sábado, 1 de junho de 2013

LIBERDADE.

Reflexões sobre as raízes da noção de Liberdade - ‘Eleutheria’.
(por Ãndrea Cristina Pimentel Palazzolo)



Não parece o melhor usar a palavra liberdade sem levar em conta suas raízes e possíveis significações, Ao falar sobre a noção de liberdade na filosofia antiga está se falando também da sua significação moderna, seja pelas semelhanças ou diferenças. A liberdade na cultura grega antiga não tem a importância que lhe damos enquanto herdeiros do liberalismo do século XVII e do rousseauísmo do século XVIII. Locke ou Rousseau por exemplo, dão-nos as bases da noção de individualidade considerada ausente no período antigo. Há três vias pelo menos para pensarmos a questão da Liberdade, ‘eleuthería’: a via da liberdade como pertencimento étnico, a via do conhecimento de si mesmo e a via da autonomia. Estas duas vias tangenciam a primeira.

I- Como pertencimento Étnico

Se buscarmos as raízes da palavra ‘eleuthería’(liberdade), tais especificidades, ficam mais claras. Para É. Benveniste , a palavra ‘eleuthería’ tem um radical indo-europeu – ‘leuth’ – que indica crescimento, desenvolvimento, implica a ideia de pertencimento a um grupo, às raízes étnicas de um povo ou de um gênos. Robert Muller, nota que essa significação indica uma qualidade e não uma comparação. Se aceitarmos a explicação de Benveniste, a liberdade não explicita o poder livre de ir e vir, nem emerge, necessariamente, da relação senhor-escravo, mas é a qualidade de ser superior pelo fato de ter raízes, de ter uma identidade a partir de um ‘gênos’ ou de uma ‘Politéia’. Ser livre é pertencer, crescer, desenvolver-se e ter sua identidade a partir de um grupo que é a extensão de si mesmo, é poder reconhecer-se no grupo e através dele adquirir e poder mostrar a própria identidade. Não é difícil acharmos tal significação nos textos arcaicos, em Homero principalmente. Que se lembre dos nomes de família de cada um, acrescidos do lugar de origem, de seu ‘gênos’. É a regra que está até hoje preservada nos nossos sobrenomes sem que atentemos às suas origens. Ora, esse enraizamento que qualifica o homem na sua ‘eleuthería’ vem acompanhado estreitamente de uma outra noção, a de ‘philia’, de amizade, pois ter uma terra, um nome, um ‘oikós’, pressupõe uma dádiva e uma profunda emoção de pertencismo mútuo e unificador. Será preciso o nascimento da filosofia, esse novo saber emergente no séc.VI AC, para que se amplie essa significação primeira e, porque primeira, indelével.

II- Via do conhecimento de si mesmo, na perspectiva da autarquia, da ‘phronesis” (prudência)

A filosofia grega não afasta os saberes nomeados Ética e Política, infelizmente desvinculados, hoje, nas universidades. Esse saber único procura compreender o agir humano, o ‘prattein’ quer referido à ação de um homem (Ética), quer à de muitos (Política), na cidade. Se considerarmos a noção de liberdade em Platão, veremos que ela mostra sua face muito mais pelo que não é. Privilegiando um diálogo, a República, Platão fala, no livro IX, da escravidão do homem tirânico, uma escravidão que emerge os seus desejos ilimitados. Platão indica a não-liberdade no total escravidão aos desejos, ser escravo é desconhecer o bom uso das três potências da alma: logística , timocrática e epitimética. Já se pode adivinhar o sentido de liberdade: ela se expressa no bom uso do ‘lógos’. Platão inova ao inaugurar a reflexão sobre os primórdios de uma interioridade quando cria uma teoria sobre a alma. Já se pode falar, então, da liberdade como um estado interior de não ameaça. Em Aristóteles reaparece, como no seu mestre, o poder anímico do saber articulado ao agir. A ação de deliberar e de escolher por iniciativa própria, formam o núcleo da Ética, como ‘phronésis’, prudência, ou seja, reflexão em ação. Aristóteles evidencia a ‘autarquéia’, isto é, os princípios primeiros do pensar humano quanto à vida prática, para que cada homem no uso desses princípios, aja eticamente, livremente. Nesse estreito atalho, Aristóteles, ampliando Platão, estabelece as raízes da noção de ‘liberdade interior’. O filósofo grego por mais que teorize sobre a interioridade e aponte para uma individualidade latente, em nenhum momento afirmará um indivíduo responsável por todos os seus atos, abstratamente um senhor de si mesmo, uma vez que o cosmo e a cidade estabelecem sua inserção primeira.

