segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

PLATÃO PARTE II

PLATÃO:  A REPÚBLICA

Os Símiles da República na formação do Filósofo e sua   prática
(por Ândrea Cristina Pimentel Palazzolo)      

 

I - Introdução

                       

            No fim do livro VI e o início do VII desenvolve-se alguns dos temas mais importantes da República, talvez até mesmo de toda a filosofia platônica. Trata-se dos símiles do Sol, da Linha e da Caverna, para a formação do filósofo e sua prática.

 

            O horizonte do discurso que agora se manifesta são as imagens sucessivas do sol, linha e da caverna, é o da clássica distinção entre mundo visível (sensível) e mundo inteligível.

 

            Certamente o que aqui está em jogo é o problema do conhecimento, mas também entre conhecimento e práxis, entre o mundo de aquisições intelectuais e o da vida concreta, mais precisamente o da política.

 

            O texto afirma também a relação entre os três símiles: do Sol com o da Linha em VI.509c; e deste último com o da Caverna em VII.517 a-c, devendo-se comparar o mundo visível à caverna e o inteligível à ascensão dos prisioneiros ao mundo superior.

 

            As três alegorias são partes complementares e interdependentes de um só todo. Juntas constroem a base metafísica da teoria e currículo da educação superior em Platão.

 

II- Símile do Sol

 

            Primeiro temos o símile do Sol, que mostra que esse astro está para o mundo visível como o Bem para o invisível (VI 507b-509d).

            Platão considera a ideia do bem como a de um saber mais elevado (“megiston mathema” – 505 a), é a ideia suprema, que torna inteligível o mundo.  Em que pese Platão não afirmar explicitamente que o bem dentre as idéias seria hierarquicamente a mais elevada, dá a entender, quando em argumentos trata do bem. 

             J.E. Raven  definiu o Bem do seguinte modo: “ O Bem , para Platão, é, em primeiro lugar, e com mais evidência, a finalidade ou alvo da vida, o objeto supremo de todo o desígnio e toda a aspiração. Em segundo lugar, e mais surpreendentemente, é a condição do conhecimento, o que torna o mundo inteligível e o espírito inteligente. E em terceiro, último e mais importante lugar, é a causa criadora que sustenta todo o mundo e tudo o que ele contém, aquilo que dá a tudo o mais a sua própria existência.”(Rep.Introdução, pag.XXVII, Fundação Calouste G., 4ª edição)    

             No Livro VI 507 b3-508c2, ele discorre:

            “Portanto, nós dizíamos – finalmente Sócrates – que há muitas coisas belas e muitas boas, e todas assim as chamamos e definimos com o discurso. E em seguida dissemos que existem o belo em si e o bom em si, e dessas muitas coisas consideramos cada uma em relação a uma idéia, que dizemos ser uma, e cada uma chamamos “o que é”. E que muitas coisas se vêem, mas não se apreendem com o intelecto, enquanto que as idéias se apreendem com o intelecto, mas não se vêem. Ora, nós vemos as coisas visíveis com a visão e as outras coisas sensíveis com os outros sentidos. A faculdade mais perfeita é a da visão, porque, diferentemente dos outros sentidos, precisa de outra coisa, isto é, da luz, que é a ligação mais preciosa entre a sensação da visão e a possibilidade de ser visto. Da luz é senhor o sol, cuja luz permite ver e ser visto. Pois, a relação entre a visão e este deus é por natureza a seguinte: a visão não é o sol, mas aquele que dos sentidos mais lembra no aspecto o sol, e a sua faculdade deriva-lhe do sol; o sol não é a visão, mas sendo sua causa, é por ela visto. E então eu chamo o sol filho do bem, gerado pelo bem e análogo a ele, de maneira que no mundo inteligível o bem é relativamente ao intelecto e aos inteligíveis aquilo que no mundo sensível o sol é relativamente à visão e aos visíveis” (VI 507b3 – 508c2).

