sábado, 12 de dezembro de 2015

Deleuze leitor de Nietzsche - PARTE II


Vontade de Potência  - como princípio para a síntese das forças
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)

 

Resumo: Este artigo pretende abordar a leitura deleuziana sobre Nietzsche, in casu o conceito de Vontade de Potência extraído do livro Nietzsche e a Filosofia. Constataremos, na perspectiva a ser desenvolvida, que a vontade de potência é princípio para a síntese das forças.

  

I- Introdução

 

Na filosofia contemporânea, Gilles Deleuze ocupa lugar insólito, pois está na periferia das grandes correntes de pensamento como o marxismo, a psicanálise ou mesmo o estruturalismo”. Difícil é atribuir-lhe um lugar na história recente do pensamento, pois como ele mesmo afirmava está “fora” e “ entre”, um nômade. Foi ele um dos primeiros que na França dos anos 60 sentiu a necessidade de um pensamento resolutamente anti-hegeliano.

 

 

Podemos dividir em três períodos a obra de Gilles Deleuze. O primeiro é composto por uma série de monografias; vai de 1953 ( Empirismo e Subjetividade) a 1968 ( Espinosa ou o Problema da Expressão). Deleuze não fala ainda em seu próprio nome, mas trabalha a partir de filósofos que lhe parecem exceder sob todos os aspectos a história da filosofia: Hume, Bergson, Nietzsche e mesmo Kant.

 

Em 1969, tem início para ele um novo período com a publicação, quase simultânea, de Diferença e Repetição e Lógica do Sentido. Se o primeiro ainda dissimula por trás de um rigor clássico um conteúdo que já não o é, o segundo, ao contrário, composto em 31 séries, extrapola em muitos os cânones universitários vigentes na época, com seu interesse pelas meninas e pelos esquizofrênicos, com a reflexão profunda sobre a linguagem e a literatura. Autores como Klossowski, Gombrowicz, Lewis Carrol e mesmo James Joyce são abordados, não mais como exemplos a sustentarem o discurso do filósofo, mas por si mesmos.

 

No entanto, a grande ruptura situa-se em 1972, com Anti-Édipo, que dá início a outro período, marcado pela colaboração do psicanalista Félix Guattari. A partir de então,  seus livros pretendem ser máquinas cujos únicos critérios são: como funciona, para que serve e a quem? O que equivale a dizer que o problema não é mais a circulação do sentido, mas sim aquilo que Deleuze chama de efetuação prática do múltiplo: não mais falar do múltiplo, mas fazê-lo.

 

 

II - Vontade de Potência - como princípio para a síntese das forças

 

 

Este conceito de força vitorioso,   graças ao qual nossos físicos criaram Deus  e   o universo, precisa de um complemento; é preciso atribuir-lhe um querer interno que chamarei a vontade de potência[1] .

                       

Para Deleuze o texto acima é um dos textos mais importantes que Nietzsche escreveu sobre sua concepção de vontade de potência.  Na interpretação deleuziana  a vontade de potência está na força, mas de um modo especial, ela é concomitantemente complemento da força e algo interno. Ela não ocupa a posição de um predicado, ao contrário, ela é quem quer. Tampouco delega ou aliena para outrem, mesmo que esse outrem seja a força[2] .

 

 Lembra Deleuze que, a força está sempre em relação com outra força e que a essência da força é sua diferença de quantidade com outras forças, essa diferença se exprime como sua qualidade, sendo que essa diferença de quantidade remete, necessariamente, a um elemento diferencial das forças, que é também o elemento genético das qualidades dessas forças. Assim , a vontade de potência é elemento genético, diferencial e genealógico da força[3] .

 

A vontade de potência é o elemento do qual decorrem, ao mesmo tempo, a diferença de quantidade das forças postas em relação e a qualidade  que , nessa relação  cabe  a cada força[4] .
 
 

Deleuze assinala a natureza da vontade de potência,  ela é princípio para a síntese das forças. Síntese que se relaciona com o tempo. Síntese das forças, de sua diferença e de sua reprodução. "O eterno retorno é a síntese e a vontade de potência é o princípio”[5].

 

A questão aparece com relação a palavra “princípio”, pois segundo Deleuze, Nietzsche não aprova eles por considerá-los muito gerais no que condicionam, porém a vontade de potência é considerada um bom princípio, um empirismo superior,  porque é um princípio essencialmente plástico, o qual não é mais amplo do que aquilo que condiciona, que se metamorfoseia com o condicionado. 

 

A vontade de  potência nunca é ,  na  verdade, separável de  tais  ou  quais forças determinadas ,  de  suas quantidades , de suas qualidades ,  de  suas direções; nunca é   superior às determinações que ela opera numa relação de   forças ,  sempre  plástica  e em metamorfose[6] .

 

A vontade de potência é inseparável das forças, porém isso não quer dizer que sejam idênticas,  afinal a força é quem pode e a vontade é quem quer. O conceito de força é, por natureza, vitorioso, pois envolve relação de dominação entre forças, ou seja,  citando como exemplo uma relação entre duas forças uma será a dominante e a outra dominada.

 

Mesmo Deus e o universo estão numa relação de dominação, por mais discutível  que seja, neste caso, a interpretação desta relação[7] .

