CRITICAS À TEORIA DE
BRUNO SNELL SOBRE SUA CONCEPÇÃO DO HOMEM EM HOMERO
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)
Resumo: Este artigo é uma continuação do anterior que tratou sobre concepção do Homem em Homero segundo Bruno Snell. Neste,
porém, apresenta-se algumas críticas a teoria de Snell como, por exemplo,
uma crítica ao
seu polêmico
determinismo evolucionista.
1. Introdução
Segundo Bruno Snell, Homero consideraria o
homem como o resultado de influências externas e como fonte de novas influências. Na época em que teriam sido escritos os poemas
homéricos, a noção de intelecto, tal como a conhecemos,
ainda não
existiria. Como seria, então, o homem antes da descoberta da mente?
Esse ser, representado pelo herói épico, não teria unidade psicológica e mesmo a percepção de uma unidade física, ele ainda não veria a si mesmo como um indivíduo capaz de volição ou de qualquer forma de deliberação.
A prova da existência desse ser fragmentado é buscada por Snell no vocabulário do dialeto homérico, no qual se sublinha a ausência de uma série de termos que definiriam o homem como
indivíduo. O
autor conclui que, uma vez não existindo palavras específicas para, por exemplo, o corpo vivo
unificado, esse conceito também não existiria.
O estudioso defende que o pensamento homérico, se comparado àquele dos períodos posteriores, é primitivo. Mas, se assim fosse, seria muito
mais provável e lógico a percepção do corpo como uma unidade, visto que é de tal forma que se apresenta à percepção, como membros fisicamente conectados que
se movem harmoniosamente. A teoria de que o corpo seria composto por partes
independentes necessita de um raciocínio muito mais sofisticado, por que mais distante da
percepção
imediata.
Além disso, Snell não encontra termo para intelecto ou alma e
conclui que essas noções só viriam a ser em um período posterior da história Grega. O termo psychê, que tardiamente
será
identificado com o nosso
conceito de alma, refere-se em Homero ao sopro de vida e só é
utilizado quando deixa o corpo
no momento da morte. Não há o uso de psychê
como tendo uma função no corpo vivo.
Para Snell, outra consequência do fato dos personagens não serem indivíduos é que eles não têm uma percepção dos próprios sentimentos, ou das sensações como sendo algo particular,
experimentado diferentemente pelos homens. Assim, quando um personagem de
Homero encontra-se entre duas possibilidades de decisão , não veria a si mesmo como experimentando uma
dúvida, mas como se duas partes de si mesmo
representadas em geral pelos órgãos, não concordassem entre si.
Novamente, Snell supõe que o homem homérico, ao invés de simplesmente se ver como em dúvida entre duas alternativas, imagina uma
opção muito mais complexa, como se uma parte de
si mesmo estivesse em discordância com o resto, não no sentido abstrato como nós utilizaríamos tal imagem, mas no sentido literal.
Ora, é verdade afirmar que a linguagem homérica tende a utilizar imagens concretas
para representar situações, para a nossa percepção, mas certamente não é a prova da inexistência de reflexão ou da existência de uma percepção da realidade tão tortuosa. Sob alguns aspectos como, por
exemplo, o do enorme vocabulário para os termos relacionados à visão, que Snell toma como uma prova de que o
homem homérico
fixa-se mais no órgão, no caso os olhos, do que na função, visão, seria mais uma prova de sofisticação estética que de primitivismo de concepção. A diferença entre o uso de dérkesthai, de leússo, ou ainda óssesthai, todos significando ver e todos exclusivos do dialeto
homérico, por exemplo, ocasiona um efeito poético sutil, que só vem a enriquecer os recursos expressivos.
2. Williams e Gill e a crítica
Snell
As teorias de Bruno Snell e de outros que
seguiram a mesma linha evolutiva na interpretação da literatura, cultura e filosofia grega
foram muito criticadas por autores como Bernard Williams (1993) e Christopher
Gill (2002), por exemplo. Essas teorias foram classificadas por esses autores
como de tipo progressistas ou neocartesiana. A principal objeção de Gill e Williams a essas teorias vem do
fato de elas pressuporem uma superioridade da nossa cultura em relaçäo à grega, sobretudo no tocante à épica homérica. Os progressistas, assim tomam a
cultura grega como primitiva, e a vêem como muito diferente da nossa.
A abordagem dos autores supracitados, ao
contrário,
procuram aproximar-nos dos gregos pela assunção de que aquilo que vemos como alteridades é na realidade uma percepção equivocada não da cultura grega, mas da nossa. A revisão dos conceitos de volição, escolha, ação e livre arbítrio entre os gregos teria a importante função de
lançar nova
luz sobre a nossa própria
concepção a
respeito desses argumentos. Williams afirma que:
In criticizing what I call progressivism, I am not saying that there has been no
progress. Indeed, there was progress in the Greek word itself, notably to the
extent that the idea of arête,
human excellence, was freed to some extent from determination by social
position. Still more there are differences, differences we must approve,
between ourselves and the Greeks. The question is how these differences are to
be understood. My claim is that they cannot best be understood in terms of a
shift in basic ethical conceptions of agency, responsibility, shame, or
freedom. Rather, by better grasping these conceptions themselves and extent to
which we share them them with antiquity, we may be helped to recognized some of
our illusions about the modern word, and through this gain a firmer hold on the
differences that we value between ourselves and the Greeks. (pag.06/07)
Criticando o que eu chamo de progressivismo, não estou dizendo que não houve progresso. Na verdade,
houve progresso no próprio mundo grego, notavelmente na medida em que a ideia de arte,
excelência humana, foi libertada, de certo modo, da determinação pela posição social. Ainda mais, há diferenças que temos de admitir, entre nós mesmos
e os gregos. A questão é
como essas diferenças são entendidas. Minha demanda é que
elas não podem ser melhor entendidas em termos de uma mudança em conceitos básicos de ética e
ação, responsabilidade, vergonha ou liberdade. Ao contrário, compreendo melhor essas mesmas concepções e
em que medida as partilhamos com a antiguidade, podemos ser auxiliados a
reconhecer algumas das nossas ilusões sobre o mundo moderno, e através disso ganhar uma opinião mais firme sobre as diferenças que avaliamos entre nós e os gregos.