            A analogia é, por conseguinte, também matemática, a construção de uma relação, de uma proporção, que podemos esquematicamente da seguinte maneira:

No mundo inteligível                         =                     No mundo sensível

Bem: intelecto/inteligíveis                 =                     Sol: visão/visíveis

            “ Tal como há diferença, relativamente à faculdade de ver enquanto tal, entre ver coma luz do sol e ver por meio das luzes noturnas, o mesmo acontece com a alma: quando ela se fixa de maneira sólida sobre o que é iluminado pela luz da verdade e do que é, colhe-o e conhece-o, e é evidente a sua inteligência; quando se fixa no que é misto de trevas, no que nasce e morre, então só tem opiniões e assemelha-se a uma pessoa que não tem intelecto” (VI 508d).

             Significa que um homem que conhece e tem inteligência das coisas inteligíveis realmente consegue o conhecimento verdadeiro, já se esse  homem, pelo contrário,  considera apenas o mundo do devir, da mutabilidade, o mundo visível, terá apenas “ doxa”, opinião e é comparado a uma pessoa que não tem intelecto.  

            “ Ora, o que dá verdade as coisas conhecidas e dá a faculdade de conhecer a quem conhece é precisamente a idéia do bem, causa da epistéme e da verdade. E tal como no mundo visível a luz e a visão são semelhantes ao sol, mas não são o sol, assim, no mundo inteligível a epistéme e a verdade são semelhantes ao bem, mas não são o bem. A condição do bem deve ser tida em considerações ainda maior” (VI 508 e 1-509 a5).  

            A ideia do bem, aqui, é o que transforma os conhecimentos num sistema fortemente organizado que podemos chamar ciência, epistéme; e, ao mesmo tempo, dá verdade, em nível superior, aos mesmos conhecimentos, é o que dá maior valor aos próprios conhecimentos. Neste sentido, deve-se interpretar a idéia do bem como causa também da verdade; e esta idéia do valor maior que a idéia do bem confere aos conhecimentos  será reafirmada logo em seguida, realçando mais uma vez que o sentido do que se está a dizer está no interior da imagem que está a usar.

            “Continua então a examinar esta imagem. O sol confere as coisas visíveis não só a faculdade de serem vistos, mas também geração, crescimento e alimento, embora ele mesmo não seja geração; da mesma forma, o bem confere as coisas cognoscíveis não só a propriedade de serem conhecidos, mas também ser e essência, embora o bem não seja essência, mas algo que por dignidade e potência está além da essência” (VI 509 a-b).

            Percebe-se  claramente a analogia do sol com o bem. A comparação não se reduz a uma simples contraposição entre o mundo sensível e o inteligível. Constata-se a função, cognitiva e prática, respectivamente do bem e do sol. De fato, no mundo sensível, isto é, no mundo concreto do nosso viver, o sol torna as coisas visíveis,  já no  mundo do conhecimento, o bem é condição do conhecimento, sem que ele mesmo seja conhecimento ou vida, porque está além do visível. No mundo inteligível, isto é, na construção dos nossos conhecimentos, o bem dá verdade aos nossos conhecimentos, permite a sua boa realização, ou seja, insere-os na concretude da nossa existência, sem que ele mesmo seja reduzível à existência, porque está além da existência.

            Trata-se do horizonte aberto do dever ser, do nosso agir em vista de algo, que pela sua altíssima dignidade merece todo o esforço do filósofo/governante que tende a realizá-lo. Numa palavra, o bem, estando “além” da existência, é o fim das nossas ações e, simultaneamente, o que dá valor à nossa ação.

III – Símile da linha: a faculdade do conhecimento e dos seres.

            Ela trata do Conhecer e do Ser.        

            Aqui a imagem/analogia do sol passa para a da linha (VI 509d-511e).

            Há dois gêneros, o visível e o inteligível:

            É como se pegasse numa linha dividida em segmentos desiguais e, mantendo constante a relação, subdividisse ainda o que representa o gênero visível do que representa o gênero inteligível (VI 509d4-8).    

            Dividem-se os primeiros dois segmentos em dois, de maneira a resultar quatro segmentos e, por conseguinte, os dois segmentos originários, que representam os dois mundos, sensível e inteligível, são distinguidos em outro dois segmentos.