 

Adverte Deleuze que, esse conceito  necessita de um querer interno, senão, ele não seria vitorioso. As relações de forças ficariam indeterminadas sem esse complemento, sem esse querer interno. Esse querer interno é a vontade de potência. Observa  que,  a vontade de potência  nada tem de antropomórfico[8]. Ela é o elemento diferencial, genético e interno de produção da força, é sempre pela vontade de potência que uma força prevalece sobre as outras, domina-as ou comanda-as e consequentemente que as demais forças na relação obedeçam-na[9] .

 

Deleuze realça a relação entre o eterno retorno e a vontade de potência. A  vontade de potência é a um só tempo o elemento genético da força e o princípio para a síntese das forças. Deleuze reconhece que é prematuro, ainda, dizer que  a síntese forma o eterno retorno, assim como defender que as forças, a partir da síntese, conforme o princípio, possam reproduzir-se necessariamente[10]. Este problema apresenta, em termos históricos, um momento bastante significativo do pensamento de Nietzsche: sua situação em relação a Kant .

 

Argumenta Deleuze que, o conceito de síntese é de origem kantiana, sendo Kant quem o descobri, mas  sabe-se que os pós-kantianos o censuraram por ter comprometido tal descoberta, já que o fez a partir dos seguintes pontos:  primeiramente, a partir do princípio que regia a síntese; em segundo lugar, a partir da reprodução dos objetos na própria síntese. Desejava-se não apenas um princípio que servisse como condição de possibilidade para o aparecimento dos objetos, mas sim um princípio genético e produtor e que, portanto, estivesse apto a dar conta da reprodução dos objetos engendrando-os de maneira interna. A partir da filosofia kantiana, isso parece impossível. E por quê? Porque a filosofia kantiana permitia a sobrevivência de harmonias verdadeiramente miraculosas entre termos que se mostravam exteriores. Em suma, exigia-se um princípio de diferença, um princípio de determinação interna, uma razão não apenas para a síntese, mas, principalmente, para a reprodução do diverso na própria síntese[11] .

 

 

 

                                  

Se Nietzsche se insere na história do kantismo,   é  pela maneira original  pela   qual

 participa destas exigências pós-kantianas.  Fez da  síntese  uma síntese de   forças  ,

 porque  a  síntese não sendo vista  como  síntese   de   forças ,    seu sentido  ,    sua 

 natureza     e     seu    conteúdo   permaneciam    desconhecidos .  Compreendeu   a

 síntese de forças como o eterno retorno, encontrou, portanto,no coração da síntese,

 a reprodução do diverso. Estabeleceu como o princípio da síntese  , a  vontade   de

potência ,  e determinou  esta  última  como elemento  diferencial  e  genético    das

 forças  em  presença[12] .

                       

Acredita Deleuze, através dessas reflexões, que não há em Nietzsche apenas uma ascendência kantiana, mas, principalmente, uma rivalidade confessada. De qualquer forma, Deleuze crê tratar-se de :

 

Uma transformação radical do kantismo,uma reinvenção da crítica que Kant traía ao mesmo tempo que a  concebia, uma retomada  do  projeto crítico  em  novas bases e com novos conceitos, é o que Nietzsche parece ter procurado (e ter encontrado no “eterno retorno”  e  na  “vontade de potência”  )[13] . 

 

 

 

Referências

 

1) ALLIEZ, E. (org.) Gilles Deleuze: Uma Vida Filosófica. Coord.Trad. Ana Lúcia de Oliveira .SP: Ed. 34.

2) DELEUZE, G. Nietzsche e a Filosofia. Trad. Ruth Joffily Dias e Edmundo Fernandes Dias. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.

3) FORNAZARI, S.K.(coordenador). Deleuze Hoje. SP: Ed. FAP-UNIFESP, 2014.

4) HARDT, M.  Gilles Deleuze Um Aprendizado em Filosofia. Trad. Sueli Cavendish. SP: Ed. 34, 1996.

5) NIETZSCHE. Os Pensadores. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. SP: Ed. Abril, 1974.

6) SCHOPKE, R. Dicionário Filosófico. Conceitos Fundamentais. SP: Ed. Martins Fontes, 2010.



[1] Nietzsche, F., Vontade de Poder, II, 170.
[2] Deleuze, G., Nietzsche e a Filosofia. R.J., Ed. Rio, 1976, p. 25.
[3] Deleuze, G., Nietzsche e a Filosofia. R.J., Ed. Rio, 1976, p.25.
[4] Deleuze, G., Nietzsche e a Filosofia. R. J., Ed. Rio, 1976, p.25.
[5] Deleuze, G., Nietzsche e a Filosofia. R.J., Ed. Rio, 1976, p.25.
[6] Deleuze, G., Nietzsche e a Filosofia. R.J. Ed. Rio, 1976, p.26.
[7] Deleuze, G., Nietzsche e a Filosofia. R.J. Ed. Rio, 1976, P.26.
[8] Deleuze, G., Nietzsche e a Filosofia. R.J. Ed. Rio, 1976, p.26
[9] Deleuze, G., Nietzsche e a Filosofia. R.J., Ed. Rio, 1976, p. 26.
[10] Deleuze, G., Nietzsche e a Filosofia. R.J., Ed. Rio, 1976, p.26.
[11] Deleuze, G., Nietzsche e a Filosofia. R.J., Ed. Rio, 1976, p.26.
[12] Deleuze, G., Nietzsche e a Filosofia. R.J., Ed Rio, 1976, p.26.
[13] Deleuze, G., Nietzsche e a Filosofia. R.J., Ed. Rio, 1976, p.26.

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