III - Via da autonomia

O cuidar de si mesmo significa para um estóico antigo procurar um solo protetor fora das instituições, pois numa época de desintegração das ‘póleis’ e desarticulação do império alexandrino, essa filosofia pensará o homem vinculado ao cosmo, seu verdadeiro e divino solo protetor, criador de seu ser, enquanto que as instituições históricas indicam o reino da escravidão. O reconhecimento de que todos os homens são iguais por natureza, a noção de pertencimento cósmico quanto ao modo de ser racional e divino de todos os homens recoloca a liberdade no seu sentido primário de pertencimento, mas em outro quadro mental o filosófico: ser livre será pertencer ao cosmo e agir conforme as regras nele e em cada homem inscritas, como se a própria natureza fosse uma fratria universal. É a ‘autonomia’ mais que a ‘autarchéia’. Sendo uma filosofia, o Estoicismo confirma a liberdade interior, de exercer a escolha através do conhecimento. É nesse espaço possível de arbítrio que se instala, como em Aristóteles, o campo da Ético. ‘ Há coisas que dependem de mim, há coisas que não dependem de mim...’, diz a máxima estóica, e o que resta para o exercício ético está na primeira afirmativa. Ser virtuoso significa exercer o ‘lógos’, guiar-se pelas leis naturais que são leis racionais. É essa a ‘autonomia’ estóica. Ser livre é seguir o ´lógos’ divino e ordenado. Nas paixões, entretanto está a outra face da escravidão. E, como Platão, também os estóicos consideram esse movimento sem controle como negação do ser livre. São as paixões sem controle que desarmonizam o homem, transformando o ‘lógos’. É na interioridade de cada um que se encontra o discernimento dos julgamentos, é no tremor da alma de cada indivíduo, tremor não detectável exteriormente, que a liberdade ou a escravidão se instalam.

IV- Conclusão

Mas o que é, afinal ser livre ? É poder ir e vir? É poder sucumbir-se a força do desejo, hoje canalizado para as mercadorias? É criar os próprios princípios da vontade racional, como quis Kant, lembrando a autonomia estóica? Resta um pequeno espaço para a liberdade como exercício do saber-fazer aberto pela filosofia. Não há liberdade sem que o seu contrário seja sinalizado, parecem ensinar os filósofos gregos, o não-ser da liberdade. Mas, não se destrói essa face mas convive-se com ela. Qualquer que seja o conteúdo que mova a noção de liberdade que temos, não poderá ser compreendido e efetivado se não soubermos, teoricamente sobre seu contrário. Para tanto, é preciso teorizar, no sentido grego da palavra, o que não implica em afastar-se da práxis, bem ao contrário, mas tomá-la melhor quanto à medida dos constrangimentos e impedimentos. A liberdade, é uma daquelas noções que o pensar humano elege como nuclear mas parece conseguir aproximar-se dela sempre pelas bordas.

Bibliografias:

1) Gazolla Rachel, Reflexões Ético-Políticas Sobre as Raízes da Noção de Liberdade na Filosofia Grega Antiga, Boletim do CPA, Campinas, nº2, juL-dez.1996;

2)Gazolla Rachel, Para não ler ingenuamente uma tragédia grega – Edições Loyola;

3) É. Benveniste, in. Le vocabulaire dês institutions indo-européennes;

4) Muller Robert, Revista Dialogue, XXV, 1986, pág.421

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