            O mundo visível (horata ou doxata) , está sujeito a doxa (opinião), devido a mutalidade, tem em primeiro lugar uma zona de eikónes ( “imagens”, reflexos nas águas, pinturas...), são os seres imagéticos, conhecidos pela eikasía (“suposição”). Num nível mai elevado, temos todos os seres vivos (zoa) e objetos do mundo,  ou seja, os seres físicos e fabricados,  esses modelos são modelos para os seres imagéticos, são conhecidos através de “pístis” (“fé, crença”).

             O mundo inteligível (nóeta), está sujeito a sophía (saber),  tem também dois setores proporcionais, o inferior e o superior, o primeiro são os dos seres matemáticos e afins, estes são modelos para os seres físicos, são apreendidos através da diánoia (“entendimento” ou “razão discursiva”) e o segundo são os dos seres formais as idéias, são modelos para os seres matemáticos e afins, são apreendidos só pela nóesis (“inteligência” , “razão intuitiva”, “intuição refinada”). Nesta última distinção poderá residir, como alguns supõem, a finalidade principal da analogia: o contraste entre o conhecimento pela dianóia, que é o das ciências, e o que é pela noesis, que é o da filosofia. Mas não é menos importante a antinomia entre opinião e saber, entre doxa e sophia.

            Terás, em relação recíproca de clareza e obscuridade, A) no mundo visível, um primeiro segmento: 1) as imagens (509e1: eikónes). Por imagens entendo as sombras, as que aparecem na água e nos espelhos, e em coisas do gênero; 2) um segundo segmento, que é aquilo a que se assemelha o primeiro: os animais, as plantas e todos as coisas artificiais. Ora, tal como o opinável se distingue do cognoscível relativamente à verdade, também a imagem se distingue daquilo de que é imagem; B) no gênero do inteligível: 3) a alma procura o inteligível recorrendo, como que a imagens, àquelas que no caso anterior eram as coisas imitadas, partido de hipóteses e indo não para o princípio, mas para o fim; 4) na outra parte, que conduz a um princípio não hipotético, a alma procura o inteligível partindo de hipóteses, mas sem as imagens relativas ao inteligível e pesquisando exatamente com as idéias e por meio delas (VI 509e-510b).  

             Considerando os quatro segmentos, a “inferioridade” de um segmento relativamente ao sucessivo diz respeito à verdade, conforme 510 a9: é em relação à verdade que as imagens se distinguem daquilo que são imagens. A distinção parece pertencer ao nível gnosiológico: a isto alude não só a relação entre clareza e obscuridade (VI 509d9), mas também a outra, problemática, referente ao “opinável” e ao “cognoscível” (VI 510a9). Onde é claro que o opinável se distingue do cognoscível porque só a este último cabe a verdade, enquanto que ao outro não.  Haveria um “conhecimento obscuro”, que podemos chamar opinião, e um “conhecimento claro”, que chamamos simplesmente conhecimento, e a diferença residiria apenas no método com o qual nos dirigimos para os objetos do nosso conhecimento.

            Quanto ao segundo segmento temos uma segunda formulação por Sócrates do nível B, pois a anterior não ficou clara a Gláucon :

            “3): alguns dos que se ocupam de geometria, cálculo e coisas afins, admitem por via hipotética o ímpar e o par, as figuras geométricas, três espécies de ângulos e coisas semelhantes. E como se conhecessem estas coisas, reduzem-nas a hipóteses e pretendem não ter de dar conta nem a si mesmos nem aos outros, como se fosse coisa clara a todos. Estas pessoas fazem uso das espécies visíveis e a partir  delas constroem discursos, mas têm em mente as coisas às quais estas se assemelham, e servem-se das coisas que modela como se fossem imagens, procurando ver as realidades em si que não se podem ver senão com a razão discursiva (VI 511a1:dianóia). Esta ideia é sim inteligível, mas de tal modo que a alma é obrigada, a investigá-la servindo-se de hipóteses sem se dirigir para o princípio, dado que não é capaz de transcender as hipóteses, mas serve-se delas como antes se servia das imagens. É o mundo da geometria e das artes irmãs” (VI 510c-511b)

            Aqui se esclarece explicitamente que esta secção pretende simbolizar os conhecimentos matemáticos, geométricos, e das “artes irmãs”: as imagens ainda estão presentes e incanceláveis.