Em minha opinião, são válidas as críticas
de Willians e Gill no tocante a essa dita “ evolução “ do conceito de individualidade na cultura grega. Snell equivoca-se ao
considerar que na épica não há decisão, nem auto percepção ou liberdade de ação para o indivíduo. Assim sendo, questionável é o determinismo evolucionista de Snell. Nota-se que, em mais de um passo o autor
procede como se o pensamento grego tivesse predeterminado o pensamento europeu.
Senão vejamos:
A concepção homérica do homem, tal como a podemos captar na linguagem de Homero, não só
é primitiva mas, ao mesmo tempo, olha o futuro-
constitui a primeira etapa do pensamento europeu.
Porém pergunto, é justo atribuir ao homem homérico “ mente primitiva” oposta ao “ pensamento racional” ?
3. Albin Lesky frente a Snell
O crítico Albin Lesky , na sua Gottliche und
menschliche Motivação im
homerischen Epos, 2, ressalta que, a falta de uma palavra para “ eu” não
significa que o conceito de identidade pessoal não existe. Pelo contrário, ele observa que o nome pessoal de “Aquiles" ou “ Agamenon"é suficiente para denotar um self. Argumenta
que, há numerosos
casos em que as personagens fazem escolhas sem interferência divina. Lesky, op. cit. p.14, cita,
como exemplos de consideração fundamentada sem interferência divina, Il. 13, 458:
Assim falou; e Deífobo refletiu com a mente dividida
, se haveria de socorrer-se de algum dos magnânimos Troianos depois de arredar pé, ou
se entraria no combate sozinho. Enquanto assim refletia, isto lhe pareceu a
melhor decisão: dirigir-se a Eneias.
Il.14, 23:
Enquanto assim refletia, foi isto lhe pareceu mais proveitoso:
ir ao encontro do Atrida. Entretanto os outros matavam-se uns aos
outros no combate.
Od.5, 474:
Mas se, galgada a ribanceira, busco o bosque umbroso onde dormir,
vencido pelo doce torpor da sonolência, posso terminar na boca de uma
fera. E pareceu melhor a Odisseu que assim pensava dirigir-se para a
floresta, não distante do riacho, plenivisível.
Od.6, 145:
Pensando assim, concluiu que o mais conveniente seria rogar de longe com palavras doces: não a repugnaria o toque nos dois
joelhos?
Od.15, 204:
Assim falou e o filho de Nestor buscou no coração o justo cumprimento. Ensimesmado, pareceu melhor guiar às naus velozes os corcéis, no litoral talássio;
Od.18, 93:
E Odisseu pluripadecido fica em dúvida:
golpeá-lo até
que, ao chão, o deixe o alento da ânima-psiquê, ou só
prostrá-lo, abrandando o baque?
E refletindo assim, prefere atenuar a
força, a fim de que os aqueus não o pudessem reconhecer.
Od. 24, 239:
Enquanto refletia , esta lhe pareceu a melhor decisão:
pô-lo primeiro à prova com palavras reprovadas.
4. A Guisa de Conclusão
Uma avaliação equilibrada com argumentos e contra
argumentos, faz da hermenêutica o objeto em questão da concepção do homem em Homero. A importância e complexidade do trabalho é árduo e desafiador, nada simplista ou de
apenas um comentador, mas de vários. Temerário seria ficar apenas no simples primitivismo da
concepção de Snell,
ou apenas no seu aspecto evolucionista.
Lido, porém, com a devida cautela, temos em Bruno
Snell um investigador sério e útil , para quem se interessa pelos estudos helênicos.
Referências
1) CHANTRAINE, Pierre. Dictionnnaire étymologique de la langue grecque. Paris:
Klincksieck, 1999.
2) GILL, Christopher. Personality in Greek
Epic, Tragedy and Philosophy. The self in dialogue .Oxford: Clarendon Press,
1996 reprinted 2002.
3)GENTILI, Bruno. Direttore responsabile.
Quaderni Urbani di cultura classica. Roma. Editore Fabrizio Serra, 2012.
4) SNELL, Bruno. A Descoberta do Espírito. A Concepção do Homem em Homero. Edições 70 Lisboa.
5) WILLIAMS, Bernard. Shame and Necessity.
Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press, 1993.
6)
SCHULLER, Donaldo. Revista USP, SP, n.53, p. 196-197 , março/maio 2002.
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