contra os feácios, Zeus, protetor dos estrangeiros, associa-se
entusiasticamente a seu poderoso irmão em sua ameaça. Ele não apenas sugere o
requinte de transformar a nau em pedra, como aprova a intenção de Posêidon de
isolar os feácios para sempre do mar, assentando uma imensa montanha ao redor
da cidade.
Homero não
revela o que aconteceu: quando contemplamos os feácios pela última vez, estão
prestes a engajar-se em sacrifícios e orações a Posêidon, na esperança de que
este vá poupá-los, Mas uma coisa fica clara: encerraram-se a generosa
hospitalidade e a condução dos estrangeiros a seu destino.
Um deus forçou
essa decisão; sua punição vingativa foi completa aprovada por Zeus. Zeus pode por vezes agir como protetor dos
suplicantes, mendigos e andarilhos, mas as preocupações e concepções humanas de
justiça tornam-se insignificantes quando a manutenção do prestígio de um deus
poderoso está em xeque.
Nesse ínterim,
Ulisses, adormecido em uma praia de Ítaca ao lado de seu tesouro, desperta e
depara-se com uma paisagem de que não reconhece – Atena ocultou-a com neblina.
Ele chega à conclusão de que a tripulação feácia largou-o em alguma praia
estrangeira:
(...) não cumpriram a palavra.
Que Zeus, deus dos suplicantes, os castigue; ele que
todos
os homens observa e castiga quem transgride.
(XIII.212-4)
Ele não sabe, mas
o Zeus dos suplicantes já pagou na mesma moeda. Não por terem quebrado sua
promessa, mas por terem cumprido com sua palavra.
Posêidon e Zeus não são os únicos deuses do Olimpo a
mostrar a indiferença aos códigos de conduta e ao senso de justiça humanos. Mais adiante
no poema, Atena associa-se a eles. Há, entre os pretendentes, um homem decente,
Anfínomo, que com suas palavras/ a
Penélope mais agradava, pois era compreensivo (XVI.397-8). É ele que
aconselha os pretendentes a rejeitar a proposta de Antino de emboscar e
assassinar Telêmaco em Ítaca, agora que este se esquivou do navio que o
esperava em uma emboscada e voltou para casa em segurança. E é Anfínomo que,
após a vitória de Ulisses sobre Iro no pugliato, bebe à saúde dele em uma taça
dourada e declara: Sê feliz, ó pai
estrangeiro! Que no futuro possas encontrar/ a ventura, pois agora tens na
verdade sofrimentos em demasia (XVIII.122-3).
O herói tenta
salvá-lo do massacre iminente. Previne-o seriamente de que Ulisses logo
retornará, está bem próximo de casa, e que haverá derramamento de sangue. Este
é um terreno perigoso. Ele chama Anfínomo pelo nome; como aquele mendigo
esfarrapado, que tinha acabado de chegar, podia conhecê-lo? Ulisses vai ainda
mais longe. Anfínomo, parece-me que és um
homem prudente ,diz. Assim já era
também teu pai. É um deslize que ele tenta imediatamente encobrir,
apressando-se a acrescentar: da sua nobre
fama ouvi falar (XVIII.I25-6). Homero deixou claro o grande risco que
Ulisses está correndo ao tentar salvar a vida de Anfínomo, e ressalta sua
sinceridade ao fazê-lo rezar pedindo a intervenção divina a favor do
pretendente:
(...) que um deus
Te leve daqui para tua casa, para que não o
encontres
Quando esse homem regressar à sua terra pátria amada
( XVIII.I46-8)
Longe de despachá-lo para casa, um poder divino já
proferiu sua sentença: Também a ele/
Atena atou os pés, para ser chacinado pela lança de Telêmaco ( XVIII.155-6).
Anfínomo é o
terceiro pretendente a morrer, imediatamente após os dois principais vilões,
Antino e Eurímaco.
Conclusão:
Quando não estão decidindo o destino dos mortais, os
deuses vivem uma vida própria no Olimpo,
(...) onde dizem ficar a morada eterna
dos deuses: não é abalada pelos ventos, nem molhada
pela chuva, nem sobre ela cai a neve. Mas o ar
estende-se
límpido, sem nuvens; por cima paira uma luminosa
brancura.
Aí se aprazem os deuses bem-aventurados, dia após
dia. (VI.42-6)
E muitas vezes, conforme a conveniência, demonstram
indiferença aos códigos de conduta e ao senso de justiça humanos.
Em ambos os épicos, os deuses desfrutam seus
prazeres e acalentam suas intrigas no Olimpo, ao passo que, na terra, decidem o
destino dos mortais e suas cidades com escassa consideração para com as
concepções humanas da justiça divina, sempre que aquilo que está em risco é o
interesse ou o prestígio de um deus importante.
Os seres humanos podem, aliás, como os pretendentes
e a tripulação de Ulisses, ocasionar infortúnios para si mesmos e “ sofrem mais
do que deviam” (I.34), mas os infortúnios também podem sobrevir àqueles que,
como os feácios e Anfínomo, são admiráveis segundo os padrões humanos e, em
ambos os casos, é um deus que sela seu destino.
Referências:
1) Anotações de
classe;
2) Homero,
Odisseia, Clássicos, tradução e prefácio de Frederico Lourenço, editora Penguin
Companhia das Letras- 2011;
3)Abbagnano Nicola, Dicionário de
Filosofia, editora Martins Fontes – 2012;
4) Huisman Denis, Dicionário dos
Filósofos, editora Martins Fontes – 2004.
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