            Elas são, por  um lado, as figuras reais que se “vêem”, isto é, percepcionam-se sensivelmente, como os triângulos, quadrados, todas as figuras geométricas que estes homens constroem desenhando, figuras que constituem uma espécie de “idéias visíveis”(VI 510d5); mas, por outro lado, são, mais em geral, “hipóteses” puramente racionais. De fato, a elas pertencem também “o par e o ímpar” (VI 510c4), que não são, a rigor, imagens visíveis. Hipóteses, portanto, no sentido literal de algo que se “sobrepõe” ao dado sensível para compreendê-lo e conhecê-lo, algo que porém não deriva do próprio dado sensível por via de abstração, mas constitui precisamente o “modelo” racional, só racional, que permite compreender e conhecer a imagem sensível. E a imagem continua a estar fortemente presente: não só são imagens as “coisas” às quais aplicamos “o modelo”do triângulo, do quadrado, etc., mas são imagens as mesmas figuras geométricas que eles desenham (VI510e1), imagens de algo que não se pode “ver” a não ser unicamente com a razão discursiva (dianóia); imagens/hipóteses que estas ciências assumem de maneira imediata. Platão realça a imediatez intuitiva das idéias matemáticas(par/ímpar) e das geométricas (triângulo etc.), mas também o fato de o método hipotético assumido por elas ser um método axiomático. Portanto, a característica de todas estas ciências é o fato de elas não “darem conta” das imagens/hipóteses que assumem, exatamente porque as consideram coisas evidentes a todos (VI 510c7-d1;cf.VII531e 1-5).   

            Temos por fim: ”4) a outra secção do inteligível, a que o próprio discurso atinge com a “força da dialética”, fazendo das hipóteses não princípios, mas realmente “pré-supostos”, quase como pontos de apoio e de salto, para que ao dirigir-se para o que não mais tem pressuposto, ao princípio de tudo, e ao atingi-lo, volte, apegando-se “pari passu” ao que dele deriva, a descer até as conclusões, sem servir-se absolutamente nada do sensível, mas só das idéias, por elas e através delas, e se termine nas idéias” (VI 511b-c).

            Há, então, uma intervenção de Gláucon (VI 511c3-4), que oferece um resumo do que Sócrates disse:

            “Com isto pretende-se definir aquela parte do real e do inteligível que é contemplada pela “ciência dialética” e que é mais clara do que a contemplada pelas chamadas artes, para as quais as hipóteses são princípios. E os que observam os objetos das artes são obrigados a observá-los com o pensamento discursivo sem fazer recurso às sensações, e parece-te que não usam o intelecto porque os examinam sem retornar ao princípio, mas por via de hipóteses, mesmo que aqueles objetos sejam inteligíveis. E tu chamas dianóia à condição destas pessoas, e não intelecto, e considera-a algo entre a opinião e o intelecto”(VI511c-d).

            Sócrates aprova esta interpretação de Gláucon.

            Esta última secção da linha simboliza, portanto, a dialética. De forma declarada, ela é a única disciplina, aliás, a única ciência, a não recorrer a imagens. Mas o seu ponto de partida é dado por imagens, só que elas não lhe servem para permanecer ancorada ao mundo das imagens, e sim para ir além dele. Todavia, aqui é importante o fato de a hipótese, que de certo modo é sempre uma imagem e constitui o “princípio” inteligível de explicação e conhecimento do mundo real, constituir agora somente a base para o salto aquisitório de outro “princípio” que não é mais uma hipótese, mas que funda todas as outras hipóteses e não é, por sua vez, fundado por nada. Como é natural, é o mundo das idéias (cf. VI 511b5), metodologicamente bem-distinto não só do mundo das coisas sensíveis, mas também do das imagens científicas que servem para explicar as coisas sensíveis.

            Após ter aprovado o “resumo”  Sócrates dá o acabamento final: a qualificação de “disposição”, que Gláucon destinara ao segmento da “diánoia”, agora torna-se a qualificação de quatro “pathémata em têi psychêi”: trata-se, portanto, de quatro “pathémata” da alma, isto é, afecções, características, atitudes, disposições, funções da alma. Eles são, partindo do último, ou seja, do mais alto:

            “4. A intelecção, ‘nóesis; 3. O pensamento dianoético, ‘diánoia’; 2. A crença, ‘pistis’; 1. A imaginação, ‘eikasía’(VI511d8-e2), e estão ordenados proporcionalmente, afirmando que do mesmo modo em que o seu objeto participa da verdade, também eles participam de clareza”(VI511d-e).

            Constata-se a relação analógica fundamental é a da verdade e a da clareza, relação que liga os quatro segmentos da linha; razão pela qual, se houver uma gradualidade, isto é, uma relação de menor a maior,  diz  respeito ao nível gnosiológico, o qual visa a verdade e a clareza do conhecimento.

IV- Símile da Caverna

            O Livro VII trata do Mito da Caverna, 514a -518b.  No centro de A República, coloca-se a célebre “Alegoria da Caverna”. O mito foi interpretado sucessivamente como expediente utilizado por Platão para simbolizar a metafísica, a gnosiologia, a dialética e até mesmo a ética e a mística platônicas. É o mito que expressa Platão na sua totalidade.

            Imaginemos homens que vivam numa caverna cuja entrada se abra para a luz em toda a sua largura, com um amplo saguão de acesso. Imaginemos que os habitantes dessa caverna tenham as pernas e o pescoço amarrados de tal modo que não possam mudar de posição e tenham de olhar apenas para o fundo da caverna. Imaginemos ainda que,  imediatamente à frente da caverna, exista um pequeno muro da altura de um homem e que, por trás desse muro e, portanto, inteiramente escondidos por ele, se movam homens carregando sobre os ombros estátuas trabalhadas em pedra e em madeira, representando os mais diversos tipos de coisas. Imaginemos também que, por trás desses homens, esteja acesa uma grande fogueira e que, no alto, brilha o sol. Finalmente, imaginemos que a caverna produza eco e que os homens que passam por trás do muro estejam falando de modo que suas vozes ecoem no fundo da caverna.

            Se isso acontecesse, aqueles prisioneiros da caverna nada poderiam ver além de pequenas estátuas projetadas no fundo da caverna e ouviriam apenas o eco das vozes. Entretanto, acreditariam, por nunca terem visto coisa diferente, que aquelas sombras eram a única e verdadeira realidade e que o eco das vozes representasse as vozes emitidas por aquelas sobras. Suponhamos, agora, que um daqueles prisioneiros consiga desvencilhar-se dos grilhões que o aprisionam. Com dificuldade, ele se habituaria à nova visão com a qual se deparava. Habituando-se, porém, veria as estatuetas moverem-se por sobre o muro e compreenderia que elas são muito mais verdadeiras do que as coisas que antes via e que agora lhe parecem sombras. Suponhamos que alguém traga nosso prisioneiro para fora da caverna e do outro lado do muro. Primeiramente, ele ficaria ofuscado pelo excesso de luz; depois, habituando-se, veria as coisas em si mesmas; e, por último, veria inicialmente de forma reflexa e posteriormente em si mesma, a própria luz do sol. Compreenderia, então, que estas e somente estas são as realidades verdadeiras e que o sol é a causa de todas as outras coisas visíveis.

            Antes de tudo, o mito da caverna traduz os diversos graus em que ontologicamente se divide a realidade, isto é, os gêneros do ser sensível e suprassensível com suas subdivisões: as sombras da caverna simbolizam as aparências sensíveis; o muro representa a linha divisória entre as coisas sensíveis e as suprassensíveis; as coisas verdadeiras situadas do outro lado do muro são representações simbólicas do ser verdadeiro e das Ideias e o sol simboliza a Ideia do Bem.

            O mito simboliza os graus do conhecimento nas duas espécies em que ele se realiza e nos dois graus em que essas espécies se dividem: a visão das sombras simboliza a “eikasía” ou imaginação e a visão das estátuas representa a “pístis” ou crença; a passagem da visão das estátuas para a visão dos objetos verdadeiros e para a visão do sol, antes de forma mediata e posteriormente imediata, simboliza a dialética em seus vários graus e a intelecção pura.

              O símile da caverna simboliza o aspecto ascético, místico e teológico do platonismo: a vida na dimensão dos sentidos e do sensível é a vida na caverna, assim como a vida na pureza e plenitude da luz é a vida na dimensão do espírito. O voltar-se do sensível para o inteligível é expressamente representado com a “ libertação das algemas”, como conversão, enquanto a visão suprema do sol e da luz em si mesma é a visão do bem e a contemplação do Divino.

            Essa alegoria da caverna expressa também a concepção política tipicamente platônica. Platão menciona também um “retorno” à caverna por parte do que se libertara das algemas, retorno cuja finalidade consiste na libertação dos em companhia dos quais ele antes se encontrava como escravo.

            O que poderá, entretanto, acontecer a quem desce de novo na caverna? Passando da luz para a escuridão, ele não conseguirá enxergar enquanto não se habituar novamente à falta de luz; terá dificuldades em se readaptar aos costumes dos antigos companheiros, se arriscará a não ser por eles entendido e, tomado por louco, correrá até mesmo o risco de ser assassinado, como aconteceu com Sócrates e como poderá acontecer com todos os que testemunhem em dimensão socrática.

            Entretanto, o homem que “viu” o verdadeiro Bem deverá e saberá correr esse “risco”, pois é isso que dá sentido a sua existência.

            Como se vê, só a aquisição e a apropriação de uma nova verdade consente chamar não verdadeiras as opiniões que antes se tinha; só relativamente a uma verdade maior outra verdade se torna não verdadeira; só a conquista de uma nova verdade determina um novo modo de vida e faz considerar inadequado o não bom o velho modo de vida; só pregando uma nova verdade e um novo modo de vida, sem conformar-se com os já existentes e aceitos pela maioria, se correm os reais perigo não só de escárnio, mas também de morte. E mais uma vez, aqui Platão convida-nos a refletir sobre a vida exemplar, por ele mesmo construída, da personagem Sócrates. ( Casertano G. Uma introdução à Rep. De Platão, Ed.Paulus, 2011, pag.102)

V- Conhecimento e Práxis

            Os três símiles: sol, linha e caverna, acima tratados, uma vez que tratam da teoria do conhecimento de Platão, tem um papel fundamental na formação do filósofo.

            Porém não basta para Platão que o filósofo obtenha o conhecimento verdadeiro é preciso mais, que ele o pratique.

            O “retorno” a caverna representa certamente o retorno do filósofo-político, o qual se atendesse apenas às solicitações de seu interesse, permaneceria atento apenas à contemplação do verdadeiro. Superando, porém suas ambições, desce ele à caverna na tentativa de salvar os outros.

            O verdadeiro político segundo Platão, não ama o comando e o poder, mas usa o comando e o poder como instrumentos para a produção de serviços destinados à realização do bem.

            Para Platão (VII 518 b 6-7) a “paideía”, a educação, não é como algumas pessoas sustentam, dizendo   que eles põem o saber (VII 518 c1) na alma, quase com se infundisse a visão em olhos cegos.

            Não se põe o saber na alma dos homens, que é uma veleidade análoga à do querer infundir a visão em olhos cegos, mas no máximo suscita-se o saber, tornando os homens capazes de exercitar e de tirar os frutos das faculdades que cada um possui: a educação é um fato “pessoal”, não uma transmissão da ciência. Ela acontece de dentro para fora e não de fora para dentro.

            O discurso mostra que esta capacidade de saber (VII 518c5) e essa faculdade são ínsitas na alma de cada um, e graça a elas é possível através da “phronêsai" virar o olho para cima (VII 518c7), das trevas para a luz.

            A viragem do olho através da “phronêsai”  acontece quando ocorre uma aporia, daí a necessidade do acesso a “noésis” ( ação do nôus) em busca de uma solução para a situação em tese sem saída. Passa-se portando da dianóia para noésis, através da “phronêsai”, com a virada do olho, em busca da solução para a aporia.

            Logo, essa faculdade deve ser virada (VII 518c8-9) do mundo do devir com toda a alma, até ser capaz de suportar a contemplação do real e da parte mais luminosa do que é, a que chamamos justamente o bem (VII 518c9-d1).

            A alma (“psyché”) tem o poder de ver a si mesmo, ela ilumina ela mesmo. Ela ilumina o que ela é, e é ela que vê as idéias. E a“phronêsai” é o olho da alma.

            Platão considera que as faculdades ínsitas em cada homem podem ser viradas para o bem ou para o mal; cada um possui dentro de si a capacidade de agir e de pensar, mas o resultado das suas ações e dos pensamentos que guiam às ações depende da sua alma. 

            Isto explica quão penetrante é o olhar precisamente da alma dos chamados maldosos, mas sábio, e quão agudamente (VII 519 a2-3) a alma deles consegue discernir os objetos para os quais está virada, isto porque é dotada de visão não medíocre, mas que serve para sua maldade, de maneira que os males por ela produzidos são tão grandes quanto mais agudo (VII 519 a5) for seu olhar.

            A “phrónesis”, a inteligência está, por conseguinte, em todos, bons  e maus, por isso, todos podem ser educados a agir bem.

            Para Platão a dialética é o coração das disciplinas (VII 534b-535 a).

            Ela exprime não só o mais alto grau do conhecimento, mas também o momento em que o conhecimento se traduz em “práxis”. O degrau superior é o bem a ideia do bem: só quem a possui com saber certo, com verdade e não com opinião, é capaz de enfrentar todas as batalhas da refutação e da ação.

             Só o filósofo que possui a ideia do bem, possui a ideia do fim de todos os seus conhecimentos; é ele que não só conhece melhor do que os outros, mas sabe agir melhor que todos os outros, e é, por conseguinte, o único capaz de governar a cidade.

             Apenas o filósofo cumpre o seu saber, aplicando-o no terreno não só do conhecimento teórico, mas também no do prático. Precisamente porque ele vê infinitamente melhor do que os outros, pois possui o olhar largo de Zeus que tudo vê, e dado que viu a verdade acerca do belo, do justo e do bem (VII 520c), deve voltar a descer à caverna e ser obrigado a assumir os cargos públicos, de maneira a não ser inferior aos outros sequer por experiência (VII 539 e – 540b).

            Esta íntima ligação é aquela sobre a qual Platão insiste com força: tendo assimilado a dialética, dos 50anos em diante, os que tiverem sido os primeiros em obras e em saber, chegados ao fim, e através da “phronêsai” virando para cima os olhos da alma, serão capazes de ver o bem em si, e servindo-se dele como modelo, darão ordens à cidade, por turnos, aos privados e a si mesmos, para o resto da vida.

            E, embora passem a maior parte do tempo dentro da filosofia, quando chegar a sua vez, terão de enfrentar os aborrecimento da vida política e governar pelo bem da cidade, não porque esta tarefa é bela, mas porque é necessário (VII 539d-540b).  

           

            Quem é capaz de ver o todo, é filósofo; quem não é capaz, não o é. (Platão)

 

 

Referências:

 

1) Platão, A República, Introdução, Tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira, 4ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa;

2)Reale Giovanni, Platão, História da Filosofia Grega e Romana, vol. III, tradução Henrique Cláudio de Lima Vaz e Marcelo Perini, nova edição corrigida, 2007,Edições Loyola;

3) Reale Giovanni, Antiseri Dario, História da Filosofia, vol. I, 11ª edição, 2012, Paulus;

4)Vaz Henrique C. Lima, Antropologia Filosófica, vol. I, 11ª edição, 2011, Edições Loyola;

5) Vaz Henrique C. Lima, Platônica, escritos de filosofia VIII, 2011 Edições Loyola;

6) Pecoraro Rossano (org.), Os Filósofos Clássicos da Filosofia, vol. I, 2008, Editora Vozes;

 7) Schafer Christian ( org.), Léxico de Platão,  tradução Milton Camargo Mota,  2012, Edições Loyola;

8)Casertano Giovanni, Uma introdução à República de Platão, editora Paulus, 2011;

9) Gazolla Rachel, Consideraciones sobre La Psyché en El Libro VII de La República : El Logistikón Del Dialéctico. Los Símiles de La República VI-VII de Platón , editor Raúl Gutiérrez. Pontificia Universidad Católica Del Peru, Fundo Editorial, 2003.